A história que vou contar aqui é parte da minha pesquisa para o trabalho de conclusão de curso da Especialização em Políticas Públicas de Enfrentamento à Violência contra a Mulher pela PUC-Rio mas tenho certeza que você já leu, ouviu ou soube algo sobre esse caso que ocorreu em 2010, tendo como algoz o ex goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes e como vítima a modelo e mãe do filho dele, Eliza Samudio.
Costumo dizer que pesquisar a vida e a morte de Eliza Samudio por 1 ano, fez dela uma amiga minha bem próxima, só que póstuma. Me arrisco a dizer que sinto saudades de Eliza como se a tivesse conhecido e acho que conheci. Na verdade sinto que todas nós carregamos Elizas em nosso comportamento e principalmente no modo como somos julgadas e culpabilizadas pelo mundo patriarcal em que vivemos.
Essa é a História de um feminicídio cruel e midiático em que a vítima foi a minha “amiga” Eliza Samudio e é por ela e por tantas que já não tem voz que eu me proponho a falar, sempre! E é o que farei aqui.
Tudo que estiver em itálico azul é parte do texto na íntegra da minha pesquisa e portanto protegido por direitos, caso reproduzam não esqueçam dos créditos da autora, no caso eu e da Universidade, a PUC-Rio.
Mas antes de contar a história de Eliza, precisamos entender algumas coisas:
O feminicídio geralmente é o desfecho de um histórico de violências e pode ser considerada uma morte evitável, que não aconteceria se não houvesse a conivência institucional e social à subalternidade feminina e às violências contra as mulheres que se perpetuam em meio à sociedade até o extremo da letalidade.
“O Instituto Patrícia Galvão (2017), nos mostra que assim como ocorreu com a Lei 11.340 – Lei Maria da Penha – a crescente pressão da sociedade civil, passa a denunciar a omissão e responsabilidade do Estado na perpetuação do feminicídio, juntamente com as organizações internacionais, reiterando recomendações para que os países adotassem ações contra os homicídios de mulheres relacionados a razões de gênero. Assim sendo, a partir dos anos 2000 diversos países latino-americanos incluíram o feminicídio em suas legislações.
No Brasil, o crime de feminicídio foi definido desde que a Lei nº 13.104 entrou em vigor, em 9 de março de 2015, alterando o artigo 121 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940) incluindo este tipo penal como circunstância qualificadora do crime de homicídio. A Lei do feminicídio foi criada a partir de uma recomendação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI-VCM), que investigou este tipo de violência nos Estados brasileiros entre março de 2012 e julho de 2013 (Senado Federal, 2013). A lei 13.104 de 9 de março de 2015:
Altera o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos (Brasil, 2015, s/p.).
A referida Lei define o crime de feminicídio:
Feminicídio
VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
- 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher (Brasil, 2015, s/p.)”
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança em meio ao isolamento social no Brasil, 1.350 mulheres foram oficialmente assassinadas por sua condição de gênero em 2020. Um feminicídio a cada seis horas e meia.
Vamos então a história de Eliza
“Eliza Silva Samudio, conforme informações de Paixão (2013), para o do portal Hoje em Dia, nasceu em 22 de fevereiro de 1985, na cidade de Foz do Iguaçu, no Paraná, filha de Sônia Fátima Silva Moura e Luiz Carlos Samudio. Sua mãe relata que ainda grávida de Eliza, separou-se porque seu marido pediu para que ela interrompesse a gestação. Porém no fim da gravidez, reconciliou-se com o marido, já que ele dizia ter se arrependido. No entanto, após o nascimento de Eliza, os episódios de violência foram se agravando, e prevendo o risco de sua morte, Sônia fugiu de casa, deixando Eliza com o pai, pois não tinha condições de criar a filha, naquele instante.
