Dias atrás, assistindo à chamada da novela na tevê, pensei no quanto essa variedade de entretenimento conversava, ou não, com o nosso tempo. Hoje posso dizer, venho de uma outra geração. Lembro com saudosismo de quando a família se reunia para assistir os episódios das novelas. Não me esqueço de interpretações iluminadas de Gloria Pires, de Antônio Fagundes e de outros artistas gravados no imaginário coletivo. Confesso que não acompanho mais essas produções, mas esse fato não me impede de refletir a respeito.
Jorge Amado com as suas histórias muito contribuiu para inspirar esse gênero tão brasileiro. Na segunda fase de sua produção literária, debruçou-se sobre a crônica de costumes. Como ninguém, retratou os tipos mais recorrentes do cotidiano nacional. Em seus romances não deixavam de aparecer personagens como o coronel, o prefeito corrupto, o matador, a prostituta. Muitos dos seus livros transformaram-se em produções memoráveis. A literatura regionalista, da mesma forma, serviu para mostrar um pouco da Bahia para o Sudeste, que por anos monopolizava os assuntos da cultura nacional.
No tempo em que imaginei essa crônica, assistindo distraído a televisão, e particularmente uma resenha sobre a novela “ Pantanal”, pensei que pelo menos uma parte dos atores dessa produção poderia ser mato-grossense. Nesse sentido, as coisas pouco mudaram nos sets de filmagem das maiores emissoras. Talvez eu não esteja sendo precisamente justo. O sucesso, por exemplo, de intérpretes nordestinos como Wagner Moura, Luci Alves e Irandhir Santos seria algo impensável há algumas décadas atrás. Por outro lado, o êxito da novela “ Pantanal “ que não acompanho, é ilusório. Hoje em dia, a maior parte desses trabalhos é acompanhado por um número cada vez menor de pessoas. O crescimento de outras formas de entretenimento, como os streamings, as mídias sociais e as séries americanas ajudam a entender a preferência do público brasileiro.
O país mudou nesses últimos anos, e com a televisão não havia de ser diferente. A sociedade passou por transformações profundas. Seria um fenômeno de todo ruim? A incorporação de entretenimentos estrangeiros pode ser uma ameaça a cultura nacional, mas não apenas disso falam todas essas mudanças. As mulheres ganharam papéis de destaque, as minorias se viram como nunca representadas. Existe um longo caminho a ser percorrido, mas não podemos deixar de reconhecer avanços. Basta pensar, por exemplo, em um romance famoso do mesmo Jorge Amado: “ Gabriela Cravo e Canela”, enredo que mais tarde transformou-se em novela. A história ajuda a ver como era a sociedade por aqueles tempos, há quase cem anos atrás. E como se comportava aquela sociedade? Com certeza, de forma diferente da que enxergamos hoje.
No romance de Jorge Amado ( e temos que considerar ao fato de que o escritor nos falava de Ilhéus, que tem características próprias), as mulheres mal saíam das suas casas, cabendo aos homens o protagonismo. A boemia, da mesma forma, era um território masculino, e somente as prostitutas ficavam acordadas depois da meia noite. Somente pela beleza, pelo berço ou pelo sexo uma mulher poderia esperar algum futuro, e essa tímida perspectiva não passava de subsistir como a sombra do seu par. A sociedade girava sob o eixo do coronel e a bala falava mais do que qualquer lei humana. Por último, a miséria atingia contornos inimagináveis. Nesse cenário, grande parte das pessoas via-se desprovida de orgulho e de identidade, transformadas em bicho.
O país mudou, e isso não é de todo ruim. O passar do tempo, com certeza, incomoda um pouco às criaturas saudosas como eu. Devemos estar preparados para os novos tempos, críticos no tocante às perdas, mas, antes de tudo, justos, para não pintarmos uma paisagem enviesada do passado.
Foto: Sonia Braga interpretando Gabriela. Créditos: divulgação TV Globo.
Revisão e edição: Tatiana Oliveira Botosso