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Sobre os acontecimentos recentes envolvendo Gkay e Fábio Porchat, a cultura do cancelamento e o tribunal do júri em que as redes sociais se transformaram

Imagem de capa, com Gkay à esquerda e Porchat à direita.

É urgente ampliarmos o debate em relação à mídia, levando em conta a teoria crítica marxista, com as devidas atualizações e adaptações necessárias ao nosso tempo

Primeiramente, queria deixar claro que sou contra a cultura do cancelamento em massa e hates/ataques online desnecessários. Sou a favor de críticas construtivas que possam levar à reflexão e melhorias das partes envolvidas. Ninguém é um Deus onisciente e onipresente capaz de dar conta de uma situação que possui muitas facetas, sejam de questões, relatos, argumentos e “fatos” (levando em conta a definição jornalística do que é fato).

Mas, tendo pesquisado e lido ao longo dos últimos dias, de modo a tentar compreender esse fenômeno que está acontecendo, visto que envolve personalidades que fogem da minha “bolha”, vejo muitas análises superficiais, por parte de jornalistas e profissionais que, a meu ver, precisariam seguir o mínimo de rigor jornalístico antes de publicarem um texto. Vejo “gente grande” puxando sardinha/defendendo piamente a influenciadora Gessica Kayane, conhecida como Gkay, ou o humorista Fábio Porchat. Como se tivéssemos que escolher “um lado”. Isso não existe na vida real/off-line e convenhamos que não deveria existir na vida online. Não sei a que ponto isso passou a ser considerado correto e esperado de qualquer pessoa pública ou com acesso à internet.

É como se, diante de uma situação polêmica, a internet se transformasse em um grande “tribunal do júri” a decidir se o “réu” é culpado ou inocente. Isso vale tanto para Gkay, quanto para Porchat. Para uns, Gkay é vítima/coitada e Porchat o algoz cruel que se aproveitou da fragilidade de uma pessoa problemática. Para outros, Gkay é uma pessoa intragável, insuportável, que merece o ostracismo, inimiga do humor, chacota nacional, forçada, que recebeu “o que merecia” do Porchat. Eles descolam as pessoas de suas respectivas realidades, contextos e vivências, e as reduzem da forma mais simplista e superficial possíveis, apenas com o intuito de emitir uma opinião. Essa ânsia de se posicionar diante de tudo também considero um grande mal dos tempos atuais.

Nas relações interpessoais, sob os holofotes e fora dela, quando existe um atrito, arrisco a dizer que dificilmente um estará totalmente correto e outro totalmente errado. Precisamos tentar deixar nossa irracionalidade, sentimentos mais primitivos e tendências de lado antes de emitirmos uma opinião publicamente que pode, de fato, afetar enormemente a vida de alguém que sequer conhecemos.

Passou da hora de colocarmos a mão na consciência antes de esbravejar pela internet, para não sermos de fato cruéis ou injustos com ninguém. Acho que uma boa forma de praticar isso é: “eu falaria isso que estou escrevendo se estivesse com a pessoa na minha frente?” Caso a resposta seja negativa, não poste/comente. Precisamos resgatar a humanidade e empatia perdidas em meio aos algoritmos e “modus operandi” das redes sociais.

Menos com aquele que não deve ser nomeado, cujo mandato, graças a Deus, está em sua última semana. Esse ser, desculpem a franqueza, não é uma pessoa digna de compaixão ou de justificativa de seus maus atos. Aliás, eu nem o considero um ser humano, mas um monstro ególatra e sociopata que, enquanto esteve no mais alto cargo do país, foi direta e indiretamente responsável pela morte de milhares de pessoas. Podemos citar toda a negligência e crimes relacionados à Covid, o abandono sistemático do povo brasileiro quando mais precisava de amparo governamental, os ataques aos jornalistas e aos veículos de comunicação como um todo e a intolerância e preconceito relacionados às minorias, com destaque para as mulheres, para a comunidade LGBTQIAPN+ e para a população negra, pobre e periférica.

Mas a Gkay, convenhamos, por mais que seja uma mega influenciadora no quesito quantidade, com mais de 20 milhões de seguidores, não é uma figura política da qual devemos esperar “retidão” e que seja “bastião da moral”, exemplo de cidadã. Estamos tão carentes de líderes sociais e políticos, que acabamos por despejar nossas esperanças nas pessoas erradas. E ficamos frustrados.

