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Sobre a presença negra no ensino superior

É sabido e torna-se importante reiterar – ecoando o que já disseram minhas colegas em textos anteriores – que para todo o movimento de repressão e violência, houveram fortes movimentos de resistência. E nesse sentido, ao longo do tempo, um dos primeiros destaques nas trajetórias de famílias negras e ex-escravizadas era o da necessidade de investimento na educação formal de seus filhos, como uma estratégia de ascensão social ou de melhoria as condições de vida. Portanto esta, que não era uma realidade frequente nas histórias dessas famílias, começa a despontar como uma potência: as projeções de um futuro melhor ou distinto para si, para os seus e para a própria sociedade desigual, projeto este que muitas vezes é compartilhado e apoiado pela família e pela comunidade.

O ingresso ou acesso ao ensino superior é carregado de uma série de desafios. Uma vez dentro, finalizar esta formação, que depois se torna uma carreira profissional, também se torna bastante desafiador e o período que se dedica a este processo chamamos de permanência. Pois bem. Abordaremos a seguir estes dois pontos.

Quanto ao acesso, sintetizo os seguintes operacionalizações de lógicas excludentes: 1) as formas de ingresso com avaliações arbitrárias e suficientes sobre a capacidade de uma pessoa exercer determinada carreira ou profissão; 2) A prevalência da lógica invertida “escola pública –> universidade privada”, “escola privada –> universidade pública”, com os devidos aprofundamentos deste argumento no que concerne as escolas federais no marco das escolas públicas; 3) A escolha da carreira profissional, onde cursos tidos como de maior prestígio social, costumam também ser cursos com maior carga horária, maiores gastos (com materiais, aulas práticas, livros, deslocamentos, entre outros).

Já na permanência, pensemos sobre o seguinte: 1) a responsabilidade e o peso emocional de ser, na maioria das vezes, a primeira pessoa ou geração da família a cursar o ensino superior; 2) o choque de realidade evocado neste ingresso, considerando que ainda há um abismo de diferença entre a universidade e a “vida real” – e no caso de estudantes negros e negras na intersecção com a classe/gênero/sexualidade/território, o impacto da diferença dos modos de viver e ver a vida precisam ser considerados; 3) a frustração, que muitas vezes sequer é consciente, do não se ver neste espaço – este que, dentre os demais, eu consideraria um dos maiores fatores que potencializam o adoecimento. A pesquisa de mestrado de Claudio Santos, membro do Coletivo Neusa Santos, ilustra os pontos citados em especial a ambivalência mencionada no segundo ponto acima, apontando as diversas formas pelas quais a permanência se torna comprometida, tornando muito difícil que cheguemos ao final de nosso projeto de formação.

A exigência de dedicação exclusiva aos estudos sem a garantida contrapartida, revelando a naturalização da ideia de que essa é uma condição sine qua non para uma formação acadêmica e profissional, também é um ponto excludente que tem sido questionado fortemente com as ações afirmativas.

Torna-se profícuo então destacar a importância da representatividade, abordada por Vilmar Oliveira em sua pesquisa de mestrado sobre negras/os doutoras/es em Psicologia. Ao observar que a presença de nossos iguais é restrita ou limitada aos espaços que não são os espaços de prestígio; ao ouvir e estudar constantemente que a nossa realidade cotidiana é inadequada (e até mesmo adoecida), produz-se um efeito cada vez mais potente de exclusão por si mesmo, trazendo a nós mesmos a repulsa, o auto ódio, a chamada síndrome da impostora, entre outros processos.  E temos ainda o epistemicídio. Por muitas vezes ao longo da história a produção de conhecimento realizada pelas pessoas negras foi apropriada e utilizada como uma grande descoberta, sem a devida menção de sua origem; e/ou, quando pessoas negras alcançam tais espaços, tal produção é negada, silenciada e desqualificada por argumentos que inclusive remetem à desumanização, umas das estratégias de base da colonização e suas recriações.

Antes que a gente se desanime completamente ao lembrar ou relembrar nossas trajetórias cotidianas e seus percalços, volto a dizer: nossos ancestrais foram grandiosos nas formas de sobrevivência e resistência a todos os processos de dominação, eliminação física e simbólica a que foram submetidos. Este movimento, que tenho optado por chamar de insurgente, apareceu no campo das reflexões psi pra falar de onde eu falo, desde Virginia Bicudo, a nossa preciosa Neusa Santos até inúmeras psicólogas, psicanalistas negras atualmente que tem interpelado incisivamente a nossa ciência.

De fato, a universidade reflete muito dos conflitos, opiniões e contradições da sociedade na qual ela se encontra inserida. No entanto, temos conquistado alguns avanços para que juntes, sejamos capazes de incidir, cada vez mais e de maneira mais eficaz, sobre a nossa presença nesse espaço. No que concerne à necessária transformação deste espaço, sobretudo a universidade pública – em curso, ainda que profundamente ameaçada pela conjuntura política atual – também a experiência vivida e trazida por estudantes afrodescendentes de acordos internacionais se colocam como desafiadoras, importantes e potentes, apontando outras contradições que não alcançamos mencionar aqui.

A maior incidência de estudantes negros e negras na universidade por meio das ações afirmativas, possibilitou o encontro destes, com aqueles e aquelas que já haviam ingressado em menor número anteriormente. Esse encontro possibilitou a criação de grupos de estudo e pesquisa, coletivos, associações de estudantes e outros movimentos que tem uma grande potência de cuidado uns dos outros – no aspecto subjetivo, mas também, em outras necessidades cotidianas (como alimentação, transporte, moradia, etc.); de visualização de possibilidades, com a atenção à representatividade; de proposição de temas de estudo, investigação e reflexão da prática profissional com atenção aos aspectos étnico-raciais da sociedade, interpelando o cotidiano científico de um outro lugar; e por fim, possibilitando a articulação de movimentos que incidem sobre as instituições e políticas públicas, buscando formas de garantir os direitos necessários para o acesso e a permanência de estudantes nesse espaço, considerando que esta incidência se dá, muitas vezes, em enfretamentos e desafios cotidianos.

Escrevo hoje muito emocionada após iniciarmos a primeira turma do “Cursinho Preparatório Neusa Santos – Inserção na Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado)” com 25 estudantes de vários lugares do Brasil, distintas áreas de pesquisa, motivados/as/es a ingressar no ensino superior por diversas razões. A potência destes espaços coletivos foi destacada por cada um e cada uma das pessoas ali presentes.

Entre as estratégias encontradas para o fortalecimento e a garantia de acesso e permanência, ou seja, a nossa presença, no espaço acadêmico e tantos outros, o aquilombamento parece ser a mais forte delas.

*Camila Rodrigues Francisco é psicóloga, escritora no @disseamila e doutoranda em Psicologia Social pela PUC-SP. Produtora editorial do Selo Literário Itan, iniciativa independente de potencialização da escrita literária de pessoas negras em Mato Grosso. Membra do Coletivo Neusa Santos.

 

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NOTA

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