Por :
Carla Ferreira de Starmac
O esporte sempre refletiu, como qualquer expressão humana, valores, comportamentos e condições sociais de sua época. Sendo assim, em todo grande evento esportivo, um olhar atento pode perceber, de forma muito evidente, o que acontece em uma sociedade em vários níveis e escalas.
As Olimpíadas, desde a Grécia antiga, sempre marcaram nações em guerra, onde uma paz momentânea era figurada, para que grandes potências confirmassem sua hegemonia para além das armas. Esse fato teria, então, um valor comprovatório de seu poder e força. Muita coisa mudou nas reedições modernas dos jogos a partir de Coubertin. Será? Eu questiono o leitor, e respondo prontamente, nesse aspecto não mudou. Continuamos a buscar comprovação e domínio entre nós. Colocamos em risco nosso planeta e nossa continuidade como espécie nos eliminando mutuamente numa dinâmica capitalista que destrói até os mais firmes ideais.
Mas a sociedade, enquanto humanidade, evoluiu. Grandes conquistas tecnológicas, grandes descobertas científicas, grandes questionamentos surgiram na modernidade e nos levaram a reflexões e ações transformadoras. E aqui citarei aquelas que, no meu ponto de vista, dentro do esporte, marcaram momentos apaixonantes: a quebra de paradigmas e a representatividade.
Quebrar paradigmas é ressignificar atitudes e romper padrões arcaicos de comportamentos e valores, estabelecendo que a verdade está sempre “em debate”, sempre em reconstrução, dependendo do contexto histórico e social e, portanto, em constante transformação.
A representatividade tem um papel importante na construção da subjetividade, da identidade e de espaços sociais dignos para grupos considerados à margem dos direitos políticos e sociais. Busca a redução dessas desigualdades. Vem romper com a invisibilidade cultural e social estabelecida e representa grande conquista para fazer valer direitos básicos aos grupos ignorados pelo poder público.
Marcas históricas
Inicio minha caminhada pelas olimpíadas citando alguns momentos que marcaram de forma evidente e globalizada esses aspectos e que deixaram sua marca na história dos esportes e do mundo.
Apesar das edições modernas das Olimpíadas terem o seu início em 1896, levaram muitos anos para que as mulheres tivessem maior acesso aos jogos olímpicos. Por várias edições elas representavam singelos 2% do total de participantes e ainda eram consideradas “convidadas”, além de participarem de provas, tidas como de beleza estética e que não exigiam contato físico, como, por exemplo, hipismo, golfe e tênis. Integrar os jogos olímpicos não foi simples para as mulheres, isso devido ao grande conservadorismo da sociedade, que sempre desconsiderou a potência feminina.
Foram longos anos de luta até 2012, jogos em Londres (Inglaterra), quando as mulheres, pela primeira vez, competiram em todas as modalidades esportivas. Isso após 27 edições modernas das olimpíadas. Hoje, em 2021, elas somam metade dos participantes nos jogos. O Brasil, por exemplo, teve, em 1932, a sua primeira atleta a participar de uma olimpíada, a nadadora Maria Lenk (Los Angeles/EUA), e só esteve em um pódio feminino, em 1996 (Atlanta /EUA), no vôlei de praia, com Sandra Pires e Jaqueline Silva, que conquistaram a medalha de ouro, e Adriana Samuel e Mônica Rodrigues, a medalha de prata.
Em 1936, vésperas da Segunda Guerra Mundial, as Olimpíadas aconteceram em Berlim (Alemanha), mesmo que o mundo inteiro denunciasse o que ocorria naquele momento. Hitler tinha como ideia original para os jogos, além da habitual demonstração do seu poder bélico, uma teoria racista a ser comprovada, a da supremacia da raça ariana. Foi quando surgiu o fantástico Jesse Owens, atleta negro, oriundo dos Estados Unidos, um país marcado pela segregação racial, que ganhou quatro medalhas de ouro e mostrou ao mundo o quanto absurdas eram tais teorias. Infelizmente, seu feito não mudou os acontecimentos que se seguiram, mas, até hoje, suas conquistas olímpicas lhe renderam o carinhoso título de “herói indiscutível” da XI Olimpíada e mudaram os caminhos dos atletas negros que surgiriam a partir dessa data.