Claro que se ela usasse a influência, visibilidade e parte do dinheiro que possui para fazer o que é considerado bom do ponto de vista social, apoiando e divulgando projetos publicamente, seria admirável. Mas, sendo sincera, esse, na real, não é o papel dela. E de nenhum outro influenciador cujo conteúdo não seja voltado à transformação social.

Ela é uma pessoa que se encaixa na ainda recém-criada categoria profissional conhecida como “influenciador digital“. A Gkay, para o bem ou para o mal – entende-se que a ideia de bem e mal é relativa, passível de variações de acordo com moral, religião, costumes, princípios e afins – é referência para milhões de pessoas que a seguem. Por mais que eu, dentro do que pesquisei até o momento na famigerada internet, tão criticada aqui, considero a personalidade Gkay alguém com atitudes reprováveis, que vão ao encontro de quase tudo o que eu sou contra.

Realmente considero que a “piada” do Porchat, por mais que possamos questionar a forma/ conteúdo/prepotência de homem branco global e afins, a meu ver, foi válida. Pois o cerne da piada não foi sobre a morte de Jô Soares, pelo qual Porchat sempre demonstrou ter respeito e gratidão. Foi, inclusive, em um programa do Jô de mais de 20 anos atrás, após um bilhete escrito à mão que chegou ao apresentador e multiartista, que ele foi descoberto. Na ocasião, Porchat fez a paródia do programa “Os Normais”, no palco, quando tinha 18 anos. Depois disso, a TV Globo convidou-o para um teste no qual ele foi aprovado, passando a integrar o elenco da emissora desde então.

Em virtude de toda essa contextualização e interpretação de texto, a piada foi sobre a dificuldade de se entrevistar a Gkay. Porchat, naquele momento, para destacar o desconforto que seria entrevistá-la, usou a maior referência de entrevista que possui – e que boa parte dos brasileiros, assim como eu, também possui. Acredito que esse tenha sido o sentido da piada que muitos, por vários motivos, parecem ter perdido.

E Fábio, inclusive, disse a piada olhando diretamente para Tatá Werneck. Ele estava se referindo especificamente à participação de Gkay no programa “Lady Night”, apresentando por Tatá. Acredito que, para quem entendeu que Porchat desrespeitou o Jô, faltou um pouco de interpretação de texto e contextualização.

Para chegar a essa conclusão e decidir expô-la publicamente, eu assisti, mesmo raramente acompanhando TV Aberta, ao prêmio de Melhores do Ano 2022, do “Domingão com Huck” – não só a parte em que a famigerada piada foi feita. E, na época em que a entrevista de Gkay no programa da Tatá repercutiu negativamente, eu a assisti na íntegra e, de fato, foi realmente constrangedora e desconfortável de várias formas – sendo o mais eufêmica que consigo ser no momento.

Então, com base no Prêmio Melhores do Ano, na participação de Gkay no Lady Night e em pesquisas que fiz para tentar compreender minimamente a “persona” Gkay, a piada do Porchat realmente não foi cruel o suficiente para “estragar o Natal e precisar ir chorar no quarto para que sua mãe não percebesse”, nas palavras dela, mas a gota d’água em um mar repleto de críticas, sejam elas pesadas, ácidas, cruéis, construtivas, assertivas ou não, às quais celebridades inevitavelmente estão sujeitas a receber. Como já mencionei, sou a favor de críticas construtivas, mas não de cancelamento, hates e ciberbullying desenfreados que tenho visto partindo de quem defende fervorosamente qualquer um dos lados.

A cultura da internet que, na mesma velocidade alça alguém à fama, colocando-a em um pedestal, também tem o poder de derrubá-la do local que a colocou. Do mesmo jeito duvidoso e questionável que dá, é capaz de tirar. Em um piscar de olhos. Não à toa que qualquer pessoa com acesso à internet consegue citar subcelebridades efêmeras que, do mesmo jeito que surgiram, desapareceram do nada, sem deixar rastros. E isso ser enxergado como natural denota um descolamento da “realidade”, da vida real/offline, sem tamanho.

Chegamos a um ponto em que as fronteiras entre o real e o virtual se fundiram de tal forma que as redes sociais passaram a ser o motivo de viver de muitas pessoas, tanto em relação ao “ganha pão”, quanto em relação ao consumo de conteúdos, ideias, pensamentos e desejos. As mídias sociais viraram um baluarte, em maior ou menor grau, da vida de muitos, inclusive desta que vos escreve.

