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NARRATIVA DO SER-SE NEGRO ATRAVÉS DA INDUMENTÁRIA

Ouça.  As vozes da África narram histórias através dos panos, removem a cegueira e resgatam nossas identidades dentro das muitas Áfricas. Áfricas devido, sobretudo, à enorme diversidade que o continente africano apresenta. Identidades no plural, frente a nossa capacidade de outrar-se.

Outrar-se, refere-se  ao fenômeno  de adotar várias personalidades. Ao nos perguntarmos quem somos nos colocamos, automaticamente, na posição de outro. Eu sou o que sou porque não sou o outro, mas, ao mesmo tempo, aquele outro me define. Reconhecer o outro, implica em articular uma trama onde a identidade deixa de ser algo fixo, torna-se fluída e gera múltiplas identidades.

Marca KUAVI ÁFRICA / Desfile BÉHNZIN em homenagem a independência de Benim (61anos) / Realização DJEMBE PRODUÇÕES E ENTRETENIMENTOS

Não fomos paridos pelo ventre de um navio negreiro. A oralidade rasga as emendas e temos acesso a nossa vida pregressa. Ao abrir a mala, a fratura é inevitável, eis o mosaico cultural, a diáspora. Um olhar mais atento acusa a falta de uma personagem tão participativa: a indumentária. É ela quem ocupa lugar entre as culturas deixando de ser um adereço temático, um elemento estrangeiro.

É fato que não podemos afirmar que toda população negra se identifique com suas raízes através da moda afro-brasileira devido a  hibridização cultural. Verdade seja dita, a indumentária africana nos conecta ao continente ancestral de uma maneira não-verbal.

Repensamos e remontamos versões, para além dos cacos que nos levam a construção de uma história única sobre nossa identidade e do ser-se negro costurada a tradição oral e à oralidade. A oralidade manifesta-se através do exercício de contar histórias.

E pensar que durante muito tempo julgou-se que escrita e cultura estariam necessariamente ligadas e que, portanto, povos sem escrita seriam povos sem cultura.

Cerca de 5 minutos a pé separam a estação do metro Vila Mariana e o prédio onde fica a loja do estilista Abbé Tossa, do Benim. Abbé veio ao  Brasil através de um intercâmbio para estudar Ciências Biológicas na Unifesp e, em 2018, lançou sua marca, a Kuavi África. 

Evento: ABLODE GBADJA 61 (Independência de BENIM) Estilista: ABBÉ TOSSA

Ela, não fala sobre a África, mas pela África. Uma descolonização discursiva materializada na ruptura com o vínculo placentário, onde a moda africana passa de objeto a sujeito. Que conta histórias de um povo. Em entrevista concedida ao Jornal Empoderado, Abbé Tossa poderia iniciar com a expressão “Kwesukesukela…”, que quer dizer “era uma vez, há muito tempo…”. para celebrar o DIA DE ÁFRICA.

Jornal Empoderado: Para o antropólogo Kabengele Munanga, a historiografia tradicional quer transformar o negro num ser errante. Qual a importância da oralidade e como a usa para contar sua versão da história?

Abbé Tossa: Acho que cada povo tem sua história, sobretudo o povo africano. Leio e escuto algumas histórias sobre África que não condizem com o que realmente aconteceu. A maior parte dos livros espalhados no mundo sobre a África não foram escritos pelos africanos. A verdadeira história africana é contada de boca a boca pelos “griôts”. Eu não sou africano de cidade grande, sou de aldeia, onde a tradição ainda se mantém. Nasci e cresci nessa tradição. O meu objetivo é falar da tradição pura para as pessoas quando vão a loja.

JE: Como enxerga a África? Um só lugar e vários povos ou um só povo e várias Áfricas?

Abbé Tossa: Primeiramente as pessoas precisam saber que África é um continente gigante de 54 países, com 54 governos e 54 realidades diferentes. Apesar das diferenças, temos uma base cultural comum: os alimentos, as roupas e alguns idiomas parecidos.

JE: Alex Zanotelli, missionário italiano e ex-diretor da revista NIGRIZIA, disse: “As riquezas da África são sua maldição”. Como você interpreta essa afirmação?

Abbé Tossa: Ele está certo. O interesse do ocidente nunca foi de conhecer a cultura, mas sim, de explorar as riquezas dos africanos. A África nunca precisou dos outros, são os outros que sempre precisaram da África.

JE: Como mantém a África viva dentro de você? 

Abbé Tossa: Nada melhor do que a terra natal. Sinto saudades de muita coisa. A alegria do povo. O calor familiar. A sociedade africana é baseada no coletivismo, sinto muita falta disso aqui no Brasil.  A mantenho viva através do meu trabalho com a moda africana, nas estampas, nas cores bem vivas. Além das roupas, gosto de encontrar amigos africanos e conversar nos nossos idiomas. Adoro cozinhar comida africana em casa com alguns ingredientes que compro aqui mesmo. Mas não chega a ter o sabor original africano. As vezes peço a amigos que tragam  de lá alguns  ingredientes.

