As últimas palavras de George Floyid, cidadão afro-americano assassinado por estrangulamento por um policial em Atlanta, no dia 25 de maio, viraram o grito de guerra das manifestações populares que tomaram conta dos Estados Unidos na semana passada e chegaram até aos jardins da Casa Branca, obrigando o presidente Donald Trump a se refugiar em um bunker.
Mais que um grito de guerra, o “eu não posso respirar” é uma síntese do que tem sido a vida da maioria da população negra não só nos Estados Unidos mas em todo mundo. Há um processo contínuo de asfixia dos afrodescendentes por conta do torniquete imposto pelo grande capital. Os dados mostram isto. Nos Estados Unidos, após mais de 50 anos de ações afirmativas e que recentemente foi governado por oito anos por um afro-americano, a renda média anual de negras e negros é 41,45% inferior a de um branco e 52,56% a dos asiáticos. Por isto, 20,8% da população negra se encontra abaixo da linha de pobreza contra apenas 8,1% dos brancos. E a taxa de desemprego entre negros é de 5,5% contra 3,2% de brancos.
A inexistência de um sistema nacional de saúde pública nos Estados Unidos fez com que o coronavirus tenha uma letalidade muito maior entre a população negra. Segundo estudos do Laboratório APM-Research, os afro-americanos tem morrido quase três vezes mais que os brancos.
E, diante de tudo isto, o sistema de repressão policial e judicial dos EUA continua com seu viés racista, criminalizando o ser negro. Michele Alexander, em “A nova segregação” fala da existência de um novo Jim Crow (como ficaram conhecidas as leis segregacionistas estadunidenses nos anos 1950) desta vez manifestado pelo encarceramento em massa de jovens negros. O sistema do “ plea-bargain”, no qual um acusado acorda com a promotoria de acusação a confissão de um delito menor para evitar o julgamento tem sido um instrumento eficaz para aumentar este encarceramento. A maioria dos afro-americanos acusados topa esta barganha, temerosos de serem condenados em julgamentos em que são a parte mais fraca (não tem recursos para contratar bons advogados e enfrentarão um Judiciário majoritariamente branco).
Os Estados Unidos consagraram um modelo liberal baseado na garantia dos direitos individuais constituídos em uma sociedade escravocrata e depois segregacionista. A segunda das famosas emendas do Bill of Rights estadunidense consagra o direito da população a ter armas para sua autodefesa e da sua propriedade. O Bill of Rights é de 1791, período em que ainda vigorava a escravização de afro-americanos principalmente no sul dos Estados Unidos que só foi abolida totalmente em 1865 com o fim da Guerra Civil. O Black Panthers Party, no final dos anos 1960 é que avocam para a população negra este direito à “autodefesa”, armada inclusive, e foi brutalmente reprimido pelo Estado. Da mesma forma que os rebeldes haitianos, liderados por Toussaint Louverture, no final do século XVIII e início do XIX avocaram para si os direitos de igualdade, liberdade e fraternidade da revolução francesa e foram duramente reprimidos pelo império francês. Por isto, a rebelião haitiana – que inspirou a Revolta dos Búzios em Salvador, nos anos de 1798 e 1799 – é considerada pelo sociólogo peruano Annibal Quijano como a primeira experiencia de uma revolução decolonial.
O “não posso respirar” sintetiza o sentimento de que a democracia tão cantada em verso e prosa não é para todos. Charles Wade Mills, em O contrato racial, afirma que o arquétipo de cidadão é o homem branco. Negras e negros não são contratantes. Assim como na ágora da antiga Atenas, mulheres e escravos não eram cidadãos.
Só que nestes tempos de capitalismo cada vez mais concentrador de riquezas, a exclusão do contrato aperta o torniquete. Ele se expressa pelo estrangulamento de Floyid em Atlanta e pelo fuzilamento do menino João Vitor no Rio de Janeiro, com o beneplácito de Trump e Bolsonaro. As manifestações nos Estados Unidos não são só revolta pelo assassinato de Floyid. É contra as pernas do capital nos pescoços dos afrodescentendes em todo o mundo. Violência policial, encarceramento em massa, desemprego, miserabilidade e vítimas preferenciais do coronavirus… NÓS QUEREMOS RESPIRAR!
Foto de capa: AFP via BBC
Dennis de Oliveira é Professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, coordenador do GT “Epistemologias decoloniais, territorialidades e cultura” do CLACSO (Conselho Latino Americano de Ciências Sociais). Membro da Rede Antirracista Quilombação. E-mail: dennisol@usp.br Site: http://www.dennisoliveira.info