Por Fabiana da Silva de Lima
Onde estão os pretos velhos? É com essa provocação que Arte Mani Oca, coletivo de audiovisual e artes plásticas contemporânea, do ABC Paulista, lança o editorial de moda sustentável, com a temática Pretos Velhos, inspirado no universo simbólico dessa figura presente na cultura afro-brasileira, traz ao ensaio elementos empregados no ritual da umbanda: ervas para fluir, cachimbo ou cigarro de palha para defumar e branco em seu traje. Com data de lançamento para o dia 16 de dezembro, na página @artemanioca, onde algumas postagens já podem ser vistas, a intenção é, antes de mais nada, uma forma de reverenciar os que são a personificação da sabedoria: almas bondosas, que ajudam aos que neles buscam refúgio e orientação para seus flagelos.
As palavras de alento são frutos de suas experiências, mas seus saberes vêm de muito antes da viagem – que não foi a passeio – que os arrancaram de suas pátrias. Respondendo à pergunta acima, os pretos e as pretas velhas, ainda que pertençam a vários países diferentes, com sistemas de sociedade complexos: arquitetura, ciência, linguagens, enquanto pessoas que viveram e vivem aqui, estão associados a um estereótipo negativo, em razão de uma imagética negra frequentemente reduzida à época da colonização no Brasil, que escravizou milhões de negros e indígenas.
Para desconstruir essa concepção é necessário estender a linha do tempo e reconstituí-la, a começar pelo período antes do tráfico negreiro, e quem coloca uma nova marcação nessa linha é Makeda Silva, 32, gastrônoma, professora, ativista do movimento negro, mulher negra e periférica, uma das idealizadoras do projeto e como fotógrafa sabe bem que as artes visuais são carregadas de significados, que influenciam o pensamento coletivo das mais múltiplas formas. Empenhada em recontar essa história, ela bebe da fonte de seus mais velhos, mas com olhar para o futuro.
Mais que uma performance artística é a possibilidade de recriar espaços para novas narrativas, projetando-se no sentido anti-horário, onde etnias pretas compuseram reinados, foram pais e filhos em suas terras natais. Essa volta ao passado é possível em sankofa, ideograma do sistema de escrita adinkra, dos povos akans, de alguns países da África Ocidental, como Gana, Togo e Costa do Marfim, nele o tempo é anacrônico e serve essencialmente para compreendê-lo, permitindo traçar um novo ponto de partida, que mostre à sociedade outras perspectivas, que não só a do preto em cativeiro, mas uma que humanize sua imagem e corrobore na elaboração de outras subjetividades e nelas a pessoa preta possa estar e se imaginar onde ela quiser.
A artista fala que o processo de criação se deu após um momento bem significativo da sua vida: “A ideia foi depois de uma experiência pessoal muito intensa, como mulher preta, livre, e essa liberdade fez eu entender a dimensão que ela representa, além de físico, espiritual, como também da consciência de quem eu sou e da onde eu vim e isso é ter consciência da minha liberdade. Nesse contexto de liberdade eu percebo quem são as pretas e pretos velhos: são seres espirituais que carregam a sabedoria das suas vivências e maturidade de entender que ser livre é ser quem se é.”, completa.
Makeda não está só, junto dela uma equipe múltipla de profissionais do audiovisual, fotógrafos, do ramo da moda, alguns participantes estrearam seu primeiro trabalho como modelos, no geral, as marcas de roupas e brechós envolvidas são comprometidas com a pauta do antirracismo e têm como propósito a promoção de uma cadeia de produção de moda que gere menos impacto ambiental, como o Brechó da Cais, Casa Las Chicas Figurinos, Las Chicas Tienen Fuego, Brechó dê um rolê.
A ideia do coletivo é alcançar um desenvolvimento orgânico para a promoção da arte de modo sustentável e alertar as formas de consumos excessivos, que já são um problema na sociedade, além de difundir a cultura afro-brasileira, como se refere Makeda.
“As pretas e pretos velhos carregam os conhecimentos de África e abrasileiraram nas vivências sociais de suas épocas, eu quis produzir por meio da fotografia e vestuário, brechós, marcas autorais, a temática branca, com referência ancestral africana, que são uma representação de onde veio essa sabedoria enquanto afro-brasileiro”, finaliza.
É preciso incorporar
A jovem fotógrafa propôs o ensaio também pensando na circunstância que viveram os escravizados. “Como uma forma de homenageá-los, mas também trazer para o presente, quem são as pretas e os pretos velhos, são meus ancestrais, cada um com suas histórias e bagagem espiritual muito poderosa, poucos chegaram na velhice por conta da escravidão, com esse trabalho eu quis trazer quem são essa continuação dos pretos velhos, trazer a realidade da maior parte dos negros que não alcançaram a velhice, muitos morreram entre 30 e 40 anos, pelas condições da escravização. Trazer esse editorial junto com a importância da fase madura”, conclui.
Os pretos velhos são uma linha de entidade da umbanda que assumiram arquétipos de pessoas negras que viveram na condição de escravos no Brasil, ao mergulhar na história, entende-se que os que recorrem aos pretos velhos – lembrados como almas bondosas – buscam conjuntamente por justiça, pois eles são os mesmos que organizaram vários levantes contra o opressor e tiveram suas vidas interrompidas em tenra idade para que hoje, por exemplo, as modelas e modelos convidados – que são consequentemente o legado de luta desses ancestrais – pudessem falar de liberdade e vislumbrar uma vida longeva.
