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Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas

Carlos Drummond de Andrade

Um dos poemas que mais marcou em minha vida foi o “Mão Dadas”, de Carlos Drummond de Andrade. Um poema que sempre me falou sobre a importância de nos unirmos em prol de nossos direitos. Nesse poema, o autor fala que não será o poeta de um mundo caduco e que também não cantará o futuro. Ele diz que está preso à vida e que olha os seus companheiros que estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. Estar taciturno é estar quieto, calado, silenciado, triste, infeliz, melancólico… Todas essas palavras indicam que o mundo “louco” em que vivemos leva-nos a pensamentos e sentimentos negativos: à tristeza, ao silenciamento, à infelicidade… Tudo que nos é colocado – as injustiças, as violações de direitos, as privações etc. – seria motivo para desistirmos. No entanto, fazemos o contrário, nutrimos esperanças de dias melhores; esperança de que o mundo se cure, de que, finalmente, possamos falar, dialogar, compartilhar, nos unir, ser alegres, ser felizes!

Somos companheiros nessa jornada. Por mais que achemos que não, somos trabalhadores, mulheres e homens de classes sociais não privilegiadas, somos explorados, somos oprimidos… Por mais que tenhamos nossas esperanças, somos sim companheiros uns dos outros nesse silenciamento, nesse sistema opressor que nos obriga a nos calar diante das dificuldades, das ameaças, das violências, das desigualdades, dos problemas, dos medos, das dores, dos sofrimentos, das violações, das injustiças… da morte! 

Para superar esse mundo caduco, Drummond aponta a dica da grandeza do presente. O presente que é esse momento, o aqui e agora, em que podemos fazer algo para mudar toda essa loucura do mundo, para podermos falar, para termos nossas vozes ouvidas. O que podemos fazer é simples, mas não é fácil: precisamos nos unir. O poeta diz “não nos afastemos” e é, justamente, aí que está o problema. Em um mundo que nos obriga a ficar calados, silenciados, tristes, quietos, com medo e receio de sermos repreendidos, perseguidos e coagidos, muitas vezes, nos falta vontade e coragem de falar. Preferimos nos calar, mantendo uma falsa neutralidade. 

No Brasil, um país fundando com o sangue da escravidão, primeiramente, de povos indígenas, depois de negros africanos (um país acostumado com a violência, em que vemos, diariamente, em jornais pessoas agredidas, violentadas, assassinadas), fica muito difícil querer falar, sair do estado “taciturno”.  Temos medo de sermos mal interpretados, excluídos, humilhados, punidos, coagidos, perseguidos. E, assim, para nossa sobrevivência, como fizeram os escravizados, ficamos quietos, calados, “neutros”, tristes, melancólicos. Fingimos que não vemos as injustiças e violações que ocorrem conosco e com os outros. Afastamo-nos dos nossos companheiros e acabamos ficando sozinhos nesse mundo louco, silenciados, com medo. 

Muitas vezes, culpamo-nos por não ter voz para denunciar as injustiças e violações de direitos que vivemos ou presenciamos. Acreditamos que a culpa é nossa, mas isso vai muito além de nós. Isso é uma estratégia dos que nos oprimem e temos de entender essa estratégia para que consigamos nos libertar dessa escravidão do medo e do silêncio, para que consigamos curar esse mundo caduco. É necessária uma revolução pelo amor e pelo diálogo, e tal revolução só pode existir se não nos afastarmos, se nos unirmos, se seguirmos de “mãos dadas”.  Essa é a grande dica que Drummond nos deixava, era essa lição que Freire no ensinou: não podemos esperar que quem nos oprime, nos liberte desse silêncio, desse medo, dessa loucura. Somos nós, oprimidos, que temos de nos unir para mudar a nossa realidade.

É muito fácil julgar, coagir, humilhar, oprimir, ameaçar, violentar apenas um indivíduo ou, até mesmo, um grupo. Quando os oprimidos estão afastados, são os opressores que têm força. Para os opressores, para as classes dominantes, que querem manter seus privilégios e a dominação atual, a melhor tática que podem utilizar é a da “dividir para dominar”, uma tática de guerra que funcionou desde o início da colonização do Brasil pelos portugueses. Os colonizadores insuflavam tribos indígenas para que fossem umas contra as outras; essa separação permitia que os europeus pudessem dominar. Imagine como a história seria diferente se os indígenas tivessem de mãos dadas e resistissem contra a dominação europeia. Resultado, a separação, até mesmo por conta de termos muitas etnias indígenas, favoreceu os colonizadores a subjugarem e a escravizarem os povos nativos. As diferentes línguas faladas foram um dos impeditivos para a união dos oprimidos para a resistência. 

