Na última semana estreou na Netflix a segunda temporada da série brasileira, Coisa mais linda! A primeira temporada termina exatamente na cena em que a personagem Lígia (Fernanda Vasconcellos) leva um tiro do marido Augusto Soares (Gustavo Vaz), na praia de Copacabana.
Alerta de spoiler da série Coisa mais linda
Ao tentar defender Ligia, Malu (Maria Casadevall), melhor amiga da moça, também é atingida por Augusto, um playboy da elite carioca.
A segunda temporada inicia-se com a recuperação de Malu e a triste confirmação do assassinato de Lígia e da fuga de Guto…
Estamos falando de 1960! Coisa mais linda, é uma série passada no Rio de Janeiro da década de 60, que por um lado trouxe uma deflagração de reflexão e revisão de valores atribuídos culturalmente nos papéis ocupados por homens e mulheres na sociedade, com uma certa intensificação da abertura do mercado de trabalho para as mulheres e com a discussão acerca de sua sexualidade com a chegada da pílula anticoncepcional, mas que por outro lado, na maioria dos lares brasileiros tinha como predominante a estrutura patriarcal que reprimia nas mulheres qualquer comportamento para além do pré determinado como aceitável pelos homens.
As revistas femininas muito populares na época por exemplo, eram verdadeiros manuais machistas de modelagem cultural da mulher.
Éramos criadas para ter o casamento e a maternidade como prioridades e cobradas para sermos donas de lares perfeitos… Mergulhados em submissão e escancaradamente desiguais, onde pertencemos literalmente a nossos pais antes do casamento e a nossos maridos, depois.
O movimento feminista crescia mundo a fora com vistas a resistir e romper toda essa estrutura que tutelava nossos corpos e nossas vidas! Mas em pleno 2020, o que mudou?
“Lígias” ainda são violentadas, mortas e culpabilizadas por isso por conta de seus comportamentos, especialmente no que tange a sexualidade.
Lutamos, resistimos… e apesar de termos avançado em algumas pautas, justamente por conta da pressão social provocada pelos movimentos feministas e de mulheres, ainda percebemos termos muitas das reivindicações dos anos 60, praticamente estagnadas.
Se avançamos legislativamente em relação a proteção das mulheres, tendo por exemplo a lei Maria da Penha ( lei 11.340/2006 que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher ), pouco caminhamos culturalmente no que diz respeito a naturalização da violência contra a mulher!
Por exemplo, Lígia, a personagem que sonha com a carreira artística em coisa mais linda, é alegre, expansiva e charmosa, e tenta por anos se adequar aos desejos e ordens de seu marido Augusto, até perceber sua infelicidade e começar a lutar por seus sonhos, passando a viver um processo que a culpabiliza pelas violações e abusos que sofre por parte de seu parceiro. Em volta do casal todos veem as marcas no corpo da moça…percebem a tensão mas nada fazem, não se metem! Afinal, é marido e mulher e não devemos meter a colher!
Continuando o spoiler, ao tentar romper com o ciclo de violência doméstica, Lígia rompe também o casamento, despertando a inconformidade de Augusto! Mais atual do que supomos , não é mesmo? Os telejornais sensacionalistas de fim de tarde, que o digam…
O marido, amparado pelo machismo estrutural e pela legítima defesa da honra, (dispositivo jurídico existente na época e extinto também por pressão dos movimentos feministas e de mulheres), comete contra Lígia, o que desde de 2015, conhecemos por feminicídio ( lei 13.140/2015, uma qualificadora do artigo 121 que define feminicídio como o assassinato contra a mulher por razões da condição de sexo feminino).
Lígia deixa de existir .
Augusto, se entrega no decorrer dos episódios, sendo julgado culpado a uma pena de 4 anos em regime aberto. O julgamento se dá muito mais sobre a resistência de Lígia ao papel social imposto a ela pela sociedade, do que sobre o crime cometido por Augusto!
Ainda somos julgadas como Lígia…cotidianamente.
Neste momento de pandemia por coronavírus uma das formas de violência com maior aumento de casos, é a violência perpetrada por parceiro íntimos e familiares, contra as mulheres. Devemos ressaltar que não é o isolamento proposto como forma de prevenção ao contágio de covid 19 que causa esse tipo de violência e sim o machismo! Mas destacamos que pelo fato das mulheres estarem mais tempo diretamente expostas a seus agressores e em muitos casos tendo dúvidas de como estão funcionando os serviço de atendimento à mulher vítima de violência, houve sim um agravamento.
Segundo dados da Secretaria de Defesa Social (SDS), em março de 2019, foram 3.829 casos, contra 3.040 em 2020, porém com uma redução de 21% nas denúncias. É importante sempre lembrar da necessidade de recorte de classe e raça, na análise desses dado, já que sabemos que as mulheres negras ocupam o topo do ranking de violência doméstica.
Na contraproposta a esses dados alarmantes em meio a uma crise sanitária , movimentos, coletivos, ongs e instituições buscam discutir a pauta, orientando as mulheres e propondo estratégias que simplifiquem o acesso das mesmas as políticas de enfrentamento à violência que são submetidas!.
Isso tudo diante de uma conjuntura política desfavorável a essas políticas públicas, que no ano de 2019 tiveram 0 de investimento a nível de governo federal!
Dentre as campanhas
lançadas.nos últimos meses, destaco a, “Sinal vermelho contra a violência doméstica”, que é uma iniciativa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com diversas entidades, permite que as vítimas façam denúncias de forma silenciosa e discreta. Para fazer a denúncia por meio da campanha, a mulher deve desenhar um “X” na mão e mostrá- lo em alguma farmácia. A partir disto, os profissionais do estabelecimento acionou a polícia.
E a isolamento social, sim! Violência contra à mulher, não! Do Fórum Municipal dos Direitos da Mulher de Duque de Caxias, do qual faço parte da executiva.
A campanha é composta por cards informativos, lives com representações do Fórum, que discutem a temática, um questionário para que as mulheres preencham com objetivo de qualitativamente propor e cobrar políticas públicas e uma hashtag de âmbito nacional, a #meteacolherligue180 , que visa agrupar conteúdo de informação ao enfrentamento da violência contra a mulher e facilitar o acesso das mulheres a esse conteúdo, além de por si só divulgar o disque 180, número nacional para informações e denúncias a respeito da violência contra a mulher.
Reafirmo, precisamos falar sobre Lígia! Necessitamos refletir por onde a naturalização de vivências e mortes como a da personagem de coisa mais linda, e de tantas mulheres reais, passa por nós!
Refletir sobre quando e como nos omitimos, não acolhemos, julgamos e não metemos a colher em situações de violência de mulheres próximas a nós!
Sobre como invisibilizamos a pauta da violência contra a mulher em nossos movimentos de reivindicações, em como silenciamos e somos silenciadas inclusive na militância!
Segundo levantamento do G1 com base no ano de 2019, a cada 7 horas uma mulher morre por razões violentas no Brasil! Milhares de “Lígias”!
Precisamos urgentemente revisar nossa estrutura culturalmente machista e nos distanciarmos da banalização dessas mortes. E isso depende da atitude individual e coletiva de todos nós, mulheres e homens!
Daniela Lopes
Assistente Social especialista em políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher, Puc-Rio. Líder comunitária no Complexo do Centenário, Duque de Caxias, RJ. Ativista no Movimenta Caxias. Integrante da executiva do Fórum Municipal dos Direitos da Mulher de Duque de Caxias. Atriz da Escola de teatro popular / Centro de Teatro do Oprimido
Imagem de capa: Aline Arruda/Netflix