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“— Venha cá!! Negrinha aproximou-se. — Abra a boca!!

Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, prática que era D. Inácia nesse castigo, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surda- mente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:

— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez!! Ouviu, peste??” (LOBATO, 1923)

São inquestionáveis as contribuições de Monteiro Lobato para a literatura brasileira. E apesar do desejo ardente de apagar essa mácula na história da literatura, preferi enquanto “Neginha” que sou falar.

Primeiramente vale contextualizar o conceito de “Neguinha” que utilizarei entre aspas nesse texto propositalmente. Isso porque, a palavra carrega muito mais que uma definição carinhosa, utilizada não raras as vezes por nossos pares. Pretendo trazer a 2021 a “Negrinha” de Monteiro Lobato: a da pele escura, de fenótipo específico, cabelos crespos, pele escura. E essa personagem continua viva, só que os cantos da sala são os subempregos, os salários menores que dos homens brancos para desempenhar a mesma função, o silenciamento em contextos de estudo e trabalho, nos lares machistas, nas redes sociais e programas oportunistas…

Ser “Negrinha” parece estar na moda. Cabelos, indústria cosmética, redes sociais, seriados internacionais e o marketing trazem discussões e uma pseudoaceitação e inserção do povo de raiz africana em todos os contextos da sociedade.

Porém, só a mulher com a pele escura, o cabelo crespo e as evidências biológicas da afrodescendência (“Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.” – LOBATO, 1920) sabem o quanto é vivo e latente na sociedade as concepções de Monteiro Lobato e tantos outros escritores e lideranças políticas.

Quando a “Negrinha” ocupa um cargo de diretor de escola precisa pensar mil vezes antes de abrir a boca. Posicionar-se pode acarretar sanções graves: severas discussões com o marido, que reforça “fique quieta, temos filhos a criar”; repressões da irmã “calma, na hora certa falaremos”. E quando a “hora certa” chega, resta apenas um processo administrativo infundado a ser respondido.

Mas a “Negrinha” é persistente, afinal, descende de sobreviventes de navios negreiros e ovos ferventes. E quer ocupar a academia, ser mestre, doutora, quer falar! Acredita que as cicatrizes do ovo quente já se foram. Em uma explosão de desabafo, fala, talvez grita, se indigna. Acha que algo mudou. Mas volta a ser silenciada. Como em uma reunião via Google meet. Seus pares a alertam: “Melhor ficar na sua, não abra suas ‘canjicas’ para qualquer um. Fique na ‘atividade’, faça o seu e fique na sua!”

Ah, se a “Negrinha” pudesse ser italiana! Falar o que pensa, gritar o que vem a mente e ao coração, a quem quer que seja: pelas redes sociais, por mensagem eletrônica, por telefone. E no dia seguinte simplesmente dizer: “Olha, minha raiz é ‘italiana’, por isso sou assim!” E tudo bem!

Mas não! “Fecha a boca peste” Lobato já deu a dica em 1923, mas sou teimosa, e não aprendo fácil!

NOTA

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