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O Controverso Relatório Acervo Palmares

Ao que parece, os excessos tresloucados do presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP), Sérgio Camargo, não encontram limites.  Em 30 de abril do ano passado, vazou um áudio de uma reunião a portas fechadas com servidores, em que ele, além ironizar as casas de candomblé e umbanda e insultar o movimento negro de escória maldita formada por vagabundos, xinga Zumbi dos Palmares de “filho da puta que escravizava negros”, este que é considerado um herói para negros e negras e por estes criado e significado, além de nomear a entidade.  

Banzem vocês, tudo isso ocorreu aproximadamente um mês após o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e celebrado no dia 21 de março, em referência ao Massacre de Sharpeville.  

Sabemos que o aporte para a eliminação do preconceito e da discriminação racial  é  papel fundamental da FCP através da promoção e da preservação dos valores culturais afro-brasileiros, sociais e econômicos. No entanto, o seu presidente, em flagrante desvio de finalidade, conduz uma entidade de mais de 30 anos, e fruto da luta do movimento negro, ao negacionismo em relação ao racismo no país, à repulsa de quais sejam as formas de reparo social e histórico aos negros e ao desprezo pelos seus heróis e pela sua luta! 

DESDOBRAMENTOS DESTAS POSTURAS

A última absurdidade ocorreu agora  recente com o lançamento do relatório “Retrato do Acervo: A Doutrinação Marxista”, cujo objetivo é o de inventariar o acervo de obras e excluir aquelas que “supostamente” destoam do tema racial e da plena absorção do povo negro na sociedade brasileira. Livros de autores como Karl Marx, Engels, Lênin, Eric Hobsbawn, Celso Furtado, Max Weber, Marco Antônio Villa, entre muitos outros, foram excluídos de forma arbitrária, sem qualquer discussão com a sociedade civil ou sequer, e sobretudo, com entidades representativas negras sobre um patrimônio que lhes diz respeito direto. Aliás Camargo fugiu até de audiência pública e debates sobre o papel da Fundação. 

Pois é, o lançamento ocorreu dia 11 de junho, proclamado em tom de deboche por Camargo em redes sociais como o dia do “livramento”, com a intenção pra lá de evidente de ocultar a verdadeira cruzada ideológica por detrás de uma fachada custodiante do “cidadão de bem” ante certos fantasmas forjados pelo bolsonarismo, como o do comunismo,  o da revolução sexual”, e o do que ele chama de bandidolatria – que na verdade aludi àquelas e àqueles personagens que em algum momento ousaram elevar a voz, confrontar o sistema opressor e lutar por liberdades em seu país, não raro, com o risco até da própria vida.

 O Circo Bozoi encerrou a patuscada com a visita do deputado Hélio Lopes (PSL) à Palmares para “doar” o livro “Ações Afirmativas” de Thomas Sowell, onde o autor apresenta o seu liberalismo racista a partir de uma “nova perspectiva” em relação às políticas de reparação, e chega à conclusão de que muito do que se espera dessas políticas e do que delas se afirma não se confirma na prática! Sowell utiliza o velho discurso de culpabilização da vítima e dos movimentos sociais que lutam por igualdade social a partir da efetivação de direitos, e inverte a acusação de racismo: racista, para ele, é o movimento negro, com suas lideranças, que milita por vantagens financeiras para si e para o grupo que representa! É inacreditável. Talvez o nome ideal para o que acontece hoje na FCP fosse Circo dos Horrores ou, quem sabe, Circo-Moscou-o-Cachimbo-Cai, porque as arbitrariedades e as medidas desarrazoadas de lá explicam o projeto de desgoverno para o país inteiro.

É nesse nível que o gestor da FCP, juntamente com o seu coordenador do Centro de Informação e Referência da Cultura Negra (CNIRC), Marco Frenette, apresentam ao Brasil o tal “Relatório” e inovam o balaio de despautérios do atual governo, agora com o afrontamento ao princípio constitucional de acesso à cultura, no caso, à população negra, perpetrado por quem tem o dever legal  e moral de garantir-lhe efetivamente o acesso! Vimos um amontoado de mentiras históricas, que faz de mocinhos bandidos e de bandidos mocinhos, com base em surtos alucinantes sobre sexualização de crianças, ideologia de gênero, técnicas de vitimização e de guerrilha;  vimos a subversão da memória e a produção do esquecimento; vimos a total ausência do entendimento acerca das noções de interdisciplinaridade e transversalidade do conhecimento, de interseccionalidade dos fenômenos sociais para a compreensão e para o enfrentamento mais apurado do racismo;   vimos o extremo formalismo por trás da “queima de livros”, como o Dicionário do Folclore Brasileiro de Câmara Cascudo, e o livro Papéis Avulsos de  Machado de Assis, edição de 1938 (entre outros do autor), sendo descartados, simplesmente porque estão desatualizados em relação às normas ortográficas.Tudo num clima de um sensacionalismo bizarro e frases de efeito, como: 

Hoje quem desejar ler na Palmares, por exemplo, Papéis Avulsos, encontrará uma edição de 1938, que prestará um desserviço ao estudante brasileiro, pois ele aprenderá a escrever ‘chronica’ em vez de crônica; ‘Hespanha’ em vez de Espanha; e ‘ annos’ em vez de anos” (Marco Frenette).

A tá bom, o estudante preto brasileiro é um idiota, né?

Todas as pessoas de bem ficarão chocadas….” (Sérgio Camargo).

