Nesta quarta-feira, 08/07, a Assembleia Legislativa de São Paulo discute o Projeto de Lei 976/2019, que declara José de Anchieta Patrono da Educação no Estado de São Paulo. Não citarei o nome do proponente para não lhe dar audiência. Ele não merece, creiam. Mas, antes de qualquer coisa, é preciso reforçar que o respeito a todas as religiões deve prevalecer. Pelo menos para parte das pessoas, a palavra “Respeito” vem acompanhada de atitudes concretas. Não se deve “tolerar” nada porque “tolerar” (suportar ou não impedir) é uma palavra muito controversa neste sentido. É preciso haver RESPEITO verdadeiro.
Dito isto, é fundamental que sejamos completamente contra fazer de São José de Anchieta patrono da Educação no Brasil. Sabemos, aliás, que se trata de mais uma provocação da extrema direita para, simplesmente, manter o engajamento de sua claque. Ou seja, não é um debate sério, honrado, que tenha a educação como foco. Se a preocupação do deputado proponente fosse a educação, ele deveria estar mais atento ao fato de que não temos, até hoje, uma liderança adequada no Ministério da Educação. Aliás, os dois ministros da educação deste governo só envergonharam o Brasil (não considero que o último tenha sido ministro por sua nomeação relâmpago). Temos confusões sobre o calendário do ENEM, ofensas desnecessárias a grupos étnicos, professores universitários sendo demitidos todos os dias, escolas particulares fechando, professores de escolas públicas com sobrecarga de trabalho, crianças sem comer e sem estudar por não terem internet em suas casas, professores eventuais sem emprego há meses, problemas com merendas, cortes e mais cortes em bolsas de pesquisas e o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) que expira em 2020. O Fundeb ainda não foi votado na Câmara dos Deputados como política permanente, o que coloca toda a estrutura da educação pública brasileira em perigo.
Não é razoável que, em pleno século XXI, quando debatemos a diversidade de etnias e culturas do Brasil, nós pratiquemos um retrocesso nomeando, com todo o respeito aos cristãos sensatos, uma personalidade que chegou nestas terras não para educar, mas para doutrinar e corromper a cultura dos povos tradicionais do território que ficou conhecido como Brasil. Neste ponto, Paulo Freire, o grande patrono da educação no Brasil, sai na frente porque propunha uma educação emancipadora, que buscava a autonomia intelectual das pessoas. Não se quer aqui fazer comparações entre duas personalidades históricas de épocas completamente distintas. Mas, em algum momento, precisamos lidar com nossas feridas expostas, como muito bem defendeu o uruguaio Eduardo Galeano em sua obra “Veias Abertas da América Latina”.
De acordo com Marcia Pimentel, no artigo “Anchieta e os primórdios da educação no Brasil”, o padre José de Anchieta é chamado de “Apóstolo do Brasil”, sendo essa uma comparação com o trabalho de evangelização dos 12 apóstolos de Jesus Cristo. Para os jesuítas trazidos pelos colonizadores, “o cristianismo era considerado a religião que traduzia os princípios humanos universais, o foco do trabalho pedagógico de seus missionários estava fundamentado na formação de fiéis a Cristo e, por conseguinte, ao Papa e à Coroa”.
Pois bem, se hoje o Estado é LAICO, não podemos ter como patrono da educação brasileira uma pessoa que misturava doutrinação religiosa colonialista cristã com educação formal, mesmo que se venha com aqueles argumentos eternos de que o “contexto histórico” era outro e de que “é preciso separar o homem de seu tempo da sua obra”, entre outros recursos retóricos. Pois então, usemos o mesmo argumento: o contexto hoje é outro! Suponhamos que uma escola de ensino fundamental, conveniada com alguma prefeitura, recebendo dinheiro público, carregue o nome de “EMEI Tradição de Anchieta – Aqui seus filhos aprenderão, com o método cristão de educação, a abominar culturas não cristãs”, mesmo o Estado sendo LAICO. Inaceitável? Sim! Porque o contexto é outro.
É grave, muito grave, que alguns representantes do povo, diante de um esforço imenso em se aplicar a Lei 10.639, legislação que busca estabelecer a verdadeira identidade nacional e diversidade cultural do povo brasileiro, ofereçam às crianças um patrono que simplesmente não reconhecia a cultura local como uma cultura em si! Ainda no artigo de Pimentel, registra-se que o maior objetivo de Anchieta era a catequese e que, “para isso, convivia, diariamente, com os indígenas e priorizava o ensino das crianças”. “Temos uma grande escola de meninos índios, bem instruídos em escrita e bons costumes, os quais abominam os usos de seus progenitores”, dizia Anchieta em carta datada de 1555, satisfeito com seu projeto colonialista bem-sucedido de destruição cultural. Seu “projeto educacional” era, portanto, descontruir toda uma cultura para incutir outra, sobretudo, nas crianças.
