Após o ultrassom determinar o sexo biológico, és menina, o primeiro presente, a boneca, seguida pelo enxoval rosa. Talvez, uma curiosa coincidência onde a “pinkificação” acontece, um tipo de daltonismo, o mundo se torna rosa. Há mais de um jeito de ser menina, sem ser exposta ao massivo do rosa e há mais de um tipo de boneca para além das etnias europeias.
Abril, começa com o dia da mentira, não havia pandemia, nem desmatamento e queimadas, não haveria vacina obrigatória, não existe aquecimento global e numa crescente negação, não existe racismo, boneca é coisa de menina, menina veste rosa, boneca não reproduz papéis sociais e a menina nunca é protagonista de suas histórias. Fica claro que não importa o quão falso algo possa ser, para quem acredita, torna-se verdade.
Estamos em Maio e a essa altura meu calendário de 2022 permanece suspenso, ao contrário do que muitos possam pensar, a pandemia não acabou. Confinamento, isolamento, luto são palavras que se tornaram comuns para alguns, desafiando nossa sanidade e nosso autocontrole. Passei 2020 cantando as faixas do projeto Amarelo, do rapper Emicida e 2021, vivo um dejávù. Revejo inúmeras vezes o documentário Amarelo – É Tudo pra Ontem e me apego ao final da canção, onde Gil entoa: “Viver é partir, voltar e repartir.” Eu retorno, retorno e retorno, como sugeriu o explorador norte-americano John Burroughs: “Se quiser aprender algo novo, refaça o caminho que fez ontem”.
O ontem está tão parecido com o hoje que fica difícil estabelecer uma linha de raciocínio, mesmo que a conta-gotas. Os dias passam e o assunto que me parecia fácil e até intuitivo, a boneca e seus papéis sociais, parecem-me impossível. Mesmo a boneca sendo um brinquedo presente em todas as casas, independentemente do estado em que vivem ou classe social. É fato que a maioria das meninas brasileiras têm tido acesso, a um único tipo de boneca, a Barbie, mesmo que adquirida de banca, herdada, presenteada ou doada.
Dizem que verdades dolorosas não podem ser ditas. As crianças assimilam boa parte do que a indústria de brinquedos diz a elas sobre o que significa ser menino e menina. E o que a indústria diz é que meninos são fortes, inventivos e violentos, enquanto meninas são belas e ótimas donas de casa.
Verdade seja dita, a menina, desde criança, é induzida a brincar de casinha, fazer comidinha e cuidar de suas bonecas. Quando se pesquisa ” brinquedo de menina” no Google, estes conferem as atribuições para sua vida adulta. Algumas pessoas ainda acreditam que a única alternativa da menina ao chegar na vida adulta é de ser mãe, uma maternidade obrigatória e/ou de ser esposa. Mesmo que criança tenha total liberdade para decidir as identidades de sua boneca com a qual brinca, ora destaca-se o papel de filha devido as funções humanas, como falar, andar, cantar e engatinhar.
Outrora uma representação de si mesma, um espelho, cria-se uma conexão de corporeidade e representatividade. E o fato de termos uma porcentagem insignificante de bonecas negras fabricadas pelas principais marcas no Brasil e na busca pela representatividade, a menina negra parece-me estar desautorizada, impossibilitando a relação firmada entre ela e a boneca.
Brincar de boneca é uma prática milenar que cria referências presentes na estrutura familiar e a de papéis (pai, mãe, filhos etc.). Na tarefa de esticar o fio da história, Walter Benjamin, no livro Rua de mão única – Infância Berlinense (1900), explica que a criança é quem controla sua boneca – como um soberano: ela veste-a, desnuda-a, decide se ela vive, morre ou come. E mais, a criança fala por ela, através dela e dela. Mario Quintana dizia – “as crianças não brincam de brincar, elas brincam de verdade”, nasce o bebê reborn.