Que brega, só faltou o “talkey?”.

Aqui cabe uma nota de pesar: Mário Frias, secretário-da-Cultura-fortemente-armado comemorou a decisão de Camargo com singelos emojis em sua conta no twitter.

MEMÓRIAS DO APAGAMENTO

Não é novidade para ninguém o fato de  que Sérgio Camargo só tem feito lambanças na Palmares, desde a sua nomeação em novembro de 2019 por Jair Bolsonaro, com declarações controversas, negação do racismo, que renderam até a contestação de sua indicação na justiça. E quem  também não se lembra da exclusão de nomes de ícones da população negra do rol de homenageados(as) da entidade em junho de 2020, exigindo nova intervenção de juíz federal para reestabelecer o mínimo de ordem, e registrando mais um triste e revoltante capítulo de uma gestão desastrosa?

É lastimável que a representatividade da gente negra, em uma organização criada para esse fim, tenha de ser garantida através de ações judiciais para reverter a retirada de nomes da lista “Personalidades Negras” na plataforma da FCP. É esse tipo de “política”  que tem sido implementada ao alvedrio de Camargo e sua equipe direta de gestão, que, na falta do que fazer, dilapidam a FCP e esvaziam o sentido de sua existência, configurando, além do que, um ato imoral de privatização da coisa pública.

Ressalte-se que a lista “Personalidades Negras” foi publicada em 2011 pelo esforço de anos de trabalho de dirigentes e de um conselho curador em  articulação com movimentos sociais,  artistas e personalidades negras de notória influência. O reconhecimento da lista pela comunidade negra passa pelo entendimento de que ela cumpre o objetivo inegociável de cultivar a memória de lideranças e pessoas negras que marcaram a história, acreditaram na igualdade social, na diversidade e na coexistência de grupos humanos. Em nada, isso diverge da luta antirracista, da preservação da memória e da cultura afro-brasileira ou da missão institucional da FCP.

É nesse sentido que toma uma importância fundamental nomes como de Marighella, deputado federal na Bahia pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), expoente da Aliança Libertadora Nacional (ALN), que se serviu de táticas de guerrilha urbana para confrontar uma ditadura militar que suprimia liberdades, utilizava-se de bárbaras sessões de tortura (inclusive envolvendo crianças), pedofilia, assassinatos de adversários (e de cidadãos comuns, sem envolvimento comprovado com as tais atividades subversivas), matança de indígenas (8.350 assassinatos, conforme relatório da Comissão da Verdade), sumiços de corpos, corrupção; nomes como o de Oliveira Silveira, poeta, escritor, professor, intelectual, pesquisador da cultura afro-brasileira, co-idealizador do 20 de novembro como o dia da consciência negra e contraponto às celebrações de 13 de maio de 1888, dia em que a princesa Isabel aboli formalmente uma escravidão já insustentável com a assinatura da Lei Áurea, Silveira era intenso militante do movimento negro, com atuação no Grupo Palmares, fundado por ele e outros ativistas na Porto Alegre dos anos 70, cujo foco eram os estudos da arte, literatura e teatro.

Essas e outras histórias são histórias do povo negro, são histórias do Brasil, que o sr. Camargo  e seu fiel escudeiro Frenette intencionam apagar, por exemplo, com a “queima dos livros  de Carlos Marighella e a iminente alteração do nome da biblioteca Oliveira Silveira, sabe-se lá Deus  pelo o que  e quantas mais haverão de ser as suas infundadas razões e seus despropositados apagamentos, estes, sim, contradizem a missão da Palmares enquanto instituição pública, que é, entre outras coisas, franquear o livre-acesso à documentação, e não decidir quem deve, e quem não deve, ser lembrado, por meio de censura.

Sem dúvida, os tempos são sombrios, e mais do que nunca o Brasil democrático e antirracista precisa se manter articulado e sempre alerta, porque as “pequenas histórias” da saga negra e pobre, com seus heróis  e heroínas invisíveis, contam-nos mais  sobre a verdade do nosso país do que as “grandes histórias” oficiais cheias de pompas e adornos. O lanceiro negro assassinado no massacre de porongos tem muito mais a nos dizer em relação a farsa do “só é eliminado quem se contrapõe ao sistema” do que os gloriosos Duque de Caxias e David Canabarro.  

Evidente que isso aumenta não apenas a responsabilidade institucional da FCP no enfrentamento ao racismo estrutural e cego, mas de todo negro, em específico, que exija a valorização de si e de sua ancestralidade, e de qualquer brasileiro minimamente compromissado em compreender e transformar o seu país.

Saiba Sérgio Camargo que não é possível apagar a luz de Palmares e conduzi-la às trevas, para cada Anti-Zumbi há uma constelação de estrelas miúdas, mas ofuscantemente brilhantes. Salve a Coalizão Negra por Direitos, salve Zumbi!

**Claudinho de Oliveira, ativista, pagodeiro, cantor, compositor e fundador do Gr. Soweto, com formação em Ciências Sociais e em Direto

NOTA

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3 respostas

  1. Vc é um grande exemplo da cultura e da luta em prol das causas necessitadas!!! Parabéns !!! Como é bom saber que tem sim alguns lutando e muito, sou o Baba Akin, e tenho em vc uma inspiração de perseverança em tudo aquilo que realmente tem importância!!
    Asé Modupé
    Qualquer coisa que precisar , estamos aqui!!

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