Pesquisar
Close this search box.

» Post

KWESUKESUKELA, na voz do GRIÔ (GRIOT)

Minha/ Nossa história poderia começar com a expressão “Kwesukesukela…”, que quer dizer “era uma vez, há muito tempo…”, dita pela voz do contador tradicional, o griô. Responderíamos, plateia, “cosi, cosi…”, que significa, entre os povos da África do Sul, “estamos prontos para ouvir”. Talvez uma bênção recaia sobre você que empresta seus ouvidos a uma contadora, eu, contarei algumas histórias. As divisões estão delineadas: quem conta, sou eu e quem ouve/lê, é você.

Uma realidade que, por si só, coloca em xeque a narrativa registrada nos livros de história, ainda que tenham tentado contar outra história. O Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), 2021 está organizado de modo que o livro didático da disciplina História como conhecemos não existe mais no Ensino Médio. Temos um apanhado de conteúdos que não seguem mais as possibilidades de organização temporal próprias da História, não se trata de conteúdos de História, mas de conteúdos que fazem referência à História. A história do movimento negro

Viver a história é bem diferente de contá-la, falar de ancestralidade vai além de desenterrar e dar vida aos mortos. Remover toneladas de terras, abrir túmulos antigos faz-se necessário para que os indícios comessem a aparecer. Servem como vestígios de acontecimentos que colocam em xeque a história oficial contada, na maioria das vezes, pelo ponto de vista dos vencedores. Enquanto os Leões não tiverem seus próprios historiadores, as histórias da caça sempre contarão a glória do caçador.

Histórias estas, compartilhadas e transmitidas de geração em geração, que podem ser distorcidas e adaptadas às pretensões do presente. Visões distorcidas sempre influenciam nossas interpretações e impossibilitam as gerações mais novas de se conectarem. Quase sempre é preciso ir até o final para entender o propósito do livro e entender a tradição, apenas como repetição do passado ou enxergá-la como uma lápide fixa, é um equívoco.

Esfrego a claustrofóbica lâmpada, em busca de um generoso gênio, para criar novas narrativas. Eis, os griôs (griots), contadores de histórias e perpetuadores da cultura africana, as palavras já saem do corpo com força simbólica. Busco histórias atreladas à personagens com diferentes visões de mundo, ora distantes, outrora tão próximos como se fôssemos nós mesmos nos confessando. Que articule com o meu/nosso lugar de fala, nossa luta coletiva, pautada por marcadores de raça e geração, derrubando o “mito da democracia racial” no Brasil.

Tento não concluir para não paralisar as energias. Quero uma história sem fim submersas em sobrevivência, vivências, representatividade, identidade, diversidade e ancestralidade reverberando em corpos da diáspora. Um corpo que contém em si a herança dos mortos e a marca social dos ritos. O Cultne – Acervo da Cultura Negra, fundado em 1980, tem como missão manter vivo o legado da cultura e das grandes conquistas negras no Brasil.

O filme, “A Noite dos Reis”, (La Nuit des Rois) de Philippe Lacôte,  um ex-jornalista de rádio da Costa do Marfim, é uma produção conjunta entre Senegal, Canadá e França. Estreou dia 05 nas salas de cinema nacional  e discute a representatividade e a diversidade no cinema e nas artes em Portugal. Conta com diversas referências, dentre elas o já clássico “Cidade de Deus”, tornando-se uma experiência imersiva na MACA, a maior prisão de Costa de Marfim, numa noite de lua vermelha que reflete no passado pré-colonial da Costa do Marfim e na situação atual do país. O objetivo é contar a história até ao amanhecer ou perder a vida.

O recém-chegado Roman se transforma numa espécie de Xerazade, cuja vida depende da forma como os seus atributos narrativos e ficcionais impressionam a comunidade. Torna-se um verdadeiro griô, “ponte entre os tempos”, ao invocar o folclore altamente detalhado e simbólico.

“A Noite dos Reis” é também o título de uma das obras de Shakespeare,o que significa que o filme pode ser resumido como uma luta de poder.

Entregue a leitura, o livro – O Avesso da Pele, Jeferson Tenório, traz a violência policial como fio condutor. Conta a história de Pedro, um jovem de vinte e dois anos que tenta viver o luto reconstruindo as memórias do pai, Henrique, assassinado brutalmente pela polícia depois de sair do trabalho. Pedro, torna-se um griô ao reconstruir os passos do pai numa narrativa pouco fiel, ao juntar os pedaços, retalhos da memória e inventar uma história. Ele reconstitui a história para ele, na intenção de arrancar a ausência do pai do seu corpo e transformá-la em vida.

