A África deve repensar suas modalidades de organização sociopolítica herdadas, ou impostas, tanto do ocidente que a vê como se fosse um seu Congo continental privado qual rei Leopoldo II, como pelo leste outrora solidário com nossas lutas de libertação colonial. Não precisamos necessariamente de nos ocidentalizar ou de orientalizar para nos democratizarmos, nos modernizarmos ou nos desenvolvermos.
É tempo de olharmos com olhar sankofa (conceito originado entre os povos da língua Akan que se traduz em voltar ao passado e buscar nele o que é útil ao presente para perspectivar o futuro) para formas de nossa organização social, política e econômica e a partir delas desenvolvermos nossos “ismos” e “cracias” próprios, de acordo com nossas realidades.
Não somos povos desprovidos de formas de organização social nas suas múltiplas dimensões incluindo em alicerces democráticos. Se fosse assim não teríamos resistido e chegado até aqui mantendo nossas formas de organização sociopolítica e econômica tradicionais. Devemos incorporar o que de positivo nos pode e deve ser agregado, tanto por modelos do ocidente quanto pelos do oriente, sem nos desenraizarmos de nossas essências e/ou subalternizá-las.
No que tange à democracia e ao seu exercício, ela é, tal como o combate à corrupção, uma aspiração, um desejo profundo pelo qual nos devemos bater por ter presente de forma sistemática nas nossas práticas cotidianas e nas nossas instituições. Porém, a democracia reduzida somente à existência do pluripartidarismo não é uma condição sine qua non. O mundo do debate de ideias é inexistente, as sociedades não funcionam, não se desenvolvem e não se modernizam. Países como a China e o Vietnam são exemplos que contradizem essa ideia tão propalada pelo chamado ocidente de democracias liberais. Aliás, até naqueles países há certos graus de exercício democrático.
Somos povos do comunitarismo e não do individualismo liberal europeu. Não somos povos para serem divididos em partidos políticos, com o agravante de os mesmos funcionarem muitas vezes como legendas de fidelidade étnica em um continente feito de países criados à régua e esquadro reunindo nações histórica e culturalmente unas e ao mesmo tempo divididas geograficamente entre si. Temos esse trágico legado colonial que funcionará sempre e convenientemente para nos desestabilizar, colocar uns contra outros e, assim, enfraquecer o sonho de Kwame Nkrumah de termos os Estados Unidos da África.
Estamos atrasados na busca e/ou no resgate de formas de organização sociopolítica e econômica consensuais, inclusivas, justamente redistributivas, com práticas democráticas necessárias, harmoniosas, menos tensionadas, perigosamente polarizadoras e fraturantes das nossas sociedades. Recordo aqui a experiência do socialismo ujamaa do Julius Nyerere como uma experiência sobre à qual deveríamos voltar a olhar e ajustar de acordo com as dinâmicas atuais mas mantendo os fundamentos.
Outro exemplo a ser estudado é o da Frente Patriótica Unida, em Angola. Formalmente criada em 5 de outubro de 2021, é uma associação política cujo objetivo passa por congregar todos os cidadãos nacionais, coletivos ou individuais, interessados na formação de um governo assente na democracia consensual. A chamada “democracia consensual” está na gênese da nossa organização política e social. Deve ser a partir dela que devemos buscar modelos compatíveis com nossas realidades de povos comunitários que priorizam o coletivo sobre o individual.
Porque razões a África ainda não os encontrou seus “ismos” e “craciais”?
Nos países chamados de lusófonos, entre outras explicações a resposta está, por um lado, na notória falta de vontade política de governantes que, culturalmente assimilados e para manterem seu estatuto dominante, resistem em apostar e investir em um sistema estruturante de ensino público alicerçado na qualidade de baixo para cima.
Esse sistema passa pela construção de infraestruturas condignas e bem equipadas, arquiteturas escolares rurais adaptadas às realidades locais, ensino básico e fundamental com professores e auxiliares de educação entre os melhores capacitados e sendo os mais bem remunerados, currículos descolonizados e valorizadores das nossas histórias e culturas africanas para que daí nasçam as bases para um bom ensino profissionalizante e uma academia de excelência, afrocentrada e mais apta a realizar trabalhos de investigação científica nos mais variados domínios e, assim, contribuir para a formulação de políticas públicas necessárias e sustentáveis para os nossos desenvolvimentos, independências e contribuição para afirmação do continente como todo.