Então vejam, qual é o tipo de recado que estaríamos dando ao povo brasileiro ao apoiarmos um gesto como este? É correto que as crianças indígenas, negras, quilombolas, islâmicas, hindus, ou simplesmente não cristãs “abominem” os conhecimentos de seus progenitores? Não há aqui intenção alguma de apagar a história! O que queremos é que a nossa história, literalmente apagada pelos colonizadores, seja resgatada, reposta, estudada e reconhecida pelo seu povo como deveria ser desde o início. A chamada história oficial carrega consigo um apagamento inequívoco e muito eloquente sobre quais foram os objetivos daqueles que espoliaram, violentamente, estas terras. Somos, sim, filhos e filhas da violência, do estupro, sequestro, roubo e espoliação, tudo isso sob as bençãos da Igreja! Quando eu estava na escola, os livros traziam muito a palavra “conquistadores”, diziam “os portugueses conquistaram o Brasil em 1500”. Hoje, já chamamos de “colonizadores”. Talvez um dia nos sentiremos à vontade para chamá-los do que realmente foram. Neste sentido, fico com o ponto de vista do professor e filósofo, Dr. Silvio Almeida, em recente entrevista ao Roda Viva: “revisionismo histórico é justamente tentar impedir o curso da história”. Aqueles que nos acusam de revisionismo ou apagamento da história são, na verdade, os que querem impedir o trem da história ao querer interditar um debate necessário sobre nós mesmos.
Por fim, os próprios jesuítas dirigentes do Santuário Nacional São José de Anchieta se posicionaram contra proposta de mesmo teor, na ocasião em que o deputado federal Carlos Jordy (PSL/RJ) a colocou em pauta na Câmara dos Deputados a partir do PL 1930/2019. Em nota, os jesuítas chegaram a comparar Paulo Freire à Anchieta, enxergando intenções parecidas em ambos no que se refere à educação e direitos humanos. Um grande absurdo, obviamente, já que, entre tantos pontos distintos, Freire defendeu a emancipação e, Anchieta, a evangelização cristã. Mas é preciso reconhecer que os jesuítas do século XXI enxergaram na proposta do deputado um simples despropósito ideológico e extremista. Que bom!
Nota Oficial do Santuário Nacional São José de Anchieta
Recebemos com preocupação a notícia de que existe um projeto de lei que propõe a substituição de Paulo Freire por São José de Anchieta como patrono da educação brasileira. O Padre José de Anchieta, merece, de fato, todo louvor e reconhecimento pelo imenso bem que fez pelo nosso Brasil, principalmente, no que se refere ao tema da educação. Anchieta, fiel ao carisma jesuítico, sabia que não era possível construir uma nação sem uma atenção especial pela educação. O primeiro professor do Brasil tinha certeza que o futuro de uma Nação dependia da qualidade do ensino de crianças e jovens. O Brasil, mais do que nunca, precisa prestar bem a atenção no que o seu primeiro professor ainda tem a lhe ensinar.
No entanto, na atual conjuntura governamental do nosso País, não podemos aceitar que o legado de São José de Anchieta seja instrumentalizado para fins meramente ideológicos. Reconhecemos a imensa importância do legado de Paulo Freire para o Brasil e para o mundo. Tanto São José de Anchieta como Paulo Freire caminham na mesma direção. Ambos optaram por estar à serviço da educação dos marginalizados. Anchieta, com linguagem e métodos próprios de seu tempo, também foi um “pedagogo do oprimido” quando optou por estar ao lado dos indígenas, educá-los, defendê-los e protegê-los da ambição dos poderosos.
Anchieta não pode ser proclamado patrono da educação em um momento em que a educação não parece ser prioridade na agenda do País. O primeiro defensor do meio ambiente não pode ser admirado em um momento em que nossas riquezas naturais estão ameaçadas. O primeiro indigenista não pode ser reverenciado neste tempo em que vemos tribos étnicas desamparadas e sendo perseguidas e até expulsas de suas terras. O primeiro defensor dos direitos humanos não pode ser elevado aos altares da Pátria quando os indefesos são marginalizados e seus direitos, negados. São José de Anchieta não pode ser usado com fins ideológicos. Pedimos respeito ao seu valiosíssimo legado, que deve sim ser imitado, mas jamais manipulado.
Que Nossa Senhora Aparecida e São José de Anchieta, Padroeiros do Brasil, intercedam pela nossa Nação!
Pe. Nilson Marostica, SJ
Reitor do Santuário Nacional de São José de Anchieta
Pe. Bruno Franguelli, SJ
Vice-Reitor do Santuário Nacional de São José de Anchieta
Anchieta, 25 de maio de 2019
https://crbnacional.org.br/nota-oficial-do-santuario-nacional-santo-jose-de-anchieta/