Meses depois, já com certa estabilidade, Sônia, conforme relatos a Dip, (2017), para o Portal Huffpost Brasil, Agência Pública, procura o ex-marido para saber notícias da menina e com a pretensão de obter a guarda de sua filha – Eliza Samudio. Nesse momento, Luiz Carlos, insistentemente ameaça Sônia, afirmando que se ela tentasse levar sua filha, a levaria “em pedaços”, pois ele preferia a menina morta a perder sua guarda, o que faz com que a mesma se afaste novamente da filha, visando à segurança de ambas.”
Em meio a uma infância e adolescência entre brincadeiras e afazeres domésticos, a falta da mãe ecoava em Eliza e aos 18 anos de idade, Eliza decide ir sozinha tentar a carreira de modelo em São Paulo. A jovem passa então a não ter paradeiro, mudava sempre dos endereços em que morava com amigas e amigos que conhecia nos trabalhos que conseguia, fazendo presenças e recepções em eventos, rotina cansativa e que rendia muito pouco financeiramente, mas que apresentava à Eliza, um mundo de luxo, repleto de pessoas famosas e poderosas. A paixão pelo futebol levou Eliza a buscar oportunidades de trabalhar em eventos relativos a este esporte, passando a conhecer vários jogadores e a frequentar os treinos e festas particulares dos atletas.
“Nesta época, ainda de acordo com o portal Hoje em Dia, Paixão (2013), Eliza enfrentava dificuldades financeiras sérias e aceitou um convite para participar de filmes pornográficos. Segundo relato da jovem à madrasta foram poucas vezes, mais precisamente quatro e apenas pelo dinheiro, que não era ruim, e ajudava a pagar as contas por meses. Nos filmes de conteúdo pornográfico, como consta em informações do portal Hoje em Dia, Paixão (2013), e segundo relatos de uma amiga, Eliza assumiu os pseudônimos de “Fernanda Faria” ou “Victória Sanders”, como estratégia para que sua família não descobrisse os trabalhos. Para a mãe de Eliza, como consta no portal Hoje em Dia, Paixão (2013), a forma com que a jovem lidava com seu corpo e sexualidade fora construída pelo modo com que a menina via o pai tratar o assunto. Segundo Sônia, Eliza ainda na pré-adolescência, teria sido inclusive oferecida pelo pai a amigos com quem o mesmo tinha dívidas, para que realizasse favores sexuais como pagamento”
Com alguns trabalhos no Rio de Janeiro, Eliza conhece, em maio de 2009, o goleiro Bruno Fernandes, quando este defendia o gol do Clube de Regatas do Flamengo. Eliza foi apresentada ao atleta durante uma festa na casa de outro jogador de futebol, e iniciava-se no mesmo dia o envolvimento do casal. 3 meses depois, Eliza descobre que está grávida e conta para Bruno que muda o comportamento com a moça a tratando de forma hostil. Como o goleiro se apresentava cada vez mais violento no intuito de que a moça interrompa a gestação, Eliza busca a imprensa e relata o caso com o objetivo de se proteger.
Em outubro do mesmo ano, a moça volta aos noticiários, contando que dias antes, havia sido agredida de diversas formas por Bruno Fernandes e dois empregados do mesmo. A jovem, como consta no portal Compromisso e Atitude, registra a primeira ocorrência na Delegacia de Atendimento à Mulher de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, acusando o goleiro Bruno e seus dois amigos, Luiz Henrique Ferreira Romão, o Macarrão, e o ex-PM Marco Antônio Figueiredo, o Russo, que portava uma arma de fogo, de a terem ameaçado de assassinato caso não abortasse a criança. Eliza disse ainda que neste episódio Bruno Fernandes a teria agredido fisicamente, a mantido em cárcere privado e que apontando-lhe um revólver, a teriam obrigado a ingerir substâncias que os mesmos diziam ser abortivas.