O poder do silenciamento e da falta de comunicação era tão grande, que foi usado, além dos indígenas, com os negros africanos que foram trazidos ao Brasil para serem escravizados. A primeira coisa que os colonizadores faziam era separar as famílias, os grupos, as etnias. O melhor era que os escravizados não pudessem dialogar, haja vista que isso poderia facilitar uma resistência contra a escravidão. Separando e dividindo os negros, eles conseguiram o silenciamento, a confusão, a falta de união, o que permitiu que a escravidão perpetuasse no país, por séculos, a despeito das grandes lutas e resistências por parte dos negros. Para isso, os colonizadores insuflavam a falta de comunicação e a discórdia entre os próprios negros, como por exemplo: separando famílias e grupos étnicos; dando algum privilégio aos escravizados que trabalhavam nas casas dos colonizadores, aos capitães do mato etc. Era a tática do “dividir para dominar” que funcionou por muito tempo. 

Só que os escravizados entenderam a importância de não se afastarem e, aos poucos, uniram-se, deram as mãos, dialogaram e o resultado foram as rebeliões, os quilombos, a resistência, as lutas por direitos, a abolição da escravatura. Não foi a princesa Isabel que aboliu a escravidão, que decidiu que os escravizados deveriam ser livres. Isso foi fruto de muitas lutas, de figuras como Zumbi dos Palmares, Tereza de Benguela e tantos outros negros que ousaram falar, que saíram do silenciamento, que se uniram, que dialogaram, que lutaram de mãos dadas rumo à libertação e a efetivação do direito à liberdade, à vida. Essa foi apenas uma parte da luta por direitos, que permanece até os dias de hoje, em vários movimentos em que os negros dão às mãos, como o movimento internacional Black Lives Matter – Vidas Negras Importam ou Vidas Negras Contam, e os movimentos e institutos nacionais, como Movimento Negro Unificado, Geledés, Quilombação, Coalizão Negra por Direitos etc.

Os movimentos de união dos oprimidos sempre são desmerecidos e silenciados pelos opressores, isso porque a união daqueles que sofrem privações de direitos é uma arma poderosa contra a dominação e os privilégios dos grupos que governam. Daí um contraponto de “Vidas Negras Importam” ser o “Todas as Vidas Importam”, desmerecendo a união dos grupos negros em favor de seu direito à vida. É uma estratégia que coloca a discordância entre as pessoas, para que não dialoguem, para que não formem grupos, para que não se unam em prol da garantia de direitos.

Os opressores não dão direitos a ninguém! Todos os direitos que temos, hoje e sempre, foram conquistados com muitas lutas, com as lutas de companheiros que ousaram falar, que se negaram a permanecerem quietos, que ousaram sonhar e construir um mundo mais justo, que saíram do isolamento. Mas esses que falam, se falarem sozinhos, podem ser silenciados, perseguidos, coagidos, violentados, exterminados. Nesse sentido, os oprimidos precisam unir suas vozes para que elas possam ecoar mais longe. Os oprimidos precisam destruir a estratégia de dominação do “dividir para conquistar”!

O “dividir para conquistar” (“dividir para reinar”, “dividir para imperar” ou “dividir para governar”) é a estratégia dos opressores para ganharem e/ou manterem o controle de um lugar, por meio da fragmentação, da separação, impedindo que as pessoas se unam e que se fortaleçam. Para os opressores, dominar individualmente ou em pequenos grupos é mais fácil e possível em comparação a dominar grandes grupos. Essa estratégia, portanto, impede que grupos se juntem, que se unam, que dialoguem, que se fortaleçam, que tenham voz.

O conceito de “dividir para conquistar” foi a estratégia usada pelo governante romano César (divide et impera), pelo macedônio Filipe II e pelo imperador francês Napoleão (divide ut regnes). Maquiavel, em A Arte da Guerra, já explanava que o capitão deveria se esforçar para dividir as forças do inimigo, fazendo com que a discórdia, a desconfiança, separasse e enfraquecesse as forças opositoras. No Brasil, tal conceito foi usado na época da colonização, com indígenas e africanos, e continua sendo usado até hoje, com os grupos chamados minoritários (negros, mulheres, operários, quilombolas, indígenas etc), ou seja, com os oprimidos. Para os dominantes é imprescindível manter os dominados separados, silenciados, para que continuem com seus poderes e privilégios. 

