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O LEGADO AINDA QUEIMA: CAÇA ÀS BRUXAS

Não vim contar histórias, “causos”, balelas, invencionices ou simplesmente mentiras, três dia após 1º de abril. Acredite, a fogueira ainda queima e a violência contra a mulher é o retrato da caça às bruxas. A frase “uma mulher morre a cada 6 horas” ecoa como um trecho de um disco arranhado, repetindo-se infinitas vezes. Muitas dessas mortes poderiam ser evitadas não fossem banalizadas e toleradas. Acredite, oito em cada dez mulheres se consideram mal informadas a respeito da Lei Maria da Penha, segundo o Mapa Nacional da Violência de Gênero.

No seu e no imaginário de tantos outros, bruxa é uma mulher que voa, cozinha pessoas em caldeirões, má, cansada, velha, solteira, de cabelos brancos, com uma verruga peluda no nariz e possuidora de uma risada assombrosa, associada a uma figura maléfica, feia e perigosa. No dicionário Houaiss é a de “alguém que não se goste”. A feminista americana Robin Morgan afirma em “Sisterhood is Powerful” que “as bruxas sempre foram mulheres que se atreveram a ser corajosas, agressivas, inteligentes, não conformistas, curiosas, independentes, sexualmente liberadas, revolucionárias”.

Confessar ser ou não bruxa não modificava o veredicto – culpada. Lentamente fomos transformadas em “bruxas” e nossos corpos violados enquanto território. Todos os dias somos assassinadas por parceiros ou ex, por familiares, por desconhecidos, estupradas, esganadas, espancadas, mutiladas, negligenciadas e violadas. A caça às bruxas criou consequências irrecuperáveis até hoje, somos mortas em vida durante o ciclo da violência até a morte definitiva. Choro dia após dia frente às notícias que se tornaram corriqueiras, permitidas e socialmente aceitáveis, impondo o arquétipo de corpo-território ao corpo feminino no âmbito privado e público. Queimamos desde cada assovio aparentemente inofensivo ao atravessar a rua, até casos extremos de relacionamentos abusivos, com violência sexual e morte.

Muitos acreditam que a caça às bruxas faz parte do passado, ela nunca acabou: F. foi torturada pelo marido durante um mês na frente do filho de um ano antes de morrer. C. já tinha registrado queixa por violência doméstica na delegacia contra seu assassino. D. foi morta na frente dos filhos pelo marido, que já tinha sido preso três vezes por agredi-la. V. foi assassinada com 19 facadas pelo pai do seu filho de 7 anos, que não aceitava o fim do relacionamento. C. teve o rosto, costas, braço e o colo queimado por ácido sulfúrico. L. foi encontrada dentro de uma caixa de isopor, em sua casa.

A história não é contada pelas mulheres, até o século XIX os registros eram feitos por/para/sobre homens. Sob nossa narrativa nomeamos o problema, feminicídio, mortes anunciadas. A caça às bruxas é a declaração de morte às mulheres, sejam elas brancas, negras, lésbicas, bissexuais, trans ou quaisquer outras que não se encaixam nos ideais de feminilidade e heterossexualidade. Somos odiadas apenas por sermos mulheres, muito antes da primeira fogueira.

As fogueiras nunca afetaram todas as mulheres da mesma maneira, assim como a violência contra a mulher (VCM). Algumas mulheres serão e são consideradas mais “merecedoras” de seus direitos do que outras, até mesmo no caso do direito mais essencial à vida. As mulheres negras carregam o peso do simbolismo da máscara usada por Anastácia e representam 62% das vítimas de feminicídio no Brasil.

São Paulo registrou 1.081 casos em 2023 no Brasil, e 68,3% das mulheres assassinadas com armas de fogo eram negras, segundo a pesquisa O Papel da Arma de Fogo na Violência Contra a Mulher, do Instituto Sou da Paz. Segundo a juíza auxiliar da presidência, Karen Luise Pinheiro, com atuação no Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), “apenas o critério do gênero não é suficiente para proteger a mulher negra, faz-se necessário utilizar ‘a chave de leitura de gênero e raça’, a chamada interseccionalidade”. Segundo Jurema Werneck, médica, doutora em comunicação e cultura, integrante do Grupo Assessor da Sociedade Civil Brasil da ONU Mulheres, “o racismo patriarcal nos torna alvos e apenas a morte nos iguala. Mulher negra e mulher branca são iguais enquanto mortas. Entretanto, as políticas, os processos de prevenção e reparação não são iguais. Tirando o fato de estarmos iguais enquanto corpos mortos, em todo o resto é diferente”.

Somos silenciadas de diferentes formas, seja por comportamentos ensinados desde a infância, por ameaças, pela violência que nos nega a voz e a credibilidade quando denunciamos. Marcela Lagarde, antropóloga e feminista, responsabiliza o Estado quando não dá garantias para as mulheres e não cria condições de segurança para suas vidas na comunidade, em suas casas, nos espaços de trabalho e de lazer. Sobretudo quando não realizam com eficiência suas funções, dito isto, o feminicídio advir a ser crime de Estado.

