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Futebol feminino, feminismo e os homens

 

Nossa! Ela sabe bastante de futebol! São os dizeres que sempre acompanham minhas últimas palavras toda vez que estou em uma roda de conversa sobre o assunto. Pois, noventa e cinco por cento dessas rodas sempre foram formadas por homens que acreditam fielmente que para saber sobre futebol, basta ter pinto e não cérebro.  Eles entendem que o grau de autoridade da fala sobre futebol reside no falo. E não no conhecimento. Por isso, já vi muitos homens não admitir perder uma conversa sobre o assunto comigo e tentar desconstruir minha postura e o que eu faria ali, e não meus argumentos.

Se uma mulher que gosta e fala de futebol sofre assim, imagina uma que joga. Considero o espaço do futebol; o maior espaço de interdição à mulher ao mundo público que já existiu no Brasil! Já vi mulheres pedreiras, marceneiras, motoristas, seguranças, chefes, mas ser jogadora de futebol talvez seja a profissão mais difícil de todas. Seja porque na infância, ela é tolhida totalmente em seu desenvolvimento físico-motor, seja porque a menina é incentivada desde cedo a ter dupla jornada: a escola e as tarefas domésticas. Muitas meninas são criadas como verdadeiros bibelôs, moças arrumadas e bem comportadas com fitas na cabeça, saias engomadas, presilhas, laçarotes, tiaras e sandálias já com saltinhos e bicos finos, nem um pouco confortáveis para uma criança, mas educativos quanto à moda que prende o corpo feminino e à postura que se espera dele.

Ainda hoje, há serviços sociais oferecidos às meninas pelo poder público e por outras organizações que não fogem da originalidade das aulas de balé, artesanato e corte – costura. Não que esses cursos fossem menores, ao contrário, o problema é tentar obrigar todas a fazer sempre as mesmas coisas e não oferecer outras possibilidades. As aptidões deveriam ser a única mola propulsora para oferecimento e escolhas de atividades para e pelas crianças, e não o sexo que vem marcado na certidão de nascimento. Neste sentido, toda jogadora de futebol para ser o que ela é, jogadora de futebol, antes ela teve que ser uma menina mal educada, uma garota rebelde e toda menina que joga futebol hoje tem que rebelde inevitavelmente ser.

Sem modos, moleca, a menina mal educada vence os apelidos, as picuinhas, a misoginia, a desconfiança e até abusos. Marta conta bem o que sofreu na infância quando foi escalada em um time de meninos, capaz de fazer o time adversário retirar-se do campo por causa de sua presença. E o medo de perder para uma menina?Coisas do macho brasileiro difícil de explicar…

Marta, a menina rebelde se transformou na maior jogadora de futebol de todos os tempos e na nossa maior feminista contemporânea. Aquela que usa o futebol não apenas para mostrar sua arte em si, suas habilidades fora do comum, mas para lutar por igualdade de gênero. Aquela que marca um gol e lembra que o mundo do futebol não é o mesmo para homens e mulheres. Que passa um batom roxo e vermelho para entrar em campo e dizer que, antes de tudo, joga futebol com um corpo de mulher.

Posso dizer que ela é a maior jogadora de futebol atual entre homens e mulheres, porque nem Cristiano Ronaldo e nem Messi tem mais bolas de ouro do que ela. Mas as desculpas dos analistas para não colocá-la como a maior em nossa contemporaneidade e na história é que o nível do futebol feminino seria mais fraco. São adjetivos como esse sem análise técnica, tática e contextual que demonstra com quantos paus, vulgo, misoginias, se faz uma canoa – leia-se o patriarcado. Por que adjetivar de fraco? Por ser feminino?

Lembro que a palavra “feminino” carrega consigo infelizmente toda as polaridades  tidas como negativas pela dicotomia de pensamento que se estabeleceu na civilização ocidental. O feminino passou a ser visto como sinônimo de feio, pequeno, escuro, noite, baixo, fantasia, emoção, loucura, hórrido, gelado, desespero e obviamente, fraco. Enquanto o masculino seria relacionado com as polaridades consideradas positivas de força, beleza, luz, alto, razão, mente, quente e sóbrio.