Na era moderna, o “dividir para imperar” (divide et impera) é um princípio comum na política, em que os governantes (dominantes/opressores) sempre evitam que as populações ou grupos de diferentes interesses, ou mesmo com interesses comuns (como funcionários públicos), venham a se entender, a dialogar, a se unir, dado que tal união dos dominados/oprimidos pode causar uma oposição forte demais e, consequentemente, abalar as estruturas de poder e de dominação.

Os opressores, dominantes, usam essa máxima do “Divide et impera” (dividir e imperar”, aliado a outros princípios “Fac et excusa” (agir agora e pedir desculpas mais tarde) e “Si fecisti” (quando cometer um crime, negá-lo). Tais princípios são formas de dominar, porque impõe o silenciamento pelo medo, pelas desconfianças, pela falta de diálogo e de união. E, assim, os dominantes continuam oprimindo, mantêm suas posições e seus privilégios. Essa técnica de “dividir para governar” utiliza alguns elementos que devem ser levados em consideração: estimula divisões; dá poder a alguns; causa discórdias; e violam direitos.

Primeiramente, “o dividir para governar” cria ou estimula divisões entre os indivíduos com o objetivo de evitar alianças que poderão desafiar os governantes. Imagine se grupos se unissem e começassem a questionar, a cobrar, a exigir seus direitos… Certamente, seria abalado o poder dos dominantes. Se os grupos se considerassem companheiros, se “dessem as mãos”, se juntos saíssem do silenciamento, teriam um poder de mudança muito grande, o que é evitado a todo custo pelos opressores.

Em segundo lugar, o “dividir para governar” dá poder, auxilia ou promove alguns oprimidos que estão dispostos a cooperar com os opressores. São os “testas de ferro”, ou seja, indivíduos que, mesmo sendo oprimidos, apresentam-se como opressores, reproduzindo suas ideias de dominação. Esses que se acham os dominantes, mesmo não sendo, causam discórdia, entregam os outros, humilham, perseguem, violentam, agridem, ou seja, servem aos valores dos opressores, dividindo os oprimidos; grupo do qual, por mais que ele negue, também faz parte. É o caso do funcionário que dedura o outro para obter alguma vantagem, que oprime para se aproximar do opressor. Como definiu Freire, é o oprimido querendo ser o opressor. 

Em terceiro lugar, a estratégia política do “dividir para governar” busca causar a discórdia, colocar um grupo contra o outro, incitar inimizades, rixas, disputas, brigas. Qualquer situação pode servir de motivo para colocar as pessoas umas contra as outras. E essa estratégia do opressor, garante que os oprimidos não dialoguem, não se organizem.

Por fim, “no dividir para governar”, são realizados gastos sem sentido que reduzem a capacidade de gastos militares e políticos que fazem sentido. Usa-se a questão monetária para a divisão também. Aquela máxima de “mexer com o bolso” das pessoas também é usada como estratégia para separar os grupos que poderiam se unir. É a desculpa que os governantes usam para não aumentar salários ou gratificar determinado grupo, por exemplo, dizendo que não podem beneficiar o grupo x, por conta do grupo y. Dessa forma, violam direitos e culpam os diferentes grupos, impedindo que eles se unam, pela criação de rivalidades.

Para entender a importância de se falar a mesma língua, a importância do diálogo, basta se recordar da história bíblica da Torre de Babel, que ilustra como surgiram as diferentes línguas existentes no mundo. De acordo com a Bíblia, todos os povos falavam um único idioma. E essa facilidade de comunicação fez com que almejassem à construção de uma cidade e de uma torre que poderia alcançar o céu, desafiando o poder de Deus. Uma língua única possibilitou o diálogo, a organização; mesmo que fosse para uma coisa não louvável, no caso o enaltecimento humano e insubordinação divina. Assim, para desarticular esse movimento, Deus misturou as vozes, dando origem a diversas línguas, para que não pudessem entender uns aos outros; o que fez com que esses indivíduos se dispersassem por todo o mundo. Deus, todo poderoso, poderia ter simplesmente silenciados os homens, deixando-os taciturnos, mas apenas misturou as vozes, surgindo as várias línguas.

