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DE MEDEIA A MEDUSA – FILHA DE OXUM: CARMEN DA ASSUNÇÃO E O CABELO CRESPO

Na mitologia, a mulher é retratada de forma ambígua. Ora, é vista de forma romântica, como a mãe que nos dá a vida, e outrora as mulheres são travestidas de Parcas e Moiras, temidas e odiadas, porque são elas igualmente que cortam os fios da vida. Mas é nessas histórias ancestrais que temos a oportunidade de ouvir as mulheres negras silenciadas ao longo do tempo, como Medeia, Medusa e Carmen da Assunção de Barros José – @preta_carmen. Lembre-se, ouvir e não escutar é como tirar o pino de uma granada e não lançá-la.

Essa matéria não poderia ganhar outro título. Enquanto feiticeira Medeia, Carmen é uma mulher negra, símbolo de rebeldia e resistência que se doa excessivamente e se defende de forma radical. É a representação de mulher forte, decidida e capaz de trilhar o próprio caminho. Quando ameaçada, fala e grita, é o oposto da mulher demasiadamente dócil e retraída, criada pelo patriarcado. Enquanto Medusa, Carmen não carrega o letreiro “vende-se a carne negra”.

Tal qual a esfinge de Édipo, “decifra-me ou te devoro”, enquanto Oxum, Carmen não é só um útero. Não é só mãe. É mulher. É negra. És rio. És donzela, a madrasta e a bruxa. És guardiã de memórias, ciente de que o nosso cabelo crespo é um cabelo-arquivo.

Carmen, 33, mulher, negra, periférica, profissional da área da beleza negra, professora, trançadeira, empresária e proprietária do Instituto Agatha’s https://www.instagram.com/loja__agathas/ (R. Centralina, 285, Guaianazes, São Paulo, SP). Iniciou sua trajetória aos 13 anos de idade, aos 15 tornou-se mãe e não fez parte das estáticas, por ter uma base sólida.
Através do seu relato, percebo que a cultura de trançar cabelos é passada no ambiente doméstico e se repete como modo de cuidado estético de geração a geração. Começou trançando o cabelo de suas bonecas, vizinhas, amigas e filha.

Dos 17 aos 19, atuou na Galeria do Rock, especializando-se e aprimorando a técnica de trançar. Após ser presenteada por sua madrinha com um aporte financeiro de R$5k, aos 19 anos, em 2009 abre seu primeiro salão – Agatha’s (nome de sua filha) em Guaianazes, com o intuito de remover a régua do padrão de cabelo único. Em 2011 adquire seu segundo salão e se consolida como empreendedora.

Não é de hoje que Carmen desmiuça o papel do cabelo, para além de um serviço estético oferecido, um fator identitário. A mudança da imagem da mulher negra norteada pelo cabelo e a trança é um dos primeiros penteados usados na manipulação dos fios, seguida pelo alisamento capilar. Este, ora é resultado do processo de aceitação, outrora é visto como um facilitador para o manuseio dos cabelos.

Carmen elucida que tanto seu processo de aceitação desde a infância, adolescência e na vida adulta, quanto de sua filha,17, não foram conturbados. As mulheres negras de sua família sempre tiveram seus cabelos trançados por suas mães e avós. Nunca como opção de tentativa de romper com o estereótipo do cabelo “embaraçado e sujo”.

Filha, Agatha,17

Cada mulher negra têm uma relação muito particular com o seu cabelo e essa relação se desenvolve desde a infância á vida adulta. Para algumas, as tranças resgatam boas recordações. Para outras, as tranças tornam-se penteado dolorido, demorado. E mesmo depois de todo este esforço, o bonito era ter cabelos lisos. Afinal, quem não ouviu músicas como “Nega do cabelo duro”, ou expressões como “Cabelo de bombril, esponja, piaçava, pucumã, cabelo ruim” ou “Qual é o pente que te penteia”?

Indico a leitura do livro “Cabelo Bom. Cabelo Ruim”. Rosangela Malachias, aborda a temática cabelo no meio escolar. Aborda o olhar do outro sobre si e o sentido de pertencimento na primeira infância. E no livro “Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano“, Grada Kilomba escreve sobre o mau estereótipo conferido ao cabelo afro na contemporaneidade, onde as mulheres negras eram pressionadas a alisar seus fios para “apagar os sinais repulsivos” da negritude. Tal denúncia, corrobora com a frase “A cor da pele, a princípio, não se pode mudar, mas o cabelo, sim”.

Nascem os métodos de alisamento como o uso do Henê, do pente de ferro (pente quente), produtos químicos à base de guanidina, sódio, formol e chapinhas. Muitas mulheres negras não admitem usar o cabelo de outra forma que não seja alisado, escovado e pranchado. E nem por isso podemos engessar o olhar sobre o alisamento e colocá-lo exclusivamente como uma negação da negritude. Claro que cabelo afro é poder, identidade, mas cada pessoa tem seu momento.

