O futebol em terras brasileiras surgiu pelas mãos, ou melhor, pelos pés estrangeiros de uma elite econômica e cultural de origem europeia. Veio como mais uma influência da metrópole sobre a colônia. Ingleses e alemães que trabalham na chefias da Companhia Railway de Trens trouxeram um esporte novo e fácil de manusear (chutar), mas que deveriam ficar só para eles, longe da ralé recém-liberta da escravidão e dos italianos rústicos. Seria um esporte da fina sociedade que os jeca-tatus, juca-mulatos e macunaímas não conseguiriam nem entender e muito menos participar.
Havia toda uma solenidade própria, os jogadores entravam de camisa social no campo e o árbitro de terno e gravata. Os operários da ferrovia assistiam escondidos e ensaiavam na clandestinidade a prática do jogo dos patrões. Nenhuma imposição ou colonização seria capaz de evitar que o povo; os jeca-tatus, juca-mulatos, macunaímas, jogassem e se esbaldassem com esse jogo. Esbaldassem porque foram os terrenos baldios que acolheram as suas vontades e os seus desejos. Só bastaria uma bola e nem as traves precisavam existir.
A bola é a mais democrática das formas, leve e econômica, ela se assemelha a tudo que é completo e presente como o próprio planeta e as estrelas no Universo. A bola não tem limites, não tem margens, não tem cantos. Igual em toda sua extensão, é o objeto material mais próprio para equalização entre todos os seres, porque nela não nos escondemos e nem nos hierarquizamos. O círculo, como a bola, não tem lado e não deixa ninguém de fora, somos obrigados por ele a olhar nos olhos um do outro.
Com uma bola, qualquer um se tornaria rei, e o patrão não estaria mais em um patamar acima dos outros, porque com os pés, os súditos poderiam chegar ao mesmo lugar que seus senhores. O gol. Este foi o início do século XX, onde a popularização do futebol serviu como base para as agregações de operários havidos pelos seus direitos, não só dentro do campo, mas também fora das quatro linhas. De repente, as margens dos rios e riachos, as chamadas várzeas passaram a ser desenhadas para receber o jogo do povo. No fundo da mata ciliar, nasceu o futebol brasileiro.
Era um futebol preto e retinto, filho da noite. Porque foram os pretos, aqueles que eram amarrados e vendidos como mercadorias no século retrasado, aqueles que pegaram a bola e o futebol dos patrões para transformar em outra coisa. Antropofagijaram com todas as letras e deram para esse esporte, o tratamento que a poesia Modernista queria dar no país para a literatura e para a arte recebida da Europa.
O futebol em terras de mata ciliar, de mananciais mais hídricos do mundo, de esporte virou arte, e se derramou no tempo vivo em: dança, pintura e poema. Pernas que escreviam, pernas que desenhavam e pernas que bailavam por cima do verde e por cima da terra em todos os rincões do planeta. Em um curto espaço da rua não asfaltada, no meio das pedras e pedregulhos, com uma bola feita de panos, retalhos ou sacos de estopa, a criança preta desenvolvia sua arte como em um quadro de Portinari, só que ao vivo e em movimento.
Porém, recentemente, da mesma maneira que as matas ciliares e suas várzeas estão desaparecendo, os campinhos de suas beiras também. Graças à especulação imobiliária, ao crescimento urbano desenfreado, ao aumento de condomínios e prédios, ninguém mais sabe o que é brincar em um espaço aberto e livre como as ruas e os campos, deslizando gramas e flores. A mata desapareceu e os rios foram asfaltados junto com o futebol. Futebol asfaltado foi canalizado para dentro dos clubes e das escolas. Padronizou-se e quando se padroniza, a arte morre.
Vide a vingança do patrão que agora pode curtir novamente seu esporte nos moldes etiquetados ressuscitados da Bella Époque, em suas quadras e campos sociatys particulares. Há novos palácios de mármores onde esses reis podem usufruir finalmente isolados de seus mundos cheios de regras e modos hipócritas. Cobra-se caríssimo o ingresso, vende-se como ouro as camisas e outros produtos, matam-se os times que a mídia não mostra. E o futebol vai deixando de ser gesto, traço e palavra, para ser estrangeiro e monótono, um jogo de levar a bola ao gol passando de pés em pés, sem nenhuma imprevisibilidade. Coincidentemente, o povo cada vez mais não se identifica com esse quadro comum e não se interessa por ele, como se dissesse que esse esporte que está aí não é aquele que eles reinventaram e refizeram para ser a sua expressão, voz e identidade.
Respostas de 2
Bacana a reflexão Adrianne, infelizmente estamos perdendo nossa fonte de provocação inventina, e tudo tem ficado mais padronizado e sem graça no futebol brasileiro Agraddeço pelo texto!
Michel fico feliz que tenha gostado do meu texto sobre o futebol brasileiro!Realmente, sobre ele cabe todas as reflexões, tanto científicas quanto poéticas. Espero que você continue nos acompanhando aqui no jornal.