Para quem não leu, Tenório eterniza uma realidade escancarada, a de que basta ser negro para estar fora da normalidade e não merecer a mínima possibilidade de voz,  traz o despreparo das forças policiais. Este é um dos mecanismos de extermínio da população negra e periférica.

Esse mês, Anderson Moraes fundador e coordenador do Jornal Empoderado estreou no dia 15, o programa “Fórum 11h30”. Abordando o tema “A política da violência policial”, tecendo narrativas sobre o aumento da violência policial em tempos de governo Bolsonaro. Os convidados foram: a rapper e ativista Nega Gizza, o pesquisador Diego Francisco, o vereador petista Renato Freitas e o pesquisador e professor Luiz Eduardo Soares. https://www.youtube.com/watch?v=CsXn07PmqB4

Transcrevo, para não alterar a história: “Você apenas pensou que havia um problema com você, mas talvez nunca tenha percebido que toda aquela vontade de ficar calado, que toda aquela vontade de permanecer quieto, pudesse ter a ver com a cor da sua pele. Que seu receio de falar, seu receio de se expor, pudesse ter a ver com as orientações que você recebeu desde a infância: não chame a atenção dos brancos. Não fale alto em certos lugares, as pessoas se assustam quando um rapaz negro fala alto. Não ande por muito tempo atrás de uma pessoa branca, na rua. Não faça nenhum tipo de movimento brusco quando um policial te abordar. Nunca saia sem seus documentos. Não ande com quem não presta. Não seja um vagabundo, tenha um emprego. Tudo isso passava anos reverberando em você. Como um mantra. Um manual de sobrevivência. (p. 88)”

Pedro busca se entender como sujeito negro em uma Porto Alegre racista e intolerante ao diferente. Falas como a acima citada são uma constante não no sul do Brasil, mas em qualquer região em que haja negros no mundo. Somos transportados para a realidade brasileira e mundial, gerando questionamentos quanto a ameaça, perigo ou crime que Agatha Félix, João Pedro, Evaldo dos Santos Rosa, Jean Rodrigo da Silva Aldrovande, Hélio Ribeiro, Gleberson Nascimento Alves, Alan de Souza Pereira, Jorge Lucas Paes, Thiago Guimarães, Jhonata Dalber Matos Alves e George Floyd, entre outros, cometeram. O que tiveram como elo a cor – negra – e serem periféricos.

Temos um corpo repleto de estigmas e preconceitos enraizados no racismo que sofre várias outras violências que atravessaram sua existência. Para o autor, Pedro, deixa de ser apenas um corpo negro quando passa a ter nome e toma consciência de sua própria existência, torna-se um indivíduo. Se compreender como alguém capaz de pensar, refletir e agir. Rompemos diariamente a política do avestruz, buscando saber quem somos – “NÓS” e quem são eles – os “OUTROS”. O JE não apenas nota e vive a invisibilidade racial, mas discute e desvela.

Kindle com a capa do livro O Avesso da Pele em primeiro plano. Ao fundo, está um livro de capa de tecido com um óculos de armação quadrada apoiado em cima.

Outro griô, o rapper Emicida, inicia o documentário “AmarElo – É Tudo Pra Ontem” com o ditado ioruba que diz: ‘Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje’  e ressalta “Eu não sinto que eu vim, eu sinto que eu voltei.” Ele traz no documentário, narrativas que foram, vão e serão costuradas em camadas legitimo efeito cebola, momentos históricos, uma verdadeira aula de história sobre a luta do movimento negro por visibilidade. Dividida em três atos (plantar, regar e colher).

Emicida reconta a história, profetiza e  acredita que AmarElo será e é “um farol de inspiração para muita gente”, um convite para pensar olhando daqui para lá, com elementos trazidos de lá. Conectando a nova geração aos que fazem a história do movimento negro no Brasil como Leci Brandão; o arquiteto escravizado Tebas da São Paulo século 18, a Frente Negra Brasileira, primeira organização do ativismo negro na década de 1930; a feminista negra Lélia Gonzalez (1935-1994); Ruth de Souza; o Teatro Experimental do Negro criado por Abdias do Nascimento em 1944; Marielle Franco e o Movimento Negro Unificado (MNU) surgido em 1978 em meio a ditadura militar.

