De 1550 a 1888, operava de forma legal o regime escravocrata no Brasil. Durante esse período, estima-se que mais de quatro milhões de pessoas vindas do continente africano desembarcaram no país para serem escravizadas.
Séculos de cárcere privado, violência física, sexual, psicológica e moral. Uma marca que, mesmo depois de quase 134 anos de abolição da escravatura (cabe destacar que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão), mantém viva no imaginário de cidadão brasileiro uma ideia de subserviência e menos valia das pessoas negras. Ideia essa que permite atrocidades como aquelas praticadas tempos atrás, persistam.
Em outras palavras, teoria e prática difundidas e aperfeiçoadas pelo racismo, que já foi “apenas” racismo, racismo institucional e, agora, mais conhecido como racismo estrutural. Algo tão arraigado nas entranhas do país que, às vezes, parece impossível de transpor.
Voltando ao passado, não poderia deixar de registrar o trabalho de extrema relevância realizado por patrícios e patrícias de cor, que antes da abolição, demarcaram lugar na trincheira da imprensa brasileira ao lançar, em 14 de setembro de 1833, o jornal de imprensa negra “O homem de Côr”.
O objetivo desse jornal era mais que informar e analisar os fatos daquela época. Era, sobretudo, agregar pessoas, aquilombar, produzir e disseminar uma narrativa ainda cara nos dias de hoje: a luta por liberdade.
O tempo passou e inúmeros jornais de imprensa negra foram produzidos nos anos subsequentes ao lançamento do “O homem de Côr”. A abolição foi decretada e a grande massa de população negra seguiu trabalhando à força, em troca de comida ou foi jogada à própria sorte. E um novo sonho de liberdade foi inaugurado.
Não se pode negar os avanços, mas ainda existe muito por ser feito, porque a liberdade reconhecida ou ofertada mais recentemente por meio das linhas da Declaração Universal dos Direitos Humanos parece ainda não ter alcançado alguns grupos, entre eles, aqueles de pessoas negras, nem em 1948, quando foi adotada pela Organização das Nações Unidas, tampouco, hoje.
A emergência infinita e o estado de suspense à espera do próximo tiro que chega a cada 23 minutos no peito de um jovem negro precisa ser denunciado, reportado, analisado e problematizado, a partir de muitas vozes e, especialmente por jornalistas negros e negras pela imprensa negra – uma instituição secular e sofisticada, que hoje, inclusive, se materializa, em alguns casos, na imprensa tradicional como se vê na experiência do Perifa Connection (Folha de S. Paulo) e o Correio Afirmativo (Correio Braziliense), ainda movida pelo sonho de liberdade.
Por isso, ainda que pese essa sina, o cansaço e os anos de resistência de ativistas, a esperança se renova. Prova disso é a insistente coragem da imprensa negra e de seus comunicadores e comunicadoras, que precisam e merecem ser celebrados neste dia 7 de abril, Dia do Jornalista.
A data foi idealizada por ocorrência da criação da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), iniciativa liderada, entre outras pessoas, por Gustavo Lacerda (1854—1909), descrito por Carlos Roberto Saraiva em artigo publicado no site do Geledés como “jornalista mulato e pobre”. Mais uma vez, um jornalista, de cor, definindo os rumos da imprensa profissional e independente.
Celebrar a imprensa negra é, portanto, sobre acertar o pássaro hoje com a pedra arremessada ontem. É sobre pedir licença aos mais velhos sempre. É sobre olhar para o passado para construir o futuro. É sobre o exercício de projetar a voz, de jogar luz aos invisibilizados, em qualquer situação ou regime, mesmo quando não há democracia ou qualquer garantia de liberdade.
*Rachel Quintiliano é ativista, jornalista, defensora dos direitos humanos e promotora da equidade de gênero e raça. É idealizadora do Mundo da Rua Podcast, dedicado à literatura negra e escreve no Jornal Empoderado, a cada duas semanas, sobre comunicação. https://www.instagram.com/rachelqtl/
Uma resposta