O futebol no Brasil se tornou o sinônimo do lugar do masculino por excelência, por essa razão, ele vem associado à força, racionalidade do jogo, poder e viralidade. Para o homem brasileiro, a mulher que adentra esse espaço,  o ameaça frontalmente e ele tem medo de descobrir que no fundo no fundo, não é tão forte assim, não é tão poderoso assim, não é tão racional assim. Medo de perder no jogo para uma mulher.

Continuo a escrita desse texto pós a eliminação da seleção feminina diante da França, depois de uma partida aguerrida, mas sem pernas para uma prorrogação, o choro das jogadoras, o desabafo da Marta que se torna a porta voz de uma geração que poderia ir muito além, ser campeã do mundo, ser ouro nas Olimpíadas, mas que só não foram porque nunca tiveram um pingo de estrutura, verdadeiramente falando, voltada para elas.

A CBF e as federações sempre trataram o futebol feminino como um favor, como um anexo, algo em que elas se veem obrigadas a investir o mínimo, mas sempre com os restos do masculino. Vejo o choro da Marta e penso o quanto é difícil ser mulher e resistir a tudo isso todos os dias. Porque não é só no futebol, mas é principalmente na vida que as mulheres nesse país e, quiçá neste planeta, mais sofrem, vivem com os restos, são pensadas como anexos, não são respeitadas em suas particularidades. Só quem é mulher sabe o que é andar sozinha à noite apertando o passo, o coração acelerado e o rosto olhando para trás.

Escrever e falar sobre futebol é tão desafiador quanto jogar futebol, porque a autoridade da fala, não só no Brasil, mas não mundo se desenvolveu em torno do falo. O lugar da fala é o falo, disse uma vez um colega meu em uma discussão, sem saber que reproduziria Lacan. Lacan chegou à conclusão óbvia de que a linguagem é paradigmática e falocêntrica, imagina então de um lugar que foi simbolicamente estruturado como reino dominante do masculino?

 Como as mulheres, para as quais foi instituído o silêncio e a imobilidade, poderiam adentrar duas vezes um território proibido para as pernas e para a boca? Sem o falo, as mulheres pereceriam em autoridade sob o ponto de vista dos homens. Por isso, eu já ouvi o quanto seria ridículo uma mulher se exaltar para falar de futebol, imagine jogar! Se exaltar, gesticular quando te veem como imóvel, sair do tom, falar de algo que para si não foi permitido, falar quando te esperam que apenas obedeça, sirva, escute e fique quieta!

Jogar, sair com a bola, ir para cima, atacar, cruzar, fazer o gol, atitudes que se desenharam na nossa sociedade como próprias dos machos e não é a toa que essas premissas são colocadas como exclusivamente deles no campo da bola e da conquista amorosa. Fato que faz com que seja delicado, até hoje, para uma mulher se posicionar e dizer o que quer e o que pensa na arte do amor e do futebol.

Como as mulheres podem querer marcar um gol se os homens ainda as tratam como meros receptáculos de pernas abertas? Armar a jogada, armar o bote, fazer o meio de campo, atacar com a bola do jogo, enquanto os homens esperam delas que apenas atuem na defesa, sejam  imóveis, submissas e mudas. No máximo, dissimuladas. Se elas quiserem driblar toda uma situação terão que apenas contra-atacar, nunca partir com vontade e autonomia próprias.

O homem não sabe o que fazer com a vontade da mulher, na verdade, ele tem medo. Medo da mulher que fala o que quer por si mesma, medo da mulher que sai do seu espectro mudo e imóvel e gesticula, baila com as pernas, cabeceia e mata no peito todas as dificuldades, todos os obstáculos e contratempos para ser sim protagonista de sua própria vida, seja ela na vida pública, na linguagem, na vida privada e familiar, no amor, no futebol e no sexo.

Toda mulher que foi uma menina desobediente se torna uma adulta segura, autônoma e independente. O futebol é o grande teatro da vida. Cabe os homens se perguntarem: Por que teriam tanto medo das mulheres dominarem o palco e o espetáculo? Quando eles poderiam relaxar e usufruir da arquibancada uma contemplação de um jogar na vida, que não é fraco, mas diferente. O futebol e uma sociedade mais justa e igualitária agradecem.

NOTA

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