Não consigo esperar a quarta-feira de cinzas e já enxergo a chegada de março, simbólico para as lutas de nós mulheres. Certos silêncios merecem um minuto de barulho em meio ao caos e à euforia, simbolizados pelo Carnaval. Podem retrucar, mas a música “Mulher do Fim do Mundo” inflama os sentimentos e nos dá norte. Ainda que a letra da canção seja da autoria de Alice Coutinho e Rômulo Fróes, está intimamente ligada à Elza Soares, que traduz nossa tristeza e alegria de coexistir. A temporada do pré-carnaval começou e deixo minha pele preta, minha paz, minha voz, minha fala e minha opinião aqui.
Precisamos quebrar alguns tabus, criar questionamentos e quem sabe, um levante. Abordar o silêncio e o silenciamento da mulher negra, torna-me a criança do conto “A Roupa Nova do Rei”, de Hans Andersen, digo que todos veem e tem medo de trazer a público. Sou ré confessa por não ter mais condições de arcar com o silêncio que me é imposto e por dar nome a parte do silêncio instaurado em mim. Recalculo a rota.
Ouço, “Fabi, seja sincera”, entendo como: “diga algo que faça eu ter razão” e enxergo como um desejo profundo de não ouvir. Tendo uma sinceridade incompatível com o que ele(a) pensa/acha, recorro ao ditado popular “Devagar com o andor, pois o santo é de barro”. Omitir nunca foi uma opção, não cabe à mim morder a língua, ficar com vontade de dizer algo, enxergar meios-termos e evitar o “sincericídio”.
Cada comentário vira um eco, cada crítica um espelho distorcido que devolve uma imagem que nem sequer me pertence. O desfecho me leva ao desenlace entre o silêncio e o silenciamento. Silencio-me intencionalmente diante do rótulo de “palestrinha” e reformulo o ditado popular – “quem cala, consente” para “quem cala nada quer dizer”. Enquanto mulher negra eu percebo as tentativas de domesticação e os mecanismos de esvaziar meu discurso. Ora invoco o silêncio intencional e participo do efeito manada, torno-me adepta da expressão popular – “quem dorme com os olhos dos outros não acorda a hora que quer”. Outrora debato o mito do silenciamento, assim como o pacto do silêncio.
Faço uma triagem interna antes de escrever e colocar mais informações nesse mundo lotado. Muitas das coisas escritas podem lhe incomodar e lhe fazer julgar “mi-mi-mi”. Inúmeras foram às vezes que meu direito de me expressar foi retirado, impuseram o silêncio, fui calada mesmo tendo algo a dizer, minhas falas foram reformuladas e criei o silêncio onde o diálogo deveria ser soberano. Consegue contar nos dedos quantas foram as suas?
Escrever é um diálogo, uma encruzilhada onde nos encontramos, quase um ritual. Reforça a ideia do encadeamento dos textos por mim redigidos de modo a construir uma só narrativa. Contesta a narrativa enviesada de que devemos carregar nossas lutas sem incomodar ninguém. Conte-me, onde estão seus espaços de silêncio e de que forma se tornaram amarras?. Querem macular nossa sanidade, nos reduzir ao silêncio.
Tomada por uma sucessão de cenas, testemunhos e conselhos, resolvi que eu precisava, sim, denunciar. Os detalhes da denúncia pouco importam nesse relato. Denuncio não querer ser convencida de estar morta. Lanço mão do poema Torpedo” de Cuti: “é preciso ter cuidado com a técnica de se fingir de morto/ porque muitos abusaram / e entraram em coma”.
Enquanto umas posam de modernas e antenadas, no alto de suas supostas virtudes, outras assim como eu são desqualificadas e silenciadas pelo atrevimento de falar, escrever, se manifestar. Somos fortemente incitadas ao silêncio e nele nossas memórias se confundem. De fato, podemos falar ou devemos resolver no silêncio entre nós?
Nos disseram: “Penso, logo existo”, retrucamos sussurrando: “Sentimos, logo podemos ser livres”. Evidente que estamos em estado de guerra, performando papéis fora do repertório previamente estabelecido. A questão ainda não é sobre “quem”, mas sobre “como” nos é dado lugar de fala. Há uma relação dialética entre falar e ouvir, quem fala e quem escuta, o que falamos e o lugar de onde falamos. Falas criam lugares, lugares criam falas e batalhas, do nosso entendimento do que é ou deve ser. Não se trata simplesmente de formular uma fala audível.
Lutamos em “duas frentes”: do nosso ponto de vista, seja ele qual for e outro pelo direito de falarmos, termos ideias e sermos reconhecidas. Segundo, Patricia Hill Collins, o lugar de fala não é sobre uma pessoa com direito a fala, é sobre um rastro de representação de um grupo. Somos categorizadas como geniosas, raivosas e brutas ao impor nossas opiniões e limites. Somos dramáticas demais, como se enxergássemos demais, falássemos demais, ouvíssemos demais.
O insight desta matéria gira em torno da fala, do silêncio e do silenciamento. Na mesma toada, muita gente passou a assimilar a ideia de que o silêncio é vazio, ausência, um buraco que precisa ser preenchido. Mas há outras visões possíveis. Ao longo dos 7 anos como colunista do Jornal Empoderado crio hiatos e espaços de quietude entre as matérias. Entendo como escolha de não quer traduzir todos os acontecimentos, das grandes tragédias à compra de um pijama novo. Quando esperam sorrateiramente que eu escreva – assisto, leio e escuto, um exercício sincericida.
Existem muitas maneiras de nos silenciar. O não contar, o não narrar nos coloca num estado anestésico do não dizer. Essa consciência é perniciosa, cria uma série de lacunas em nossa fala e quase sempre é um grito silencioso. Essas vivências apontam possibilidades tardias de fala, remetendo às mulheres representadas na obra Olhos d’água, de Conceição Evaristo. O poema “Vozes-mulheres”, de Conceição Evaristo, expõe o silenciamento que marca várias gerações de mulheres negras.
Assim como os erros individuais nunca são lidos como singulares, a transformação do silêncio em palavras é um investimento coletivo. Falar sobre o contínuo silenciamento, ainda é um grande tabu. Somos aconselhadas a colocar nossas necessidades em segundo plano e desistimos de ser leais a nós mesmas.
Esse discurso não é novo, o silenciamento evolui para a invisibilidade, ou seja, é inexistente quem não possui voz. Você já se ouviu hoje?
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Revisão e edição: Tatiana Oliveira Botosso
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Falar é um ato político
Criar diálogos nos permite expor pensamentos e culturas referente ao silêncio.