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“Denegrir” – a necessidade de se reconhecer negro ou negra!

Sou uma mulher 38 anos, mas só sou negra há cinco anos. Essa é uma questão muito importante que deveria ser discutida em todos os espaços sociais, primeiramente, dentro de casa. A questão da cor, do fenótipo da pele, dos traços do rosto, do tipo do cabelo não dizem se você é negro ou não. Você pode ter todos esses itens, ter a aparência de uma pessoa negra, mas não ter a consciência de que é negro ou negra. E é isso o que acontece no Brasil. Por conta, principalmente da miscigenação, da busca por um branqueamento como se fosse a salvação do nosso país, do preconceito, discriminação e racismo institucionalizado, impregnados em todos os espaços sociais (nas casas, nas escolas, nas mídias, nos ambientes de trabalho, nas ruas etc.), ser negro no Brasil é ser indigno, ser negro é estar em um lugar social de subalternidade, de dominação, de opressão; é ser o renegado, o estigmatizado, o “culpado”, o preguiçoso, o sujo, o criminoso, o promíscuo, o pobre, o miserável… e tantas outras características pejorativas que ninguém quer ter associadas à sua imagem. Esse esteriótipo do negro não é culpa dele próprio, mas de uma sociedade racista como a nossa brasileira, em que a escravidão foi abolida pelas “elites”, apoiada em várias e várias leis e procedimentos que impediram os negros de terem sua dignidade respeitada, mesmo após a abolição da escravatura. Se na antiguidade, os negros eram preteridos por conta de não terem “alma”, a situação brasileira atual mostra-nos que eles continuam sendo preteridos devido ao fato de não terem direitos garantidos. São os negros brasileiros os que mais sofrem com a pobreza, miséria, discriminação, assédio, violência, assassinato, etc. É o negro que é o mais oprimido em nossa sociedade. E, se apontarmos o caso da mulher negra, podemos dizer que essa opressão aumenta ainda mais, pois perpassa a questão de gênero, com a questão de raça. Por todo esse contexto, assumir-me como uma mulher negra não era tarefa fácil, era difícil, dolorosa e demorou mais de três décadas para que ocorresse comigo.

O Brasil foi o país do mundo que mais recebeu negros escravizados. O país foi o último do Ocidente a abolir a escravidão oficialmente, e isso por pressões internas, dos negros escravizados que se organizaram em quilombos e movimentos, e por pressões externas, de países capitalistas que queriam lucrar e para isso precisavam de pessoas “livres”, com renda para comprarem. Mas o Brasil é um país tão racista que conseguiu atribuir uma luta dos negros a uma mulher branca, à princesa Isabel, como se ela fosse a redentora de todos os negros; o que na verdade não era: ela apenas atendeu às pressões que sofreu dos movimentos de resistência dos negros. Em 1888, deu-se a abolição da escravatura no país, um processo que já vinha sendo delineado por lutas e reivindicações dos negros, mas é claro que essas histórias de resistências não foram e não são contadas, demonstrando o quanto o Brasil apaga as lutas de seus oprimidos por seus direitos, a luta pela liberdade, a fim de manter esses oprimidos em lugar de subalternidade, de passividade, de alienação, de não-consciência. Ninguém no Brasil aprende nas escolas que os negros estavam organizados em prol de sua libertação; que havia vários movimentos de revoltas, vários quilombos, vários negros e mesmo brancos lutando por uma libertação justa, em que os escravizados tivessem, efetivamente, uma possibilidade de seguirem suas vidas com dignidade, inseridos na sociedade brasileira. Essas histórias foram silenciadas e substituídas pelas fakes news que colocam os colonizadores, os brancos, como os grandes protagonistas da libertação dos negros, na figura da princesa Isabel.