Não à toa o processo de transição capilar tem se intensificado e discute a relação da mulher negra com o seu cabelo natural. Carmen, afirma que este processo engloba em sua maioria mulheres negras de pele clara e não negras, que usam progressiva e se submetem ao alisamento, almejando o cabelo crespo, virgem. Este processo envolve diferentes etapas desde rejeição, aceitação, ressignificação e, em meio às frustrações, muitas recorrem às box braids. Contudo, ressalta que uma mulher negra retinta nunca entra no processo de transição capilar e, sim, num cronograma capilar para recuperar seus fios.

O amor pelo cabelo crespo está em voga e tornar-se negra por meio do cabelo significa entender que não é necessária a aceitação da branquitude, quais acessos têm ou não tem e que luta quer travar diante de uma problemática social como essa. Em seu entorno, Carmen encontra Lupittas, Jill Scott, Taís Araújo e algumas, Camilas Pitanga. Sim! Mulheres negras que estão se amando, amando seus cabelos e com referências próprias. Ela declara amar seu cabelo, entretanto, por ser influencer, a mudança é constante. Optando sempre por cabelos que remetem a poder.

Na contramão do discurso de uma estética única, Carmen utiliza o cabelo como mecanismo de afirmação étnico-racial e “não necessariamente” instrumento de contestação da opressão. Seja crespo, trançado ou alisado, box braids, lace ou twists, Carmen defende a percepção e o resgate da identidade da mulher negra por meio do cabelo e como esse atravessamento atinge a totalidade das mulheres negras.

Diante deste poder conferido pelas tranças, o apropriamento das tranças promove um esvaziamento e apagamento cultural. A modificação de “nagô” para “mandraka” é uma das facetas do racismo estrutural. Querer se passar por negro por conveniência. Cito trecho da música “Não precisa ser Amélia”, Bia Ferreira: (…) Cê tem a liberdade pra ser quem você quiser / Menos preta, indígena /Não se apropria / Quer ser preta dia a dia /Pra polícia cê num é (…).

Questiono a dualidade entre o mercado de trabalho e o cabelo crespo. Em 2021, a revista Social Psychological and Personality Science mostrou que candidatas negras aos mais diversos cargos de emprego no mundo todo – com penteados naturais ou usando tranças afro – são percebidas como menos profissionais do que negras com cabelos alisados. Sendo um cargo de liderança, é um caminho solitário, ainda mais quando ela passa por interseccionalidade de raça e gênero. Carmen elucida que ela nunca é negra e sugere que as empresas devem investir na diversidade não só de cabelos mas de pessoas, pois isto representa uma política de empresa que observa a capacidade antes de estética, como cabelos, pele e traços físicos.

Realizar exclusivamente uma leitura estético-visual não nos empodera, nos torna exóticas – as Smurfetts. Carmen destaca, as tranças têm diversos significados como: posição social, status, etnia, crença e estética. Grande parte da clientela, mulheres brasileiras, buscam a estética, praticidade, a imagem refletida no espelho. Outras reconhecem como um dos elementos que formam a identidade, entretanto, uma identidade que se dilui quando se copia as tranças e não se reverbera os significados, apenas a estética.

Recentemente, o Instituto Agatha’s é uma empresa de médio porte, que há 3 meses, tornou-se ME. Gerida por uma mulher negra e com suporte de mulheres negras, um diferencial que corrobora com a frase dita pelo rapper Emicida – “Nois por, nois”. Carmen ressalta que inúmeras empresas são geridas por pessoas não negras que utilizam funcionários negros para atrair consumidores negros, de modo que o dinheiro sai da mão negra e retorna para as mão das pessoas não negras. Estudando esse mercado, Carmen conhece lojas de chineses que trazem os insumos para o Brasil e fazem mais do mesmo, porém não nos representam. Esse é o diferencial do Agatha’s, a liderança: uma mulher negra, buscando o reconhecimento e a representatividade – de mulher negra para mulher negra, não basta o slogan “de mulher pra mulher”.

Se o Agatha’s é uma extensão da casa, sim! Para além de um salão, é um espaço de pertencimento e acolhimento, onde as mulheres negras compartilham a dodoridade, as conquistas, relacionamentos e tudo ao seu entorno.

Anualmente o instituto Agatha’s costura os recortes raciais, de diversidade e sociais através de uma parceria local com a associação ATEDESP, dirigida pelo presidente Claudio Rogerio. Ambos promovem o curso de trancistas de forma gratuita, ocasionando um aquilombamento territorial em torno das tranças. Muitas permanecem atuantes e isso reverbera na história do instituto.

Com o crescimento da demanda de produtos para cabelos crespos, Carmen disponibiliza produtos como a pomada modeladora e o jumbo da marca Agatha’s e planeja para breve uma filial.

NOTA

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