Amo esse esse espaço transitório entre o ouvir, o recontar e o escrever, onde Emicida sintetiza dizendo: “… o que os jovens querem é reescrever a história.”

 

Trago narrativas endereçadas a “nós”, que possuímos “defeito de cor”. No período colonial havia uma lei […] que impedia que negros e mulatos ocupassem cargos civis, militares e eclesiásticos, reservados aos brancos. Quando o talento, a competência ou a vontade eram muito grandes, o negro ou mulato podia pedir a ‘dispensa do defeito de cor’.

A essa altura o corpo apoia a narrativa, falo da peça ProtAGÔnistas, idealizada e dirigida por Ricardo Rodrigues, junto com os parceiros de núcleo Renato Ribeiro, Mariana Per e Washington Gabriel. Temos a aderência da história ao corpo e assim temos novos contadores de história, novos griôs, 25 corpos negros, artistas negros da música, teatro, circo e dança, celebrando à produção negra paulistana. 25 corpos fluindo contranarrativas, trazendo à tona elementos de um múltiplos discursos esculpindo história, memória, identidade e cultura.

Fica explícito que a arte de contar histórias é algo inerente do ser humano. Pertinente citar  e recorrer a fala de Flip Couto, dançarino, performer e mediador cultural – “quando um corpo negro se movimenta, ele recoreógrafa toda sua existência no mundo criando (re)conexões e (re)conhecimentos em busca de se apropriar de cada parte de seu corpo e de sua própria história ancestral.”

A peça-filme, “Desfazenda – me enterrem fora desse lugar”, do grupo O Bonde, residiu no Itaú Cultural em Junho, o dramaturgo paulista Lucas Moura relata o estudo do controle  do corpo negro, desde por onde podem ou não andar, até o que podem ou não imaginar. E percebeu que não era necessário inventar novas dores, porque a ferida nunca cicatrizou, a mensagem artística é poética, incisiva e cirúrgica.

Durante 70 minutos, O Bonde se propõe a investigar o processo de descobrir-se uma pessoa negra, surgindo assim um universo de memórias ancoradas aos corpos negros e revelações que trazem menos respostas do que provocam inquietações e questionamentos. Vozes negras silenciadas pelo racismo e pela violência policial, como Kathlen RomeuJoão Alberto e Ágatha Félix, são incorporadas dentro das várias camadas do roteiro, rastros de corpos negros em vários locais e momentos.

Agosto é o mês de aniversário do Jornal Empoderado que traz como fio condutor a palavra “existência”, há 5 anos contando, construindo, reparando e fazendo história. Anderson Moraes, fundador e coordenador do JE, tornou-se um griô ao fundar em 2016 com uma única certeza: queria dar “voz aos invisíveis”.  O JE deixa claro que não há corpo desabitado, nossos corpos negros nascem, falam, vestem-se, adornam-se, tornam-se receptáculos simbólicos, canalizam energias, comunicam-se, sentem e pensam. Múltiplos corpos contam a história junto com o JE desde segunda-feira (23) e encerram na sexta-feira (28).

23/08 – “Tolerância Religiosa: Saudando a existência” – 18h; 24/08 – “Esporte: Programa especial do “45 Minutos” – 20h; 25/08 – “Entrevista Exclusiva: Jornalistas entrevistam Silvio Almeida”- 18h; 26/08 – “JE 5 anos: Comemorando a nossa existência” – 19h.; 27/08 – “Nagulha: Hip Hop e Produção Cultural”. – 19h; 27/08 – “Fotografia Negra” – 20h e 28/08 – “Papo de Samba e Resistência” – 13h; “Desafios da Educação como prática libertadora” – 14h.; “O meio ambiente luta ao lado da fome” – 15h00; e finalizando com o tema – “Um projeto de pais pelo povo negro brasileiro.” – 16h.

NOTA

Não deixe de curtir nossas mídias sociais. Fortaleça a mídia negra e periférica

Esta gostando do conteúdo? Compartilhe!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

» Parceiros

» Posts Recentes

Categorias

Você também pode gostar

plugins premium WordPress

Utilizamos seus dados para analisar e personalizar nossos conteúdos e anúncios durante a sua navegação em nossos sites, em serviços de terceiros e parceiros. Ao navegar pelo site, você autoriza o Jornal Empoderado a coletar tais informações e utiliza-las para estas finalidades. Em caso de dúvidas, acesse nossa Política de Privacidade