O Portal G1, globo.com de 15 de outubro de 2009, diz que o laudo do Instituto Médico Legal correspondente a essa denúncia, mostrou que o corpo de Eliza apresentava “vestígios de agressão”. Já no exame toxicológico – que só ficou pronto após o seu desaparecimento, portanto meses depois dessa agressão, foi constatado a presença de medicamentos abortivos no organismo de Eliza. A jovem solicitou durante este registro de ocorrência as medidas protetivas de urgência, previstas na Lei 11.340/2006, que lhe foram negadas pela juíza titular do 3º Juizado de Violência Doméstica do Rio de Janeiro, Ana Paula Delduque Migueis Laviola de Freitas, que justificou o não deferimento do pedido realizado em 19 de outubro de 2009, por entender que “a Lei Maria da Penha não se aplicava ao caso, visto que eles não mantinham relação afetiva estável”
Eliza dá a luz em fevereiro de 2010 e segundo amigas da jovem Bruno mostra comportamento mais amistoso e até afetuoso, falando em conhecer e reconhecer oficialmente o filho. Desta forma a jovem demonstra esperanças de um bom relacionamento e volta a ter contato com o goleiro.
Daqui pra frente o relato fica pesado e cruel, inicia-se de fato o fim de Eliza Samúdio.
Num possível acerto entre o casal, Eliza vai ao encontro do jogador com o filho nos braços. Ficando hospedada no hotel Transamérica, na Barra da Tijuca em hospedagem paga por Macarrão, amigo e braço direito de Bruno. Eliza Samúdio de acordo com Brandino, (atualizado em 2017), para o portal Compromisso e Atitude, deixou o local no dia 4 de junho de 2010, sendo seu último contato, uma ligação feita para a amiga que relata os fatos ao Extra, em 9 de junho, onde disse estar bem e que tudo se resolveria.
Ao deixar o hotel a modelo foi levada por Macarrão e Jorge Rosa, primo de Bruno, em um carro de propriedade do jogador, para Belo Horizonte. Conforme a versão de Jorge a vários veículos de imprensa e inclusive em depoimento ao judiciário, Macarrão teria comprado sanduíches e retirado R$3 mil de uma agência bancária, para que não houvesse necessidade de paradas ao longo da viagem.
Jorge ficou escondido e Macarrão assumiu a direção do veículo que buscou Eliza, ainda de acordo com o portal Compromisso e Atitude, com o carro já em movimento, Jorge que na época do crime era menor pulou para o banco de trás do veículo, rendendo a modelo, que se assustou e tentou uma reação, sendo dominada pelo adolescente que desferiu contra a mesma três coronhadas em sua cabeça, deixando-a ensanguentada. Eliza, porém, permaneceu lúcida e não esboçou outras reações. O jovem então municiou a pistola e a conduziu até chegarem, ainda naquela madrugada, ao sítio de Bruno, em Esmeraldas, Minas Gerais.
No sítio, Eliza teria ficado trancada em um quarto com o filho onde era vigiada por outro primo de Bruno, Sérgio Rosa Sales. Foi Sérgio quem entregou um celular para a modelo e a obrigou, sob ameaça de morte, a telefonar no dia 09 para a amiga em São Paulo dizendo estar tudo bem e que Bruno lhe daria dinheiro e um apartamento em Belo Horizonte.
Bruno ao chegar no sítio, teria chamado Macarrão e Sérgio e ordenado que “o problema fosse resolvido”. Orientou-os a não libertar Eliza, relembrando o episódio e a queixa crime de outubro de 2009 no Rio de Janeiro. De acordo com o relato de Jorge, Bruno permaneceu duas horas no local e depois chamou um táxi para levá-lo ao aeroporto, de onde voltaria ao Rio de Janeiro.
No dia seguinte, 10 de junho de 2010, por volta das 23h, de acordo com Jorge Rosa, Sérgio disse a Eliza que ela seria levada para conhecer um apartamento em Belo Horizonte (capital de Minas Gerais), mas a moça foi, na verdade, conduzida por Macarrão e os dois primos do goleiro a um sítio, em Vespasiano, região metropolitana de Minas Gerais, onde foram recebidos por Bola, o ex-policial Marcos Aparecido dos Santos, também conhecido como Neném e Paulista. Estes eram os últimos momentos de vida da jovem Eliza.