Nesse processo de descolonização do ensino as universidades jogam um papel fundamental por serem também aparelhos ideológicos de afirmação cultural, colonização ou descolonização de mentes. Nota-se, no entanto que, tanto as que estão sob a tutela dos Estados quanto as miríades que nascem e proliferam como cogumelos numa lógica de pendor mais mercantilista do que educativo, estão ainda sujeitas aos imperialismos e/ou neocoloniasmos acadêmicos, tendo como seus agentes docentes africanos formados em universidades estrangeiras sem questionar o que nelas aprendem, principalmente nas faculdades de ciências sociais e de humanidades.
Portanto, se por um lado a culpa pela não descolonização do ensino e suas consequências são justamente atribuídas a governos pouco interessados em confrontar o problema, por outro, a mesma culpa deve ser também parcialmente atribuída aos que nas universidades cruzam os braços sem antes fazer o mínimo esforço para a título individual, com vontade e criatividade lançar mãos à obra para fazer acontecer.
Há pesquisas científicas nos mais variados domínios que poderiam ser feitos e acredito que tem gente lançando mãos à obra fora da bolha da vaidade nas universidades. Quantos estudos e pesquisas de iniciativa individual bem sucedidos nos mais variados campos da ciência não foram feitos apenas por curiosidade, vontade de saber e de fazer acontecer, mesmo da parte de autodidatas?
Um exemplo é o do ervanário e humanista Luís Gomes Sambo que descobriu centenas de ervas medicinais em Angola usadas no tratamento da tuberculose e cura de outras doenças. Outro é o soviético Iákov Zeldovitch criou a pólvora “Katiucha” e foi co-inventor da bomba de hidrogênio sem ter diploma universitário. Outro ainda é o cirurgião negro sul-africano Hamilton Naki. Jardineiro, pesquisador e autodidata e sem estudos formais de medicina contribuiu valiosamente para o sucesso do primeiro transplante de coração conhecido no mundo realizado na África do Sul, em 1967.
Portanto, embora ao Estado caiba a responsabilidade maior na criação de condições para que estudos e pesquisas científicas sejam feitas e publicadas, a não existência das mesmas não justifica toda a inação e comodismo da parte de nossos pesquisadores e cientistas, salvo honrosas exceções que lutam contra a maré, particularmente das áreas das ciências sociais e das humanidades que têm nos nossos países campos férteis para produção de excelentes trabalhos de investigação científica e acadêmica.
E é vê-los, a eles e elas, desfilando vaidades e egos inflados em debates televisivos, programas de rádio, colunas de jornais, lives na internet, conferências e workshop, tratando-se pomposamente uns aos outros por doutores e doutoras, exibindo PhDs disto e daquilo, citando um autor, de preferência ocidental, que só eles ou alguns conhecem, ouviram falar, leram e, nalguns casos, se leram interpretaram mal, tudo só para mostrar autoridade no que dizem e impressionar a audiência que no momento os acompanha.
Escrevem livros sobre livros só para mostrar obra feita e ganhar algum dinheiro e prestígio. Entre outros, adoram citar Max Webber, sua “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” e seu conceito de “monopólio da violência do Estado” para em debates justificarem a violência dos governos que defendem e bajulam, mostrarem “doutos” saberes adquiridos em alguma universidade, de preferência estrangeira e, melhor ainda, nozistaites e nazeuropas. Mas não questionam sobre que ética pode existir no espírito do capitalismo weberiano com a exploração dos trabalhos escravo, de mulheres e de crianças, roubo de terras indígenas, ganância e pancadaria com assassinatos entre protestantes, para dizer o mínimo.
Desconhecem a ética de trabalho e o espírito do capitalismo dos igbos que lideram a lista de bilionários na Nigéria, não citam as razões que fazem dos bakongos de Angola comerciantes por excelência. Tão pouco questionam o segundo conceito que na prática significa também “porrada no povo”. Ignoram ou omitem que este conceito não se aplica à muitas sociedades na África e em outros lugares, organizadas de forma a ser o próprio povo o detentor de poderes de coerção garantidor da manutenção da ordem e do equilíbrio social.
Obviamente que nem todos são doutores e doutoras da ignorância ridícula, da mediocridade bajuladora e da vaidade nauseante, herdeiros e herdeiras fiéis da cultura apequenada do doutorismo português. Há os que fazem jus a origem do termo docere, que em latin significa “o mestre, o que ensina”, ou seja, aquele que prima pela excelência no que faz independente de graus acadêmicos. A esses coloco a beca, mesmo sabendo que a dispensam.