Dessa forma, desde sempre, na história do país, todos os direitos aos negros foram negados, retirados, dificultados. Situações de miséria, pobreza, violências e opressões poderiam ocasionar revoltas, insurgências, lutas por direitos… Assim, os opressores fizeram questão de manterem sua dominação sobre os negros, não mais física, mas social, por meio da imposição de sua cultura, por meio da propagação de “mentiras” que se tornaram verdades inquestionáveis, tais como: “os negros são pobres, porque não se dedicam, porque são preguiçosos, arruaceiros, viciados, criminosos, promíscuos”; “os negros não têm ascensão social, porque não estudam, não conseguem entender, têm dificuldade de compreensão e de entendimento”; “os negros não merecem reconhecimento e direitos, porque são violentos, arredios, primitivos, brutos” etc. Essas e tantas outras mensagem de desmerecimento dos negros passaram a ser “máximas” sociais propagadas nas famílias, nas escolas, nas mídias e em todos os espaços sociais. Colonizando a mente da população negra e branca, os opressores conseguiram manter os negros submissos e oprimidos. Aliás, mantêm a maioria deles até hoje assim!

Aqueles negros que dizem que o racismo não existe, que são contrários a cotas raciais, que dizem que os negros se vitimizam, que fazem mimimi, que são preguiçosos, violentos, criminosos e por aí vai, são negros que tiveram suas mentes colonizadas; são os oprimidos que têm o sonho de serem opressores e, para isso, reproduzem o discurso de opressão, como apontava Freire, ou que fazem a assimilação, como escreve bell hooks, tentando a todo momento passarem despercebidos como negros, ao assimilarem a cultura branca do opressor para serem aceitos, respeitados. Infelizmente, com o sonho de serem opressores e para se sentirem assim, muitos e muitos negros propagam as falsas ideias da inferioridade dos negros, de sua violência, de sua falta de meritocracia. São negros oprimidos que são usados pelos opressores para a manutenção da nossa sociedade racista e desigual, é por isso que dizemos que o racismo em nossa sociedade é instituicionalizado. Faz parte de todas as instituições, faz parte, até mesmo, de nossas mentes.

Dentro de uma sociedade, extremamente, preconceituosa e discriminatória, o racismo mantém-se, justamente porque não é abordado, desmacarado, discutido, debatido e trabalhado. Aqui no país, dificilmente nos espaços sociais de formação e propagação de ideias, são abordadas as questões raciais, como preconceito, genocídio da população negra, violência e carceramento em massa de negros, violência e erotização dos corpos negros etc. Para evitar a perpetuação desse racismo em todas as instituições, até mesmo dentro de nossas casas, nossas famílias, nossas escolas, nossos círculos de amizade etc., temos de trazer a questão de racismo à tona, temos de desvelar esse assunto sempre que possível e mesmo quando não for possível. É isso que tentarei fazer agora ao abordar um pouco da minha história de vida.

Filha de uma mãe negra e de um pai branco, cresci com esse racismo institucionalizado dentro de minha casa. Sendo miscigenada, como se eu pudesse escolher um dos lados, preferia ser “mulata” a ser negra. Minha própria mãe não tinha tido uma criação dentro do movimento negro, com um empoderamento que pudesse a proteger, nós também não tivemos uma educação antiracista e empoderada que pudesse nos blindar um pouco quantos aos preconceitos. Eu percebia o quanto era difícil ser negra e, como que querendo me proteger, quando me perguntavam minha cor, sempre dizia “mulata”, explicando que minha mãe era negra, MAS meu pai “era branco”. Afirmava ser “mulata”, como se a branquitude de meu pai me desse a redenção que Cam recebera no quadro A Redenção de Cam (1985), de Modesto Brocos, obra que mostra o quanto o “embranquecimento” gradual das gerações de uma família pela miscigenação, poeria livrar os herdeiros do racismo existente. No entanto, nunca pude ter essa redenção, isso porque, mesmo querendo esconder minha negritude atrás da palavra “mulata”, sempre fui tratada como negra pelas pessoas. A propósito, quando descobri o significado da palavra “mulata”, um significado pejorativo que indica uma animal híbrido, misturado, resultado do cruzamento de cavalo com jumenta ou jumento com égua, percebi o quanto eu mesma me rebaixava ao não reconhecer minha negritude. Isso porque, o fato de ser negro ou negra não está, especificamente, na textura de seus cabelo, nos traços do seu rosto, na cor de sua pele, isso é uma questão de reconhecimento, uma questão de aceitação e eu precisava disso para me tornar uma mulher mais forte e mais consciente dos meus direitos. Como não me via como oprimida, como negra, não poderia perceber todo o preconceito e opressão que sofria, não poderia me libertar, lutar, reivindicar.

