Várias reportagens, manifestações de entidades e de movimentos sociais já denunciaram que as pessoas que mais morreram na pandemia do Corona Vírus, são as pessoas negras. Justamente a parcela da população que é mais pobre, mais vulnerável e tem menos acesso à saúde, ao saneamento básico e ao trabalho formal – o que fez com que muitas famílias sem renda se expusessem, sem condições de realizar a quarentena.
No meio desse caos genocida que estamos enfrentando, de falta de políticas públicas que enfrentem os efeitos sanitários e sociais da crise da Covid-19, o Ministério da Saúde por meio de sua Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde publicou no dia 19 de abril a portaria número 13 que:
Torna pública a decisão de incorporar o implante subdérmico de etonogestrel, condicionada à criação de programa específico, na prevenção da gravidez não planejada para mulheres em idade fértil: em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; em uso de talidomida; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e em tratamento de tuberculose em uso de aminoglicosídeos, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS.
A portaria causou protestos dos movimentos feministas brasileiros, pois consideramos a proposta eugenista e afirmamamos que não garante o atendimento de saúde para as mulheres que implantarem o dispositivo anticoncepcional. São duas questões postas, a primeira é que o grupo específico ao qual a portaria é direcionada é justamente a parcela pobre, preta e periférica das cidades brasileiras. A segunda, é que a portaria não garante atendimento às mulheres nas UBSs, não garante educação sexual e de gênero para as meninas nas escolas, ou seja, se trata apenas de tornar infértil um grupo específico de mulheres e evitar gravidezes indesejadas, mas pergunto gravidez indesejada para quem?
Para nós, mulheres feministas, as políticas públicas de planejamento familiar devem estar disponíveis para todas as mulheres, do contrário se trata de uma política eugênica que deseja controlar a natalidade de grupos específicos, e não trabalha em favor da autodeterminação reprodutiva das mulheres, estejam elas em situação de rua, de encarceramento ou com HIV/Aids.
A luta contra medidas que buscam controlar a natalidade de populações específicas não é novidade no Brasil, infelizmente. Controlar o corpo das mulheres por meio de políticas públicas não só é imoral, como é inconstitucional. Ao Estado cabe promover políticas públicas de planejamento familiar; às mulheres escolherem se querem ou não ter filhos. Programas com grupos específicos apontam para o controle de uma população indesejada, que precisa ser controlada e contida, a eugenização das pessoas indesejáveis pelo status quo social.
Em 1996, a pesquisa nacional de demografia e saúde constatou que 45% das mulheres brasileiras em idade fértil estavam esterilizadas, a maioria delas eram pobres e negras. Esse caso, que contou com a denúncia e com o protagonismo de mulheres negras, alçou proporções mundiais, pois foi constatado que no Brasil estavam em curso uma ação de esterilização em massa. A pouca informação sobre planejamento familiar e a pouca disponibilidade de anticoncepcionais na rede pública de saúde fizeram com que muitas mulheres fossem “convencidas” a optarem pela ligadura das trompas, ou laqueadura.
Há relatos, também, de mulheres que ao parirem seu terceiro ou quarto filho, eram esterilizadas pelo atendimento médico, sem consentimento e muitas vezes sem conhecimento. O horror disso é que a decisão de poder ou não ser mãe, é da mulher. Nunca deve ser uma decisão de outra pessoa, nunca! Se tratava do Estado invadindo o corpo das mulheres, sem consentimento ou desejo.
Na década passada, movimentos feministas do Rio Grande do Sul enfrentaram lutas contra o Implanon – dispositivo de hormônio implantado para anticoncepção. O poder público o direcionou públicos específicos, em especial adolescentes de periferia e em situação de abrigo, depois para mulheres em privação de liberdade. A grande luta se deu em torno do modo que se deu essa política: eram experimentos bancados pela indústria farmacêutica – as mulheres faziam parte de um teste clínico do qual não tinham nenhum conhecimento. Muitas mulheres que fizeram parte desse teste, tiveram que acionar a justiça para terem o implante retirado, pois não tiveram nenhum acompanhamento médico – Esta experiência está descrita na revista acadêmica Saúde e Sociedade, maio de 2012, n21/supl 1.