Bola, segundo essa versão teria pego a moça, amarrado seus braços com uma corda e logo em seguida aplicado uma gravata sufocando-a, até a morte. Depois disso, o assassino pediu que Jorge, Macarrão e Sérgio saíssem do local. Sérgio levou o filho de Eliza que estava com a mãe até o instante de sua morte. Aguardaram por um período que não souberam precisar e, então, viram Bola carregando um saco em direção a um canil onde viviam quatro cachorros da raça rotweillers.
O portal Compromisso e Atitude, diz ainda que Jorge, Macarrão e Sérgio relataram em seus depoimentos ao judiciário, o que fora reproduzido também aos meios de comunicação, terem assistido, Bola retirar a mão de Eliza e arremessá-la aos cães. Depois da macabra cena, voltaram para o sítio e no dia seguinte por iniciativa própria, Jorge limpou o veículo por dentro e por fora. O rapaz também afirmou ter visto Macarrão ligar para Bola e perguntar se o mesmo havia ocultado o corpo, sendo este informado pelo assassino que o próprio havia dado todo o corpo aos cães e concretado os ossos de Eliza no mesmo terreno onde ela foi morta.
Sérgio porém tem uma versão diferente e disse em depoimento no julgamento do caso no ano de 2013 que Bruno estava presente durante o estrangulamento de Eliza, porém não teria ficado para assistir o que se deu a seguir e retornou ao seu sítio. Segundo Sérgio, o goleiro tinha a intenção de também matar a criança mas desistiu de tal ideia já no local do crime.
No dia 24 de junho, a polícia recebeu a primeira denúncia anônima sobre o caso, que dizia que Eliza teria sido morta e suas roupas queimadas no sítio do goleiro no Condomínio Turmalina, em Esmeraldas, na região metropolitana de Belo Horizonte. Buscas foram realizadas no local no dia seguinte, sem sucesso. No dia 26 de junho, o filho de Eliza foi encontrado na casa de Dayanne de Souza, ex-mulher de Bruno, que afirmou estar com a criança a pedido do goleiro. Dayanne assim como todos os citados, e Fernanda Gomes, também namorada do jogador que ajudou a cuidar da criança durante o plano criminoso, foram indiciados no processo de assassinato de Eliza Samudio.
O corpo de Eliza ou seus restos mortais nunca foram encontrados, as violências vividas por ela, resultaram em sua morte e em sua invisibilidade máxima, deixou de viver, deixou de existir.
Cumprindo a determinação da juíza Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, o Cartório do Registro Civil de Vespasiano, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, emitiu, no dia 24 de janeiro de 2013, a certidão de óbito de Eliza Samudio. Conforme o documento, Eliza morreu por esganadura em 10 de junho de 2010, na casa do réu Marcos Aparecido dos Santos, o Bola.
“Eliza, além de assassinada foi cortada em pedaços e servida aos cachorros. Não somente a mataram, mas fizeram com enorme crueldade, que ela deixasse de existir. Eliza não foi sepultada, seu corpo feminino foi derradeiramente dominado de forma, que até o presente ano, 2018, não foi encontrado. É constantemente culpabilizada pela opinião pública, sendo revitimizada, a cada julgamento a cerca de sua vida social e sexual.
Consideramos por fim, que sejam as bruxas da Idade Média, ou Eliza, assistimos mulheres, culpabilizadas pelos horrores vividos por elas próprias.”
O filho de Eliza, Bruninho, hoje com 11 anos, é criado por D. Sônia, sua avó e mãe de Eliza.
Bruno está no regime semiaberto desde julho de 2019. Ano passado foi convidado para fazer propaganda para um canil
Macarrão também está em liberdade. Bola em 2020 foi para a prisão domiciliar por conta do corona vírus, a princípio por 90 dias porém não consegui informações atuais sobre o regime em que se encontra.
Texto: Daniela Lopes
Imagem: O Globo
Fonte: Compromisso e Atitude e Artigo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC-Rio, por Daniela da Silva Lopes: Ainda somos bruxas, se somos ‘Elizas’: A legitimação social da “fogueira” para as mulheres que fogem ao papel social a elas atribuído patriarcalmente