O fisioterapeuta, gerontólogo, especialista em envelhecimento na sociedade, doutor em saúde pública pela Universidade de São Paulo, Alexandre da Silva, em suas diversas pesquisas traz um panorama do impacto do racismo na saúde, na qualidade e a expectativa de vida de idosos negros, que se complica em territórios cujas ofertas de políticas públicas e a infraestrutura são precárias, como nas periferias, onde estão grande parte, os indicadores socioeconômicos, desde o salário, moradia apontam o quanto o idoso negro está mais vulnerável.
“O território negro é um território que sofre discriminação o tempo todo e essa discriminação se materializa, ao meu ver, na questão do acesso e do uso de serviço. A não oportunidade que você dá, é o que você faz de iniquidade, ou seja, tudo aquilo que para um outro é tranquilo para o homem negro não é, para mulher negra não é, ainda mais, mais velha, não é, é injusto, é desnecessário, é evitável”, afirma.
Dr. Silva reflete a importância de reconhecer a presença negra. “Falar de ressignificados da imagem do preto, da preta velha, é muito importante. Talvez seja de fato o começo, não tem algo para mim mais sagrado do que uma preta e um preto velho, porque eu venho deles, desde de lá de trás, é uma entidade, mas é a constituição de mais da metade da população brasileira, é o que nos constitui, que somos metade dos nossos pais, das nossas mães, outros 25% dos nossos avós e 12%, aproximadamente, dos nossos bisavós, então você tem muitos pretos velhos na sua constituição, quando a gente tenta negligenciar um preto, uma preta velha na sociedade você está querendo se apagar também.
Para ele, devido ao trabalho intenso e extenso, muitos negros são impedidos de vivenciarem suas subjetividades efetivamente: “Um dos achados mais importantes da minha tese é que idosos de São Paulo, negros são os que menos praticam lazer ao longo da vida, mas que trabalham até não poderem mais, trabalham doentes. As pessoas não têm feito a conversa da diversidade de fato, é só na foto, pra inglês ver, a gente sabe muito bem que ter uma pessoa negra nos espaços não quer dizer que você não tenha práticas racistas. Você garante isso pra dizer, pra amenizar um pouco o discurso, de quem é antirracista, mas não é.”
Apesar de um cenário longe do ideal o fisioterapeuta destaca a riqueza deixada por esses ancestrais e a ausência de uma real apropriação: “você pode ter uma riqueza de combinações e paladares, a própria dança em si, os movimentos corporais que você tem, mas eu fico preocupado que essa riqueza não aparece positivamente e não aparece toda hora, mas os saberes, eles têm que ser respeitados. Quando nós vamos de fato incorporar esses saberes? ”, conclui.
Dr. Silva faz uma reflexão e está atento a esses saberes deixados: “Se a gente vem dos reis e rainhas que mal tem sonhar alto, que mal tem criar estratégias, como diz um amigo meu capoeirista, porque a gente não aprende a gingar com esse modelo econômico e dá um golpe e sai lá na frente, não tô falando do ganho individual só, talvez um dos grandes desafios que os meus pretos e pretas velhas têm me mostrado, para além dos meus pais e todos aqueles que vem antes de mim, é que a gente também está tentando muito individualizar as coisas”, termina.
Eles estão entre nós
Eles estão entre nós, para além de entidades espirituais, no nosso dia a dia são professores, mestres, doutores, pais, mães, estão nos centros, nas favelas, são médicos, pacientes, curandeiros.
Pai Élcio de Oxalá tem 85 anos de idade, 69 anos como cantor na umbanda, fala com satisfação da época que recebeu esse chamado, foi depois de ouvir os conselhos da sua preta velha, a vovó Mericiana. “Veio uma preta velha e disse que o meu caminho não era cuidar de pessoas dentro de um templo, mas sim andar por esse mundo que todos os templos seriam meu e que eu teria que levar a minha mensagem de paz, de amor, de carinho a todos os terreiros e assim eu faço até hoje”.
Caminhos de Oxalá é a casa onde foi zelador, ainda bem jovem saiu e seguiu o seu propósito, de lá para cá, já esteve em Portugal, Rio de Janeiro, Minas Gerais, vários interiores atendendo aos convites, levando sua música. Pai Élcio de Oxalá relata que no início houve bastante resistência por parte da família, era proibido até falar e por diversas vezes foi ao templo escondido, mas não se arrepende de sua escolha. “Se eu pudesse começar tudo de novo hoje eu começaria”, comentou.
Ele diz que os pretos sofreram muito em suas vidas, talvez, por isso, haja a necessidade deles ensinarem à humanidade sobre o amor. “O negro sofreu muito e hoje, em compensação e reconhecimento ao sofrimento dele, dentro da espiritualidade, o preto velho, a nega véia são entidade muito evoluída, eles são muito iluminados, todos nós dependemos desses preto velho, eles são tão iluminados, tão iluminados que eu diria para você uma coisa, eles são milagrosos, eles resolvem muitos probrema, e que a gente duvida, mas são entidades abençoada por deus, então hoje, quem tem um nego véio na sua vida, lá de cima, oh, meu nego véio, é tudo de bom”.[sic].
Créditos fotos ensaio: coletivo Arte Mani Oca