Ao se referir à máscara de Flandres, Conceição Evaristo afirma que “nossa fala estilhaça a máscara do silêncio”. Fala materializada pelo artista visual Yhuri Cruz na obra Anastácia Livre. Denunciar a violência é um ato de coragem onde as reações da sociedade são muitas vezes de descrença e minimização.

Em março deste ano, a Operação Átria acolheu 129.932 mulheres. Os principais crimes apurados no âmbito da operação foram: feminicídio (tentado ou consumado), lesão corporal, descumprimento de medida protetiva, injúria, ameaça, difamação, estupro, sequestro e cárcere privado e perseguição (stalking). Foram realizadas 17,5 mil ações educativas, com mais de 7,2 milhões de pessoas alcançadas, através de ações em 1.765 municípios dos 26 estados e do Distrito Federal.

Segundo a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), “dizem que fomos silenciosas historicamente. Mentira. Fomos silenciadas, mas sempre continuamos falando, embora, muitas vezes, não sendo ouvidas”. A cultura do silenciamento, põe em silêncio não só a voz, mas o corpo, forjando os paradigmas de submissão, domesticidade e obediência.

Ao pensar no corpo como território, o feminicídio é a ultima instância de controle da vida e morte da mulher pelo homem. Pasmem, há sempre uma justificativa com o intuito de tornar o ato legítimo.  Eis o feminicídio justificado, determinando quais são as mulheres que devem viver e quais não. Através da tese “legítima defesa da honra” os caçadores/agressores não são culpados pelos atos,  inverte-se o cenário de violência contra a mulher e ele se torna “herói”.

A violência é banalizada a ‘crimes passionais’, por expressões como “ciúmes” ou “inconformismo com o fim do namoro”. A sociedade, as redes sociais e talvez até você, questionam o que essa mulher fez para ‘merecer’ aquela violência, como se houvesse alguma justificativa para um homicídio.

Segundo Aparecida Gonçalves, secretaria nacional de Enfrentamento à VCM da Secretaria de Políticas para as Mulheres (2003 a 2015), “precisamos afirmar com veemência que a mulher não é culpada pela própria morte”. Segundo a senadora e autora da PL 2.325/2021, aprovada em 2022, Zenaide Maia (PROS-RN), “a lei proíbe o uso da tese de “legítima defesa da honra” para atenuar a pena ou absolver acusados de feminicídio na Justiça”.

Quando uma árvore pega fogo, não demora muito para que toda a floresta esteja em chamas.

Canais de denúncia

O Disque 180 é um serviço gratuito e disponível 24 horas por dia para atendimento a denúncias de violência contra a mulher. Os números 197 (Polícia Civil) e 190 (Polícia Militar) também são disponibilizados às vítimas.

Siga-me: https://www.instagram.com/fabianasilva.jornalista/

NOTA

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12 respostas

  1. D. Foi espancada dentro de um gol bolinha branco na frente da escola de samba Rosas de Ouro em SP. Até desfalecer e levada ao hospital, agonizando, com a boca toda estourada, com supercilio aberto, sem calçado, roupas rasgadas, com o pescoço lesionado, como se tivesse sofrido um acidente na rua.
    Foi a história que ele contou. Segundo “namoradinho”, o primeiro namorado “sério” a sentar no sofá da avó dela, o pai da filha dela.

  2. D. 17 anos, foi espancada dentro de um gol bolinha branco na frente da escola de samba Rosas de Ouro em SP. Até desfalecer e levada ao hospital, agonizando, com a boca toda estourada, com supercilio aberto, sem calçado, roupas rasgadas, com o pescoço lesionado, como se tivesse sofrido um acidente na rua.
    Foi a história que ele contou. Dizendo que foi provocado, por ciúmes. Segundo “namoradinho”, o primeiro namorado “sério” a sentar no sofá da avó dela, o pai da filha dela.

    1. Que a mulher que habita a D, esteja no processo de empoderamento e entenda que a agressão justificada é uma ferramenta do agressor, culpabilizando a vítima.

  3. SENSACIONAL !
    Finalmente as mulheres podem ver uma luzinha no final do túnel !
    Que as oportunidades de se expressarem continuem !

  4. Reflexões necessárias,. sobretudo porque foram escritas por uma mulher preta. Vilipêndio, é aliado da VCM, muitas vezes, são consideradas armas de um vilão chamado epistemicídio. Oportunizar espaços de notório acesso, para profissionais incríveis como a Jornalista, pesquisadora, produtora, mãe, filha, esposa e amiga Fabiana Silva, é uma forma também, de combater uma parte dessa violência. Ótimo artigo! Asè!

  5. Muito do que li aqui lembrei de alguns trechos do livro de bell hooks, onde apresenta o ódio que o homem tem da mulher, e tbm do filho que nasce idolatrando a mulher e cresce e aprende a enxergar como herói o pai…. Texto maravilhoso… Obrigada Fabi

  6. Que artigos maravilhoso!! Acabei de ler, e sim precisamos denunciar, e nos entendermos como uma única voz diante de todo esse caos desumano contra nossos corpos.

    1. Infelizmente poucas são as mulheres que rompem o silêncio e muitas das vezes, ao fazer são silenciadas de diversas formas.

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