JE: Como nasceu a marca Kuavi África? E o que a difere das outras marcas africanas?  

Abbé Tossa: A marca Kuavi nasceu justamente para valorização da cultura africana. Além das roupas, a Kuavi atua no ensino dos idiomas Yorubá, jeje (Fongbe), inglês e francês. Fazemos ainda palestras sobre turismo na África. Seu diferencial são as roupas sob medida, a qualidade dos tecidos da Kuavi, a alta costura dos looks e a garantia .

JE: Como a cultura Yorubá faz parte da sua vida?

Abbé Tossa: No meu país, o Benim, existem várias etnias. Não sou dessa etnia mas convivi com eles desde criança. A influência da cultura yorubá é muito relevante no país inteiro, principalmente o estilo de vestir.

JE: A moda conta de onde somos, quem somos. Fala sobre espaços de memória, geográficos e família. Como a marca Kuavi África conta essa história?

Abbé Tossa: Além da beleza, as estampas africanas carregam mensagens codificadas que contam histórias, mensagens simbólicas de sorte, de resistência, de paz. A Kuavi conta essa história conectando os brasileiros com a África principalmente os afro descendentes, através das roupas feitas com os tecidos importados de lá. Para a Kuavi, a moda é uma linguagem de expressão.

JE: Na SPFW 43 (2017), o rapper Emicida revelou sua fórmula de ouro: “Raízes, memória afetiva, samba e Dona Jacira”. Emicida relata que sua mãe, Dona Jacira, só sabe bordar se tiver uma história pra contar. Qual a influência de sua mãe, nas histórias que hoje você conta através da Kuavi?

Abbé Tossa: A historia é longa. Minha mãe é minha inspiração. Inclusive o nome Kuavi é o nome dela. O verdadeiro nome . O dia que fiquei sabendo o verdadeiro nome dela, fiquei com boca aberta (rsrs). Tem umas etapas de casamento na minha etnia muito interessantes.

JE: Segundo o escritor nigeriano, Chinua Achebe, “A identidade africana ainda está em formação”. Você concorda? Qual a sua interpretação deste pensamento e como a marca Kuavi África tornar-se ferramenta no processo de “identificar-se” e ser “identificado” ?

Abbé Tossa: Claro.  Permanece em formação e acredito que a globalização acelera esse processo, onde as redes sociais são cruciais. A Kuavi torna-se ferramenta ministrando palestras, oferecendo curso de yorubá e jeje (Fongbe).

JE: Frente a hibridização cultural, onde parte da população negra não se identifica com a moda africana e afro-brasileira, como a marca lança mão do conceito de Sankofa no resgate da ancestralidade?

Abbé Tossa: Problema está justamente nesse ponto. A população negra aqui no Brasil passou anos sem saber da verdadeira história dos seus ancestrais. O negro brasileiro não sabe a sua verdadeira origem. Estamos numa era onde as pessoas precisam ter identidade. O meu trabalho é explicar que através das roupas africanas  as pessoas podem  e se conectam com sua origem. Essas roupas são símbolos de luta e de resistência também.

JE: Quanto melhor uma história é contada, mais forte tende a ser sua lembrança, mais valor damos a ela. Como a  Kuavi remenda a roupa às histórias e memórias confidenciadas sobre a África?

Abbé Tossa: A Kuavi dá palestras sobre os significados que as estampas africanas carregam. Ministramos em várias escolas, colégios e universidades palestras sobre a história e a cultura africana. Fico muito feliz quando vejo o brilho nos olhos das pessoas, quando entram a fundo na história africana. Lembrando mais uma vez, a verdadeira história africana é contada oralmente. Não confie em algumas histórias contados em alguns livros escritos por autores  não  africanos .

JE: Quais as memórias e referências presentes na produção das suas coleções e como essas referências são vistas entre os estilistas africanos e de moda afro-brasileira?

Abbé Tossa: Há uma variedades de estampas africanas e nem todas carregam mensagens codificadas. Algumas são pura arte africana. Eu procuro usar as estampas étnicas, as estampas mais tradicionais. Quando finalizo uma roupa, uma tal estampa, sinto uma sensação muito satisfatória. Nem todo africano entende as estampas africanas. Tem a influência da colonização e a religião. Penso que alguns estilistas africanos e de moda afro-brasileira tem foco comercial.

O propósito da Kuavi é mais do que comércio. É mais do que negócio. A emoção, a sensação que os clientes sentem nas minhas roupas é outra coisa. E imagino que um dia, as roupas africanas chegarão a ser roupa de dia a dia e não apenas para ocasiões específicas.

 

 

NOTA

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