Sofria preconceitos por conta de minha cor, desde a  minha infância, tanto na família, quanto na escola. Era chamada de neguinha do cabelo duro, cabelo de bombril, leão, bruxa, medusa (quando fazia tranças), Bob Marley e por aí vai. Não era escolhida para dançar quadrilha, para apresentações de dança, até mesmo, para os times nas aulas de educação física. E, por ser uma pessoa que percebe muito as coisas e que se revolta com injustiças, sempre me colocava. Entre os familiares ficava com a fama de chata, como se eu tivesse a obrigação de aceitar sofrer racismo calada, sem me colocar. Uma das formas que encontrei de lutar contra esse racismo declarado e velado, quando saía na rua e os desconhecidos ficavam me medindo, me olhando e cochichando, foi alisando o cabelo. Queria isso desde a infância, mas minha mãe fazia tranças e prendia o grande volume de cabelo que eu tinha, para evitar situações vexatórias. Lembro que uma vez ela passou pente quente em meu cabelo (um dos meus melhores amigos por anos e anos de alisamento) e eu cheguei toda feliz na escola. Mas a alegria durou pouco, logo o cabelo começou a armar e minhas próprias “amigas” começaram a rir dele. O pente não era suficiente para domar meus cabelos, assim tive que partir para química. Minha mãe já sofria muito desde sua infância com o fato de ter de alisar o cabelo e acredito que não queria aquilo para mim. Mas a insistência foi grande e com 12 anos, consegui minha ascensão, agora, poderia me orgulhar da minha descendência indígena e deixar oculta a africana, pois tinha alisado quimicamente minhas madeixas.

Achei que o alisamento  fosse me proteger do racismo, me fazer ascender socialmente, mas bastava uma chuva ou lavar os cabelos para que minhas raízes negras voltassem à tona. Isso me incomodava muito, tanto que cheguei a usar, por muito tempo, tranças grossas, feitas com meu próprio cabelo, mas as ofensas em relação ao cabelo, permaneciam também com as tranças, machucando minha autoestima. Por fim, quando fiz 18 anos, atingi a maioridade e comecei a trabalhar, passei a dedicar boa parte de meu salário a alisamentos, escovas, pranchas e chapinhas, isso sem contar meu fiel escudeiro, o pente de ferro que esquentava no fogão e deixava bem quente para alisar minha raiz e “meus ancestrais”. Quantas e quantas vezes não queimava a testa e a orelha, mas me sentia vitoriosa pelo fato de desfilar com os cabelos longos e lisos. Também descobri o henê, que afinava muito e muito meu cabelo, um homicida de cabelos crespos. Utilizei-o por anos e e anos, assim como depois, a progressiva. Sempre alisando e alisando meu cabelo, não conhecia sua textura, seu formato, não conhecia nada dele. E talvez assim permanecesse se não fosse por conta de minha filha.

Como já dito, meu cabelo era muito importante para mim, e hoje sinto que também para muitas de minhas alunas. Sendo professora desde os meus 18 anos, recordo que minhas alunas com os cabelos crespos olhavam para mim com admiração, pensando o que eu fazia para ter o cabelo daquele jeito. Mais tarde, quando assumi os cabelos naturais e crespos, uma aluna chegou a dizer que até pesquisou na internet o produto que eu usava; que seu sonho era ter o cabelo liso e sadio como o meu era. O que mais me arrependo dessa minha fase é que eu, oprimida, representava a cultura do opressor, tentava me infiltrar, assimilar, ser um deles, e o pior, sem querer, fazia com que isso chegasse às minhas alunas e afetasse a autoestima e a aceitação de suas características. Falo isso com tristeza de uma época em que eu não conhecia o poder libertador de assumir a minha negritude. E hoje, com alegria, pois o fato de ter assumido meu cabelo natural há cinco anos, radicalizando e fazendo o big chop (“grande corte”, em inglês), em que cortei todo o cabelo alisado e fiquei com os cabelos curtinhos, fez com que muitas e muitas alunas, amigas e conhecidas, ou mesmo desconhecidas se inpirassem e partissem para a aceitação de seus cabelos também. Isso para mim é um motivo de orgulho, pois foi o meu cabelo que possibilitou que eu me reconhecesse negra, resgatasse minha ancestralidade e tivesse ainda mais forçar para reivindicar direitos e lutar contra o racismo.