Em 2011, aconteceu o caso da Janaína que chocou o Brasil. O MP ordenou a esterilização de uma mulher em situação de encarceramento, pois decidiu que ela não tinha condições de ser mãe. Isso é muito grave! Não cabe e jamais caberá ao Estado decidir sobre o direito à maternidade de mulheres vulnerabilizadas. Cabe ao Estado oferecer meios para que cada mulher decida sobre si. Sabemos que a melhor maneira de prevenir gravidez não desejada é a informação, acesso à saúde sexual e reprodutiva e ter à disposição de qualquer mulher anticoncepcionais variados e adequados à situação de cada mulher – sendo uma política universal de planejamento familiar.
Da perspectiva das mulheres negras esse debate acontece a partir do paradigma da Justiça Reprodutiva. Ao invés de determinar quem deve ou não deve ser mãe, o Estado deve se ocupar de que as mulheres que optem por ser mãe tenham saúde, educação e condições dignas de criarem seus filhos. Por esse ângulo, o Estado deveria se ocupar de combater a mortalidade infantil que é maior nesses mesmos grupos. Ou ainda, evitar que a cada 23 minutos uma mãe chora a morte de um filho por conta da violência do Estado. A Justiça Reprodutiva parte do princípio de que esse debate é uma questão de Justiça Social, pois a existência de mulheres em situação de vulnerabilidade é efeito da desigualdade social. Não se deve impedir mulheres pobres de engravidarem, se deve dar condições dignas para que as mulheres possam decidir sobre seus corpos. Ações que não partam dessa premissa, apenas querem eliminar os indesejáveis da sociedade, por meio de uma faxina étnica que se dá pelo fuzil, pela fome, ou por programas que controlam a natalidade de mulheres pobres e periféricas.
É genocídio. É eugenia. É o racismo que hierarquiza pessoas, e decide quem deve viver, nascer ou morrer.
Simony dos Anjos é mãe do Bernardo e da Nina, Cientista Social graduada na Unifesp, Mestra em Educação pela USP e doutoranda em Antropologia pela USP. É colunista no portal de notícias justificando, integrante do Coletivo Evangélicas pela Igualdade de Gênero, da Rede de Mulheres Negras Evangélicas e militante do PSOL.
Do jeito que está o Estado decide quem deve ser o alvo da politica e pior ainda se julga no direto de pré julgar quem tem condições de optar pela maternidade. Não à toa já há setores usando a expressão “castração química” para se referir à portaria
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-sctie/ms-n-13-de-19-de-abril-de-2021-315184219
foyo: https://istoe.com.br/
https://www.cafehistoria.com.br/a-questao-da-saude-reprodutiva-e-o-feminismo-negro-no-brasil/
Sim, enfrentamos em uma década duas importantes lutas, uma sobre o Implanon, que foi direcionado para públicos específicos, em especial adolescentes de periferia e em situação de abrigo, depois para mulheres em privação de liberdade. E no final das contas tivemos que ingressar no MP para assegurar a retirada dos implantes porque eles se deterioraram nos braços das meninas e não havia atendimento do SUS assegurado a elas.
A segunda foi sobre os DIU com liberação de hormônio, mais recentes. O que acontece é que em geral são “doações” de laboratórios e que tem como adendo a realização de pesquisas em humanas sem a devida aprovação por comitês de ética de pesquisa, e nem se conhece em profundidade tais medicamentos.
Como o acesso à saúde é difícil às mulheres, passam a conviver com as sequelas.
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-311X2017001305004&script=sci_abstract&tlng=pt
Não cabe ao Estado direcionar políticas para esterilização de mulheres vulneráveis!
O PDL 176/2021 da Deputada Jandira Feghali quer anular a Portaria que incorporou o implante subdérmico de etonogestrel e a criação de programa específico para a prevenção da gravidez não planejada para mulheres em situação de rua; com HIV/AIDS; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e em tratamento em uso de aminoglicosídeos, de dolutegravir; ou talidomida.
Em respeito aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, as Deputadas que assinaram o projeto afirmaram que “O Estado deve prover todos os instrumentos para que as mulheres brasileiras façam a opção pela maternidade. Uma opção esclarecida, mas livre de intervenções e disponível para todas e não para aquelas que o governo considera incapazes de optar, ou pior, decide por elas que não são portadoras do direito de serem mães”