Deus é piedoso, os opressores não, isso porque, eles não misturam as vozes, simplesmente, as silenciam. Quem se coloca contra eles é, exemplarmente, punido, coagido, silenciado, seja da maneira que for, pela humilhação, coação, julgamento injusto, algumas vezes, até pela morte. Veja-se o exemplo do silenciamento de ativistas em favor dos direitos, com perseguições arbitrárias, violências físicas e psicológicas e, até mesmo, assassinatos, como o caso de Marielle Franco. O objetivo é sempre silenciar, aquietar, entristecer, eliminar qualquer possibilidade de ascensão dos oprimidos, qualquer mudança na estrutura de dominação. Não se contentam em misturar, o essencial para os opressores é o silenciar!

A resposta para vencer esse mundo louco e não nos silenciarmos diante das injustiças e das violações de direitos é o falar, é o ter voz. Mas quando temos voz sozinhos, tornamo-nos alvo e podemos sofrer as consequências. É por esse motivo que precisamos estar próximos a nossos companheiros. E, nossos companheiros não são apenas aquelas pessoas de que gostamos, com quem temos afinidade, com quem concordamos. Nossos companheiros não são apenas aqueles iguais, aqueles que estão na mesma classe social, têm o mesmo gênero, a mesma raça, a mesma orientação sexual… Nossos companheiros são aqueles que sofrem a opressão como nós sofremos, são aqueles que, podem até ser diferentes de nós, mas que são silenciados, do mesmo modo, pelos dominantes/opressores.

O “ninguém solta a mão de ninguém” é, justamente, uma estratégia contrária ao “dividir para governar”. Drummond já dizia em seu poema, não podemos nos afastar, temos de ir de mãos dadas, agora, no presente. E como fazer isso? Não podemos obrigar o outro a fazer nada, mas podemos fazer nossa parte. Podemos respeitar nossos companheiros, aqueles que são oprimidos como nós, independentemente, se estão na mesma função, têm a mesma classe social, o mesmo gênero, a mesma religião, a mesma etnia… Quando demonstramos respeito, empatia e solidariedade pelo outro, abrimos caminho para o diálogo, para a união, para a resistência. Quando escutamos a voz do outro, abrimos espaço para que também possamos ter voz e seja estabelecido o diálogo que une, que aproxima. E nossas vozes tornam-se mais fortes na luta pelos direitos. Quando damos as mãos, a despeito de nossas diferenças, conseguimos resistir contra a opressão e dominação e construir um mundo mais justo, igualitário e fraterno.

Para driblar o “dividir para governar/imperar/reinar”, devemos, simplesmente, dar as mãos, nos unirmos. Isso porque, quando fazemos esse movimento de “ninguém soltar a mão de ninguém”, tornamo-nos mais fortes, saímos do estado de silenciamento, para a ação, para termos diálogo e, acima de tudo, termos uma voz potente, porque coletiva, que pode reivindicar nossos direitos! Não permita que o “dividir para governar” continue perpetuando em nossa sociedade, dê a mão aos seus companheiros. “Não nos afastemos, vamos de mãos dadas!”

Esta é outra dimensão fundamental da teoria da ação opressora, tão velha quanto a opressão mesma. Na medida em que as minorias, submetendo as maiorias a seu domínio, as oprimem, dividi-las e mantê-las divididas são condição indispensável à continuidade de seu poder. Não se podem dar ao luxo de consentir na unificação das massas populares, que significaria, indiscutivelmente, uma séria ameaça à sua hegemonia. Daí que toda ação que possa, mesmo incipientemente, proporcionar as classes oprimidas o despertar para que se unam é imediatamente freada pelos opressores através de métodos, inclusive, fisicamente violentos.  (FREIRE, 1987, p. 87)

*Doutoranda em Educação: Psicologia da Educação (PUC/SP). Mestra em Educação: Formação de Formadores (PUC/SP). Graduada em Letras – Português e Inglês (IESC/SP) e pós-graduada em Planejamento, Implementação, Gestão e Avaliação em Educação à Distância (UFF/RJ). Diretora de Escola concursada, professora, formadora e escritora. Pesquisadora e Integrante do Núcleo Internacional de Pesquisa em Representações Sociais da PUC-SP. Defensora e pesquisadora de direitos humanos no Brasil. Com experiência de mais vinte e um anos na área de educação, atua como consultora educacional e formadora. Trabalha com elaboração e adaptação de materiais didáticos e conteúdos voltados à educação, à educação em direitos humanos, à comunicação e a atualidades. Criadora do Projeto A Corrente do Amor, com mais de mil participantes e centenas de ações realizadas em prol dos direitos humanos.

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