O cabelo foi o primeiro passo para me reconhecer negra, um passo fundamental porque contou com o fato de eu aceitar quem eu era, como eu era. Já não era mais mulata, tinha me tornado negra. Só que ainda não tinha forças e instrumentos para me sentir forte e enfrentar todo o racismo que, realmente se tornou ainda mais latente depois que cortei o meu cabelo; Tive que ir procurar conhecer mais sobre a questão da negritude e do racismo no Brasil, fiz vários cursos, li muito coisa, vi e ouvi muitas palestras. Anoitei tudinho e, certamente, sei que esses conteúdos dariam um livro bem legal, quem sabe com o título enegrecendo ou denegrindo, para ressignificar o termo pejorativo e racista, pois afinal, “denegrir”, tornar negro é tornar potente, forte e não corresponde a “desqualificar” e “desmerecer”, modo como usam a expressão atualmente. Quem sabe no futuro… Sobre a questão do racismo, o fato de cortar o cabelo e erguer a cabeça, não só fez com que eu me reconhecesse como negra, mas com que as pessoas também. Aí era preciso me posicionar ainda mais para não sofrer, sentir-me mais forte, mais bonita, buscar a históra da ancestralidade negra de inteligência, de ineditismo dos egípios, de terem antecedidos os gregos, de serem especialistas em tantas artes e ciências. Precisei buscar a história de negros que mudaram e mudam o Brasil como Aqualtune, Zumbi dos Palmares, Dadandara, Aleijadinho, Tereza de Benguela, Marina Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Luíza Mahín,  Luiz Gama, André Rebouças, Franscisco José do Nascimento, Lima Barreto, Mário de Andrade, Machado de Assis, Estêvão Silva, José do Patrocínio, Chaguinhas, João da Cruz e Sousa, Solano Trindade, Raquel Trindade, Abdias do Nascimento, Sidney Amaral, Grande Otelo, Ruth de Souza, Pixinguinha, Jair Rodrigues, Wison Simonal, Tim Maia, Laudelina de Campos Melo, Lélia Gozanles, Leci Brandão, Oswaldo Faustino, Oswaldo de Camargo, Claudinei Roberto da Silva, Rosana Paulino, Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro e tantos outros.

Embora, após muita luta, tenhamos a Lei Federal 10.639/03, promulgada pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, a qual estabelece que é obrigatório o ensino de “história e cultura afro-brasileira” dentro das disciplinas curriculares dos ensinos fundamental e médio, bem como estabelece o dia da consciência negra no calendário escolar, é muito difícil vermos iniciativas que abordem a história e a cultura negra dentro das escolas. Infelizmente, não há preparação e empenho das instituições de ensino para mostrarem o quanto a história e a cultura dos negros foram e são importantes para a construção desse país. Aí, os estudantes negros não têm referência, mesmo existindo muitas, como as citadas anteriormente, de como o povo negro fez e faz a diferença em nossa história. São essas personagens negras, em sua maioria invisibilizadas pelas mídas, esquecidas pelos livros didáticos e pelas insituições escolares, que construíram ou constróem um legado significativo para o Brasil, país erguido e em funcionamento pelas mãos negras, mas que, por conta de seus opressores, vira as costas para esse povo, negando-lhe direitos mínimos como moradia, alimentação, saúde, educação… vida. Os opressores impedem o direito fundamental à igualdade que o povo negro deveria ter, conforme já expresso em legislações como o Estatuto de Igualdade Racial.

