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Marielle Franco e a Violência Política de Gênero no Brasil

Por Ana Grein

A história do Brasil tem suas peculiaridades. Vivemos anos de colonização europeia de exploração que sugou nossas riquezas, tivemos uma escravidão abolida tardiamente, a independência proclamada pelos próprios colonizadores e uma imensa desigualdade econômica e social entre as diversas camadas da população, além da invisibilidade de direitos políticos das mulheres e da população LGBT e do encarceramento em massa da população pobre e negra, problemas esses que nos conduziram a profundos abismos sociais, raciais e de gênero.

Politicamente, as mulheres nos espaços de poder e de decisão no Brasil vivem uma situação delicada, que pode ser caracterizada como “violência política de gênero”, termo citado pelas autoras argentinas Archenti e Albaine (2018). Ao escreverem sobre Violência Política de Gênero na América latina, as autoras registram que:

A violência de gênero no âmbito político é correlacionada e justaposta a certas formas de violência a que estão sujeitas as mulheres na sociedade civil que, através de regras que regulam a relação entre governantes e governados e que são próprias das
democracias modernas, se manifestam no espaço político eleitoral (ARCHENTI;
ALBAINE, 2018, p. 17).

Mais adiante, as citadas autoras afirmam que existe:

Uma violência política baseada em gênero institucionalizada que é exercida a partir do poder político e que não respeita o espírito dos marcos regulatórios de âmbito nacional e internacional que defendem a igualdade entre os gêneros no âmbito político (Op. Cit, p. 18, itálico no original).

Elas exemplificam, como formas dessa violência, a configuração das normas que dificultam o acesso dos direitos políticos e eleitorais das mulheres, a dinâmica das instituições partidárias e legislativas que são regidas por regras formais e informais baseadas em
estereótipos de gênero, machismo, dentre outras.

As autoras citaram, como ápice dessa violência política institucionalizada, o feminicídio político de Juana Quispe Apaza, conselheira do município de Ancoraimes de La Paz, na Bolívia, um caso impune de violência política que lembra muito o assassinato ainda não solucionado da vereadora Marielle Franco, do PSOL do Rio de Janeiro, ocorrido em 14 de março de 2018, no Brasil. De fato, Juana sofreu agressões verbais e físicas por parte do prefeito e dos conselheiros que ela havia denunciado por corrupção, além de ter direitos políticos negados, em um contexto semelhante às violências sofridas por Marielle.

Marielle Franco, cuja execução completa um ano no dia 14 de março de 2019, foi vítima de feminicídio político e de violência política de genero. Por ser mulher, negra, bissexual, mãe solo e periférica encontrava-se na base da pirâmide social, levando-nos a citar o denominado Feminismo Interseccional, apontado por Ângela Davis (1981), em “Mulheres, Raça e Classe”, que tenta explicar e
entender a desigualdade de gênero, buscando entrelaçar as categorias de raça, classe e gênero, de modo a encontrar justificativas para a opressão e exclusão femininas que não se limitem ao gênero, mas que também considerem a cor da pele e a classe social da mulher como fatores que contribuem para aumentar sua opressão social e também a sub-representatividade política. De fato, mulheres negras e pobres (e também os homens negros e pobres) estão na base da pirâmide
social e se encontram menos representadas no Parlamento do que as mulheres brancas de classe média (e do que homens brancos de classe média).

Embora semelhante em feminicídios políticos, tendo a execução de Marielle como um dos maiores exemplos de violência de gênero, diferentemente da Argentina, o Brasil não tem reserva de vagas no Parlamento, já que possui apenas cotas para registro de candidaturas partidárias mínimas (30%) e máximas (70%) nas eleições proporcionais.
Tampouco tem o que Archenti e Albaine (2018) chamam de adoção de paridade política de gênero, que já existe em vários países latino-americanos, como Argentina, Bolívia, Equador, etc.

Em países como o México, a Bolívia e o Peru, a violência política de gênero já foi, inclusive, tipificada legalmente, constituindo crime. Aqui no Brasil, ainda não temos previsão legal a respeito.

A paridade política de gênero, segundo as autoras, se assemelha às leis de cotas em alguns aspectos, embora em outros seja mais rigorosa, permitindo superar muitas das dificuldades das leis de cotas, como o caráter aleatório do percentual mínimo de mulheres. A paridade:

Se expressa por uma norma que obriga os partidos políticos a confeccionar lista de candidatos com 50% de integrantes de cada sexo.

Na Argentina, houve adoção de cotas nos Parlamentos em 1991 e de paridade política de gênero em 2017; na Bolívia, houve adoção de cotas em 1997 e de paridade em 2009; no Equador, também houve adoção de cotas em 1997 e de paridade em 2008 (op. cit, p. 11).

Na análise que as autoras argentinas fizeram, o Brasil não fez parte do estudo, possivelmente porque ainda não aprovamos reserva de assentos para mulheres nos Parlamentos (só temos cotas mínimas de 30% para candidaturas), tampouco estabelecemos normas de paridade política entre homens e mulheres no Legislativo, Executivo ou Judiciário. Nossa situação é uma das mais graves da América Latina, tanto que, se a participação feminina continuar no ritmo atual, a paridade entre os sexos nos espaços municipais do Brasil vai demorar 150 anos para ser alcançada.

Após um ano do assassinato de Marielle Franco e seu motorista Anderson, a pergunta que devemos fazer não é mais “quem matou Marielle?”, mas sim “quem mandou matar Marielle?”. Esse crime bárbaro não tem a ver apenas com o ódio à esquerda e às mulheres negras ocupando espaços de poder. A execução de Marielle nos diz muito sobre os criminosos milicianos que tomaram o poder, prontos para matar qualquer pessoa que seja um obstáculo ao sucesso do projeto neoliberal, capitalista e misógino de concentração de rendas e enriquecimento ilícito em vigor no século XXI.

Queremos justiça para e por Marielle, urgentemente!

Referências do texto:

– ARCHENTI, Nélida; ALBAINE, Laura. O Feminismo na política. Paridade e violência política de gênero na América Latina. Cadernos Adenauer XIX (2018), nº 1. Participação política feminina na América Latina. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, maio 2018, pág. 09-24.

– DAVIS, Angela. Mulher, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016 [1981].

Foto: Jaqueline Rodrigues

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