Descobrir-se negro(a) é uma das melhores coisas da vida. Historicamente, a população negra brasileira foi forçada desde o processo de colonização a renegar a sua cultura, seus traços físicos e sua religião. Os seres humanos que aqui desembarcaram, como escravos, como mercadoria, no processo de desumanização, de coisificação, passaram por um árduo processo de aculturação forçada, e o primeiro passo veio com a aceitação a religião do conquistador europeu.
Os reflexos dos tempos escravagistas ainda persiste na população brasileira atual e, as maiores vítimas desse processo são as mulheres negras, forçadas a seguir um “padrão de beleza” eurocêntrico, que em nada se assemelha ao seu biotipo. A menina negra é forçada desde criança a manter os seus cabelos amarrados, a ter vergonha de seus lábios grossos, de seu nariz e da sua pele escura. Tente encontrar produtos infantis femininos com temática afro e veja que, mesmo nos dias atuais, ainda é difícil achar cadernos, estojos e demais utensílios escolares.
Quando a menina e o menino se “descobrem negros”, geralmente esse processo vem acompanhado de manifestações racistas, que os colocam em posição inferior e as mesmas ocorrem em situações de conflito, a clássica luta de classes de Marx. O descobrir-se, mesmo surgindo em momento de extrema dor, física e psicológica, aos poucos, gera um sentimento de auto-afirmação, de valorização e busca pelas raízes perdidas (já que todos os documentos e demais registros históricos sobre as origens e procedências da população africana estão perdidos ou foram destruídos) a começar pela valorização dos cabelos afro, das músicas com raiz africanas etc. Geralmente este “descobrir-se” surge no período mais conturbado da vida humana, na adolescência, onde o jovem busca a todo momento inserir-se em um grupo social, ser aceito em um ambiente externo, fora da proteção familiar.
O Brasil do século XXI vem passando por uma mudança político-social e, se em anos anteriores a população negra era cerceada de sua cultura, suas músicas eram marginalizadas (como o samba nos anos 10-20 e o rap nos anos 80-90), a partir dos anos 2000, principalmente através da lei 10639/03 (que obriga o ensino de cultura e história africana em salas de aula), que disponibiliza e reconhece a importância da população africana para a formação do povo brasileiro, algo negligenciado por décadas nas escolas brasileiras. O aluno de hoje tem acesso a cultura africana e o mesmo consegue compreender que, muitos esteriótipos eurocêntricos ainda hoje impostos pela grande mídia, não condizem com o perfil da população brasileira, onde conforme citado pelo último censo oficial (2012), negros e “pardos” (designação racista utilizada para esconder a africanidade da população, retirando a identidade de boa parte dos brasileiros) compõem o grupo majoritário, sendo 53% do povo. Exatamente pelo acesso a história africana e ao reconhecimento cultural que hoje, cada vez mais jovens estão assumindo a sua “africanidade”, para desespero dos adeptos da farsa denominada “democracia racial”, tão propagada pelos detentores dos veículos de mídia.
A cada cabelo black, a cada cabelo crespo solto, temos um grito de liberdade, que deve ser ouvido e que deve ser respeitado.
Texto originalmente publicado no blog O Amigo do Povo, de minha autoria, link abaixo:
Descobrir-se Negro, o rompimento com o racismo institucional