Mas o que muita gente não parece perceber ou tenta ignorar é que a rede social, além de ser o motivo de viver de muitos, também é o motivo pelos quais muitos deixam de viver. E isso no sentido figurativo, em que pessoas deixam as vezes de lado os vínculos reais/presenciais para viverem com os olhos grudados nas telas de seus smartphones (eu mesma sofro disso em um grau que já considero elevado demais e preciso me desintoxicar, reduzir, por mais que estar constantemente conectada faça parte da minha profissão); quanto no sentido (infelizmente) literal, em que são capazes de tirar suas próprias vidas, anônimos e celebridades.

Podemos citar o caso de Stephen “tWitch” Boss, afro estadunidense no auge de seus 40 anos que tirou a própria vida no último dia 13, deixando mulher e filhos. Stephen era dançarino, coreógrafo, ator, produtor e personalidade de TV de hip hop desde 2008, em que obteve o segundo lugar no programa “So You Think You Can Dance” (SYTYCD). De 2014 a maio deste ano ele participou repetidamente do “The Ellen DeGeneres Show”, como apresentador convidado, e também foi co-produtor executivo do programa.

Boss tinha uma carreira e vida “aparentemente” ótimas. Com mais de 1,2 milhão de seguidores no Instagram, esses números de nada valeram diante da doença mais silenciosa, banalizada e solitária que há, sendo conhecida como “o grande mal do século 21”: depressão.

Considerando que as redes sociais giram em torno da aparência e da imagem que as pessoas nos mostram, em contraposição ao conteúdo, à essência, ao seu real estado de espírito, nesse aspecto, não posso bater o martelo e afirmar que Gkay seja um ser humano ruim, em seu caráter, mas que é uma pessoa que aparentou ser ruim, ao menos ao longo desse último ano, em que foi alvo de inúmeras polêmicas, que envolvem maus tratos de funcionários, colegas e “ataques de estrelismo” da parte dela. E, na sociedade atual, aparentar é o mesmo ou até mais valioso do que o ser. Infelizmente.

Os fatos e desdobramentos envolvendo Gkay fizeram-me pensar em como a “sociedade do espetáculo” – termo cunhado por Guy Debord no livro homônimo publicado em 1967 – ainda se aplica ao mundo atual, tomado pelas redes sociais e por essa onda de influenciadores que elevam a “imagem“, a aparência ao mais alto patamar, a ponto de nada mais importar e das pessoas e situações serem julgadas/avaliadas unicamente com base em suas imagens.

O autor, em sua obra que faz parte da teoria crítica marxista, define “espetáculo” como sendo o conjunto das relações sociais mediadas pelas “imagens” – entende-se, aqui, por imagem como o visual, a aparência, o externo, o que é visto por fora. Mas Debord também deixa claro que é impossível separar essas relações imagéticas das relações sociais, da produção e do consumo de mercadorias, sejam elas palpáveis ou não, como as desenvolvidas pela “indústria cultural“, conceito apresentado por Theodor Adorno Max Horkheimer, no livro “Dialética do Esclarecimento“, exatos vinte anos antes de Debord, em 1947.

Para Adorno e Horkheimer, a cultura popular era semelhante a uma fábrica que produz bens culturais padronizados e que eram usados para manipular a sociedade de massa, tornando-a passiva e alheia às verdadeiras questões às quais ela deveria se atentar. Mais de 70 anos depois, salvas as devidas proporções e adaptações, isso ainda (e infelizmente) ocorre. Em maior ou menor grau, dependendo do nível de desigualdade social e de como as classes sociais se organizam.

O mundo como um todo, com destaque para a sociedade brasileira da qual faço parte, tem um instinto primitivo por consumir notícias negativas e as repercutir mais que as boas novas. Somos um povo ainda bastante sensacionalista. Não à toa que as polêmicas, a fofocas, os boatos, as “tretas” e brigas movimentam tanto as redes em nosso país, gerando engajamento, likes, curtidas, comentários e compartilhamentos sem fim. Por isso muitos famosos e pseudofamosos são adeptos do “falem bem ou falem mal, mas falem de mim”, parafraseando MC Melody, rs!