O Estatuto da Igualdade Racial, a Lei nº 12.288/10, de autoria do senador Paulo Paim, é uma lei especial brasileira, promulgada em 2010, também pelo presidente Lula, que apresenta um conjunto de regras e princípios jurídicos que objetivam a coibição da discriminação racial e o estabelecimento de políticas para diminuírem as desigualdades sociais existentes entre os diferentes grupos raciais.

Em seu artigo 1º (BRASIL, 2010), o Estatuto da Igualdade Racial apresenta que o objetivo da lei é o de “combater a discriminação racial e as desigualdades raciais que atingem os afro-brasileiros, incluindo a dimensão racial nas políticas públicas desenvolvidas pelo Estado”. Essa discriminação racial é apontada pela lei como “toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo, ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais” (art. 1º, § 1º). As desigualdades raciais apontadas pela lei são “situações injustificadas de diferenciação de acesso e gozo de bens, serviços e oportunidades, na esfera pública e privada”.

As discriminações e desigualdades raciais que os negro enfrentam advêm de questões históricas e sociais em que, sempre que os negros reivindicam seus direitos, eles lhes são parcial ou totalmente negados, isso quando não se abafam o assunto com a desculpa de vitimimo e mimimi. O caso das cotas raciais, por exemplo, ainda é muito criticado, mesmo sendo uma reparação histórica a que os negros fazem jus, haja vista que a escravidão foi abolida e os negros nã conseguiram a inserção social a que tinham direito. No Brasil, mesmo sendo os oprimidos e os violados, mesmo perdendo condições dignas de vida, como moradia, alimentação, educação, trabalho, por todo um contexto social escravocrata e racista, os negros, até hoje, são apontados como culpados pelas condições sociais em que se encontram. Nunca tiveram apoio pleno, sempre foram explorados, preteridos, violentados e culpabilizados, e o pior, por conta da supremacia branca que insiste em rebaixar e culpar os negros, todas as misérias, privações e violações de direitos sofridas pelo povo negro são jogadas em sua própria conta, como se essa culpa não fosse dos opressores brancos que vivem as custas dos ganhos que tiveram e que têm com a exploração dos negros em toda a história do nosso país.

É triste reconhecer-se negro, porque isso nos leva a uma dor por reconhecer tantos sofrimentos, humilhações e privações por que nosso povo passou e por que continua passando, com a violação e extermínio dos corpos negros. O que dizer de um país que questiona cota, que diz que todos são iguais, que levanta a bandeira de consciência humana, questionando a consciência negra, que não respeita suas legislações, fruto de anos e anos de lutas que regem por cotas raciais? O que dizer de um país que, no dia da consciência negra, em 2020, vê um homem negro assassinado por asfixia em supermercado, por conta de uma discussão anterior e, em vez de mostrar sua indignação quanto a esse ato desumano e racista, utiliza o passado da vítima como justificativa para esse extermínio brutal. A maioria dos corpos exterminados são negros; a maioria dos alvos das polícias são negros; as balas perdidas atingem os corpos negros; as doenças ceifam as vidas de negros; as maiores vítimas de violências (domésticas, obstétricas, sexuais etc.) são mulheres negras; as crianças que mais sofrem bullying são as negras; os homens mais rotulados de violentos são os negros; as mulheres negras de pele retinta são associadas a serviços braçais; as mulheres negras de pele menos retinta são associadas à questão da erotização; pessoas negras que se impõem são consideradas insolentes, insubordinadas, raivosas, barrarqueiras, prepotentes… São tantos estigmas que, realmente, ser negro é para os fortes. Assumir-se negro não é fácil, é uma questão de se reconhecer, de se assumir e uma questão de se expor. Por outro lado, o fato de você se reconhecer como negro de maneira declarada faz de você mais forte, principalmente quando você vai atrás de sua história, da luta de seu povo, de seus direitos. Reconhecer-se negro faz toda a diferença: faz você se solidarizar com os seus; mostra a você quantas injustiças ainda acontecem, a despeito de tantas lutas travadas pelo povo negro em prol de seus direitos e sua dignidade; faz você mais consciente e mais forte; forte, justamente, por reconhecer a luta e o poder de seus ancestrais. Assim, reconhecer-se negro é, antes de tudo, um ato de coragem e resistência.