Diversidade e Representatividade
Outros exemplos de como os jogos olímpicos trouxeram à tona questões importantes para refletirmos enquanto sociedade: questões de gênero (atletas intersexo), os atentados terroristas, a guerra fria, entre outros.
E, enquanto as edições modernas dos jogos olímpicos seguiam se aprimorando, após a segunda grande guerra, com a volta de milhares de soldados amputados, na Inglaterra, um médico neurologista chamado Ludwig Guttmann idealizou uma competição esportiva entre os pacientes do Centro Nacional de Lesionados Medulares, na cidade de Stoke Mandeville. Ele decidiu usar o esporte para auxiliar a recuperar seus pacientes e, em 1948, realizou os primeiros jogos esportivos para deficientes físicos. Foi o primeiro passo para o surgimento das Paralimpíadas. Uma década depois os jogos paralímpicos foram realizados em Roma, mesma cidade sede das olimpíadas e abertos a todos os deficientes. Seguiram-se mudanças significativas, como a participação dos deficientes visuais e a criação do Comitê Paralímpico Internacional (IPC). O Brasil participou pela primeira vez em 1972, em Heildeberg (Alemanha), e representa uma potência em medalhas.
Os Jogos Paralímpicos são um exemplo e uma celebração à inclusão universal e à superação de milhares de pessoas no mundo que vencem batalhas cotidianas de vida. Pela sua magnitude, serve de fomento à criação de uma cultura de acessibilidade, respeito à diversidade, criação de novas modalidades esportivas (como o goalball, por exemplo) e avanço nas tecnologias assistivas. Seu lema reflete isso: “Espírito em Movimento”. Bem como os seus valores: Inspiração, Coragem, Igualdade e Determinação.
Com certeza, olhando todas estas conquistas, podemos ser otimistas em relação à nossa caminhada pela equidade, justiça social e humanidade (no melhor sentido da palavra, o da solidariedade). Contudo, esse otimismo segue com a responsabilidade de continuarmos nos transformando, nos aprimorando, sem medo de conversarmos sobre assuntos que ainda precisam avançar.
O corpo humano é capaz de muitas coisas; o seu movimento é e sempre será arrebatador, principalmente quando falamos em atingir o inatingível. E, quando um atleta nos mostra o quanto ainda é possível, ampliamos nossas crenças acerca do nosso potencial. Sim, o esporte pode aumentar nossas esperanças no mundo e representatividade IMPORTA, MUITO.
SOBRE A AUTORA :
Carla Ferreira de Starmac
Formada em Educação Física e Fisioterapia pelo Instituto Porto Alegre da Igreja Metodista (IPA).
Pós-graduada em Psicologia do Exercício Físico e do Esporte, PUCRS. Pós-graduada em Ciências do Esporte, PUCRS.
Pós graduada em Educação Especial, com ênfase em deficiência intelectual, física e psicomotora, Faculdade de Educação São Luis.
Atua na EMEEF Prof. Francisco Lucena Borges, POA/RS.
REFERÊNCIAS
COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO. Disponível em: https://www.cob.org.br/pt/. Acesso em: 26 jul. 2021.
COMITÊ PARALÍMPICO BRASILEIRO. Disponível em: https://www.cpb.org.br/. Acesso em: 26 jul. 2021.
ENCICLOPÉDIA DO HOLOCAUSTO. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/victims-of-the-nazi-era nazi-racial-ideology. Acesso em: 26 jul. 2021.
PONTEL, Evandro. Paradigma: um diálogo entre Thomas Kuhn e Michel Foucault na perspectiva de Giorgio Agamben. Revista Profanações, a. 1, n.1, p. 75-88, jan./jun. 2014.
SILVA, Peterson Roberto da. A contribuição de Luis Felipe Miguel ao debate sobre o conceito de representação. Disponível em: https://doi.org/10.5007/1980-3532.2017n17p107. Acesso em: 26 jul. 2021.