Todo esse sensacionalismo e espetáculo sob os holofotes ganham grandes lentes de aumento nas redes sociais. Esse fenômeno corresponde a uma fase específica da sociedade capitalista, em que tudo pode/deve ser registrado, compartilhado, exposto em busca de monetização a qualquer custo. Tudo deve ser divulgado e, consequentemente, mercantilizado/monetizado, nessa lógica de que “vale tudo” por likes e engajamento.

Muitas pessoas, com destaque para os influenciadores, passaram a não ter limites de exposição. Compreendo que eles vivam e dependam disso, mas é fato que se chegou ao ponto de não existir mais discernimento entre esfera pública e privada. Pessoas filmam e postam indiscriminadamente sobre suas vidas, os aspectos positivos e negativos, colocando-se até mesmo em risco (revelam onde moram, hábitos, expõem crianças, um prato cheio para criminosos). Essa superexposição, a meu ver, desenfreada e doentia gera seus bônus (influência, fama, dinheiro, relevância, bajulação) e ônus (ataques, ofensas pesadas, cancelamentos, falsidade, inseguranças, crimes e afins).

Quem pretende entrar nesse mundo, que costuma ser vantajoso e cruel na mesma medida, deve ter tudo isso em mente e buscar se fortalecer psicologicamente de antemão. Caso contrário, poderá chegar ao nível a que Gkay e outros influenciadores tão grandes quanto ou até maiores do que ela chegaram, a ponto de terem fama e serem idolatrados fervorosamente por uma parcela da população, e odiados, na mesma proporção, por aqueles de fora de sua “bolha/cercadinho”.

Além de uma análise do ocorrido do ponto de vista da teoria crítica da mídia a serviço do capitalismo, também gostaria de destacar que me surpreendi muito com mulheres que admiro tentando defender com argumentos contraditórios Gkay e demonizar Porchat, considerando apenas o fato dela ser mulher e nordestina. Somos humanos e partimos de nossas identificações quando vamos analisar uma pessoa ou suas atitudes, mas não podemos não limitar ao que temos em comum. Não podemos ser superficiais dessa maneira. Precisamos opinar após análise de várias camadas existentes. Caso contrário, muitas vezes estaremos fadados ao erro.

Como mulher feminista, negra, periférica e socialista, acredito que algumas mulheres progressistas, de maneira inconsciente, acabaram perdendo a mão ao defender Gkay indiscriminadamente. Acredito que tenham pensado coisa do tipo: “meu Deus, tem uma mulher, nordestina e “fora do padrão” sendo atacada. Eu tenho que a defender”. Mas o fizeram de forma apressada, irracional, meio contraditória e até sem nexo, sabem? Algumas vezes até surtindo o efeito contrário, a ponto de gente, que concorda ou não com a opinião, comentar, em tom de piada/deboche: ” é fã ou hater?”; “você tentou realmente defender, amiga? Pois, se foi, o que você falaria se a estivesse atacando?”; “Parece até a Chiquinha do “Chaves” tentando defender o Seu Madruga, chamando-o de tudo quanto é nome, antes de (tentar) o defender sem sucesso”.

Vi alguns textos de defesa sendo infelizes mesmo, tentando “passar pano” para situações e atitudes realmente reprováveis, de vários pontos de vista. Tentando justificar o injustificável, como exemplo: usar de argumento de saúde mental fragilizada para defender reiterados maus-tratos com funcionários, colegas de trabalho e subordinados. Isso não existe.

Quanto mais eu estudo sobre o feminismo, mais percebo que devemos tratá-lo de maneira interseccional. Ou seja, devemos entender que existem outras opressões além do gênero. Esse olhar leva em consideração raça, classe social, origem, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, entre outros fatores. O feminismo não pode estar descolado dessas questões, para não metermos os pés pelas mãos. Digo isso por experiências próprias anteriores. Vivendo e aprendendo sempre, não é mesmo?

Perdoem-me pelo longo texto, mas eu realmente precisava passar para o “papel” os pensamentos (até o momento) que tenho sobre tudo o que vem ocorrendo. Agradeço aos que chegaram até aqui e desejo um próspero ano novo a cada um. Que nesses últimos dias de 2022 possamos refletir acerca do ano que se finda, para que 2023 seja de renovação e constante evolução para todos nós.

NOTA

Não deixe de curtir nossas mídias sociais. Fortaleça a mídia negra e periférica

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