Hoje, cinco anos após ter me reconhecido como mulher negra, após ter estudado, pesquisado, questionado, refletido e criticado sobre a questão da negritude no Brasil, sinto-me mais forte e chamada a reivindicar e lutar pelos direitos relacionados à raça em nosso país. Não que sejam apenas os negros que sofram racismo aqui, mas certamente, são os negros aqueles que mais têm seus direitos violados. E isso tudo começa no fato de termos a nossa história invisibilizada, distorcida; pelo fato de termos as nossas reivindicações, que são válidas, desmerecidas. A situação de privação de direitos dos negros agrava-se, justamente, pelo fato de desde a infância associarmos à negritude ao mal, ao feio, ao sujo, ao preguiçoso, ao acomodado, ao violento, ao malandro, ao bandido… Expressões como “denegrir”, “lista negra”, “negro de alma branca”, “ovelha negra”, “tinha que ser preto” etc. mostram o quanto a negritude está associada ao que há de pior. Embora haja textos legais que nos protejam de discrimações e desigualdades, na prática, o racismo continua permeando todos os espaços sociais: das casas, às mídias, às escolas, às ruas.

Não é fácil reconhecer-se negro, mas é necessário para que possamos mudar essa sociedade brasileira, extremamente, desigual e discriminatória por conta da questão da raça. O negro não pode ser taxado apenas de exótico, com suas religiões e costumes, ou tratado de modo pejorativo como aqueles que “não deram certo”. É necessário reconhecer que os avanços na questão racial ainda estão engatinhando e continuar com essa luta. Precisamos de representatividade! Precisamos ocupar os espaços! Precisamos sair da posição de subalternidade e opressão! Precisamos ocupar espaços de destaque, de liderança, de gestão! Precisamos nos reconhecer negro e fazer com que nosso povo – de crianças, jovens, adultos ou idosos – também se reconheça assim!  Precisamos quebrar as correntes que rotulam os negros de modo pejorativo e negativo! Precisamos reivindicar e lutar por nossos direitos! Precisamos reconhecer as discriminações, desigualdades e violências contra os corpos negros e denunciá-las! Precisamos fazer uma revolução racial no Brasil… E só faremos essa revolução quando nos reconhecermos como negros, quando dialogarmos com os nosso povo e quando nos unirmos em torno da questão da liberdade, da igualdade e da justiça. Precisamos no tornar negros, “denegrir” no sentido positivo e potente que tem essa palavra, ressignificando todas as concepções negativas que atribuíram historicamente aos negros em nosso país. Nesse sentido, é essencial que busquemos uma “Consciência Negra” e que assim consigamos “denegrir” nossa sociedade, apontando as contribuições e cobrando os direitos da população negra, não apenas no mês de novembro, mas em todos os meses e dias do ano. É urgente e potente o “denegrir”! É o melhor caminho para a efetivação de nossos direitos!

*Doutoranda em Educação: Psicologia da Educação (PUC/SP). Mestra em Educação: Formação de Formadores (PUC/SP). Graduada em Letras – Português e Inglês (IESC/SP) e pós-graduada em Planejamento, Implementação, Gestão e Avaliação em Educação à Distância (UFF/RJ). Diretora de Escola concursada, professora, formadora e escritora. Pesquisadora e Integrante do Núcleo Internacional de Pesquisa em Representações Sociais da PUC-SP. Defensora e pesquisadora de direitos humanos no Brasil. Com experiência de mais vinte e um anos na área de educação, atua como consultora educacional e formadora. Trabalha com elaboração e adaptação de materiais didáticos e conteúdos voltados à educação, à educação em direitos humanos, à comunicação e a atualidades. Criadora do Projeto A Corrente do Amor, com mais de mil participantes e centenas de ações realizadas em prol dos direitos humanos.

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