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Neon Cunha e a Materialização de uma Utopia Trans e Negra

 

É uma honra inaugurar as entrevistas desta coluna com figura tão importante e cara para nosso movimento. Ao iniciar nossa conversa me deparo com uma mulher trans e negra e ameríndia, em seus 52 anos, idade essa que afirma não ter tanto significado material em si, considerando que enquanto uma travesti negra, oriunda de família empobrecida na região do ABC Paulista, foi obrigada a amadurecer muito cedo. “Que infância é essa em que tive que trabalhar desde os 4 anos na faxina com minha mãe?” indaga.

E foi no ABC, crescendo no contexto de ditadura, que Neon também conheceu a violência, na escola, nas boates, nas ruas. Neon relata a vivência com outras travestis e mulheres trans nos anos 1980, contexto de muita truculência e abuso policial, mas também de desenvolvimento de uma consciência coletiva.

Em 2016, a patrona da Casa Neon Cunha, que carrega o nome em sua homenagem, ingressou com ação na justiça estadual requerendo a retificação de seu nome e gênero no registro civil sem a necessidade de provas ou laudos, exigindo que fosse reconhecido seu direito à identidade de gênero. Subsidiariamente, Neon requereu que caso fosse negado seu pedido, fosse então autorizada sua morte assistida, tendo em vista que uma vez negada sua existência, ao menos tivesse o direito de escolher morrer de forma digna, já que, segundo ela “não somos mortas, somos executadas. Há um desejo de eliminação de nossos corpos e existências”. A ação, por fim, lhe possibilitou a retificação e foi importante precedente no judiciário paulista, influenciando posteriores decisões pelo próprio STF, com o Recurso Extraordinário n.º 670.422, julgado em 2018.

Hoje, Neon se coloca como opção de pré-candidata à deputada estadual para a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo pelo PSOL, Partido Socialismo e Liberdade, o qual diz ter escolhido por convicção enquanto ativista independente, “a direita não me cabe, como uma mulher negra trans”, pontua. Sua opção em ocupar a política institucional vem como um ato de “responsabilidade afetiva”, pois “já estamos em todos os outros campos de enfrentamento e estaremos também neste”. E, ainda com o cenário gritante de violência política contra mulheres negras e trans, Neon não retrocede, resgatando os dizeres da escritora Conceição Evaristo “eles combinaram de nos matar, e nós combinamos de não morrer”, e complementa, “o que eles não contam é com nossa potência diante da resistência deles”. 

A ativista independente frisa a importância da interseccionalidade em todos os movimentos que constrói, seja como patrona da Casa Neon Cunha, centro de resistência LGBT em São Bernardo do Campo, ou nas articulações da Marcha das Mulheres Negras. Ela resgata memórias como o caso de Cláudia Ferreira, mulher cisgênera negra brutalmente assassinada pela polícia em 2014, tendo seu corpo arrastado por uma viatura. Neon nos mostra que violências semelhantes acometem também travestis, pontuando como a desumanização perpassa a esses corpos marcados pelo racismo e a transfobia. “Quando falamos de família tradicional brasileira (em contexto conservador), não estamos falando de uma família preta, assim como não falamos de uma família trans”.

Porém, mesmo com mortes e violência, Neon ainda assim deseja disputar o espaço da Assembleia Estadual Paulista, campo político tão tradicional e conservador. A ativista afirma que é a cisgeneridade que tem a ganhar com nossa presença “Quando entenderem o quanto transformamos conceitos e possibilidades, verão que o mundo todo ganhou.”

Ela que atua no ramo da moda, é funcionária pública e ativista independente, também se coloca agora como pré-candidata a deputada estadual, aos seus 52 anos contraria as estatísticas para a população trans e travesti, cuja expectativa de vida no Brasil é de 35 anos segundo a ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Quando perguntada sobre a simbologia de envelhecer enquanto uma mulher negra transgênera, responde “vejo que sou a materialização de uma utopia”, e deseja que as travestis e meninas trans do amanhã possam sonhar e viver tudo que ela não teve possibilidade, pois “nós, ainda que vivendo num mundo que só quer nossa morte, temos fome de vida”. 

Essa é Neon Cunha, uma força da natureza e filha de Oyá. Que sua voz ecoe por todas nós e que possamos investir no projeto político que ela representa por sua simples existência. Se hoje a vida de Neon é a materialização de uma utopia trans e negra, imaginemos a potência de um mandato com sua cara e suas bandeiras. Que sua força e axé cheguem à ALESP! Bora!!!

 Autora: Victória Dandara

Apoio Técnico: Ingrid Mariano

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