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A periferia exige vivenciar plenamente a democracia

Os casos mais recentes de violência policial – a incursão na Vila Cruzeiro no Rio de Janeiro e o crime cometido por policiais rodoviários federais contra um trabalhador em Sergipe – sinalizam para uma perspectiva de ação política da extrema-direita: a criação de um clima de conflagração política com objetivos de intervir no processo eleitoral. A medida que as pesquisas de intenção de voto vão demonstrando, a cada rodada, o favoritismo do candidato Lula de vencer as eleições, o apelo a esta tática fica cada vez mais evidente.

O objetivo desta ação da extrema direita é demonstrar às classes dominantes que o arranjo institucional de cunho nazifascista é o mais adequado para a constituição de um Estado de Segurança do Grande Capital, conceito proposto pelo pensador Jaime Osorio: um desenho institucional que garanta ao capital transnacional operar com tranquilidade nos países das periferias do capitalismo, como é o caso do Brasil e toda a América Latina, além do continente africano.

Dois documentos produzidos por setores da extrema direita militar no Brasil sinalizam para isto. O primeiro, no ano de 1988, intitulado “Estrutura do Poder Nacional para o século XXI”, produzido pela Escola Superior de Guerra e que, entre outras coisas, defendia a manutenção das estruturas repressivas no formato da ditadura militar pós-1964 com o objetivo de combater as populações dos cinturões de miséria e os que chamavam de “menores abandonados”.  Este documento foi denunciado pelo movimento negro, mais especificamente pela Unegro (União de Negros pela Igualdade) no I Encontro Nacional de Entidades Negras realizado em 1991, em São Paulo.

O segundo é o documento “Projeto de Nação – o Brasil em 2035”, lançado em 19 de maio em Brasília. Este documento foi produzido por militares do Instituto Villas Boas, Instituto Sagres e Instituto Federalista, todos think tanks direitistas. O evento de lançamento contou com a presença do atual vice-presidente da República, Hamilton Mourão.

Neste segundo documento, apresenta-se uma proposta de reforma do Estado brasileiro com um desenho institucional que combina uma parioquialização das políticas públicas por meio da sua municipalização e privatização, um sistema de representação política que privilegia o coronelismo com a proposta do voto distrital e a unificação federal dos controles dos aparatos repressivos por meio da proposta da criação de uma “gendarmeria nacional”. 

Em outras palavras, o único elo de unificação nacional – que, na prática, seria a principal característica do aparelho federal de Estado – é o aparato repressivo. A sociedade política seria um misto de negociações entre representações paroquiais no âmbito nacional e o controle federal dos aparatos repressivos.

É fato que este desenho institucional tenta seduzir o grande capital transnacional na garantia de uma “segurança”  para os seus negócios (tanto no sentido fiscal com o fim da gratuidade do SUS e do ensino superior público, como na garantia da contenção por meio da repressão do contingente de miserabilidade, produto da plena aplicação do modelo neoliberal) e, por conseguinte, a total apartação da população negra e periférica da esfera pública, pois suas demandas sociais ficariam confinadas a esquemas de negociações paroquiais.

A interdição do debate sobre a constituição de políticas nacionais de saúde, educação, assistência social, entre outros não é pouca coisa. Foi por meio da incidência política nestes debates que a população negra logrou avanços. Exemplos: as ações afirmativas na educação com a instituição de cotas nas universidades, as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Etnicorraciais e as leis 10639/03 e 11645/08, os Programas de Saúde para a população negra, o PAISM (Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher), todos eles incluídos dentro do SUS (Sistema Único da Saúde), o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), entre outros. Com a fragmentação das políticas públicas, não só as conquistas obtidas se perdem mas com o desenho institucional proposto de fragmentação, tal incidência política se torna ainda mais difícil.

Um laboratório desta concepção institucional pode ser observado na proposta recentemente aprovada na Câmara dos Deputados do homeschooling. Ainda antes da aprovação e promulgação definitiva desta lei (ainda está em tramitação no Senado), já há diversas empresas e organizações vendendo “kits” de apoio à prática da educação escolar em casa. Não é só um novo mercado que está se formando, mas também a implantação de uma concepção de educação centrada em princípios nada públicos e democráticos.

Vamos imaginar uma situação em que um município, governado por uma prefeitura fundamentalista e que será totalmente responsável pela instituição da política pública de saúde na sua localidade – como será esta política, os seus fundamentos, as prioridades, etc. Como os movimentos sociais irão atuar tendo que enfrentar todas estas situações particulares sem a possibilidade de uma discussão a nivel nacional? Ao mesmo tempo, qual seria a situação de uma administração local progressista sob um sistema de segurança repressivo com controle federal e militarizado?

O documento foi amplamente criticado e até ridicularizado na grande mídia e por diversos analistas. Em parte porque ele representa o pensamento de um segmento social que tem poucas chances de vitória nas eleições. Entretanto, é importante alertar que o debate político não se encerra com o pleito deste ano. Independente do resultado das eleições, é fato que a extrema-direita ocupou um lugar privilegiado no campo das forças políticas que defendem o neoliberalismo, deslocando uma direita liberal tradicional cuja crise se expressa pela imensa dificuldade de constituição da chamada “terceira via” e a crise profunda de um dos seus partidos mais tradicionais, o PSDB. Vencendo ou perdendo as eleições presidenciais, não há como desprezar tal força política que terá presença marcante no Congresso Nacional e irá em todos os momentos tentar impor sua agenda. O projeto de redesenho institucional do Estado brasileiro expressa no documento Brasil 2035 não pode ser desprezado. Aprovação do homeschooling, cobrança de mensalidades em universidades públicas, ataques à gratuidade e universalidade do SUS e a defesa do  recrudescimento da violência policial continuarão aparecendo frequentemente no debate político. 

Diante disto, a Rede Quilombação considera importante a constituição de uma agenda política antirracista que contemple a plena democratização da sociedade brasileira no seu sentido substantivo (garantia dos direitos sociais, civis, humanos a todos e todas) e não apenas procedimental (que possibilita que a periferia não vivencie plenamente a democracia). Isto passa por uma agenda de defesa da vida digna, construção de mecanismos participativos na definição do orçamento garantindo a prioridade das políticas públicas de saúde, educação, moradia, assistência social, ruptura com as políticas de ajuste fiscal com o objetivo de atender o capital rentista – revogação da Emenda Constitucional 95 do Teto de Gastos, reformulação profunda dos sistemas de segurança pública com a desmilitarização das polícias, fim da política de guerra às drogas que leva ao encarceramento em massa da população negra.

 

Rede Antirracista Quilombação

Junho de 2022

NOTA

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