Deparo-me com múltiplas realidades sobre o ato de brincar e permaneço perplexa, não diante do vazio, mas diante do excesso de vertentes. Sinto-me como uma gata tentando agarrar uma bola de basquete. Eu, aos 12 anos ainda brincava de boneca, hoje, uma menina de 12 já pode ser mãe. Converso com o Fábio Aleixo, esposo, sobre gestação, educação, interação adulto e criança, administração do tempo e da responsabilidade dos genitores quanto ao brincar, o ato e como brincar, os benefícios de brincar, o brincar como recompensa e punição, as diferentes realidades sociais e estruturas familiares que interferem no ato de brincar.
Sintonizo-me com múltiplos assuntos com mais facilidade, diante do bombardeio de informações por todos os meios de comunicação, até o famoso boca a boca. Assuntos estes, aparentemente contraditórios, mas, aos meus ouvidos, cheios de conexões diante de tantas fraturas expostas, individuais e coletivas. Para quem tem criança em casa, a necessidade de brincar, salta aos olhos. Antes da quarentena, o brincar geralmente ficava para depois do trabalho ou da tarefa da escola.
O brincar ainda é visto como uma atividade tipicamente infantil, pelo fato da criança ser brincante e brincar é o que se espera dela. Os meus filhos, nesta quarentena, exploram ao máximo o brincar individual e coletivo. Na trilogia – brinquedo, brincar e brincadeira, ouço “[…] a criança é a mesma, o brinquedo que mudou”, o brincar perde sua dinâmica – as crianças já não cansam o corpo todo, hoje para a grande maioria resume-se ao playground eletrônico. As infâncias são diferentes, não apenas em relação à condição financeira, mas às formas como as brincadeiras foram (e são) aproveitadas ou passadas de geração para geração. Algumas brincadeiras deixaram de existir enquanto novas foram criadas.
Muitas crianças já não experimentam o mundo do conto de fadas, frente a perda da capacidade de livre substituição, de substituir um objeto pelo outro, faz de um pedação de pau entre as pernas um cavalo, um chapéu de papel sobre a cabeça, brinca de soldado. Capacidade de criar mundos. Falar da infância hoje, lembra-me o filme “Gente Grande ” (2010) que fala do choque cultural entre gerações no ato de brincar, onde as crianças descobrem o brincar com “telefone se fio” dentre outras e de uma crônica de Luís Fernando Veríssimo, intitulada ‘A bola’, cujo enredo trata de um pai que ao presentear seu filho com uma bola se dá conta de que o mesmo não sabe manuseá-la”.
Somos testemunhas das transformações no ato de brincar, primeiro tivemos a redução dos espaços físicos, segundo a diminuição do tempo destinado ao brincar, terceiro é a redução das interações sociais e em quarto lugar o consumo de brinquedos industrializados. A linguagem mudou, porque o brincar mudou.
Quando falamos de espaço físico, o tamanho das casas também passou a ser uma questão na pandemia, algumas moradias são utilizadas ao mesmo ambiente para diversas funções como dormir, cozinhar e trabalhar. Outras tantas não há mais de um cômodo, pouco espaço para se exercitar ou brincar. E na falta de brinquedos, companhia e até privacidade, as telas e os brinquedos eletrônicos foram e são os únicos entretenimentos possíveis para várias crianças neste isolamento pela Covid19.
Uma outra questão importante é a presença significativa de responsabilidades que as crianças passaram a adquirir nos últimos tempos. De acordo com a classe social ora a criança está trabalhando para auxiliar no sustento ou até mesmo o próprio sustento. Outrora já não tem tempo para, simplesmente, serem crianças, por estarem sobrecarregadas executando as aulas de balé, inglês, natação, futebol, computação, resultam na inserção precoce no mundo dos adultos, pequenos adultos.
Em vários momentos, defendi-me de mim mesma, mudei o prazo inúmeras vezes e lá estava eu, dizendo “daqui a pouco brinco com vocês”. Brincar com certeza deveria ou é um convite que não prevê a recusa. Para o J. P. (9 anos) e P. H. (10 anos), não há recusa e os brinquedos não tem gênero, brincar de boneca, desempenhar os papéis sociais e não reproduzir o sexismo, faz parte do ato de brincar. Frente ao convite da L. (5 anos), brincar de boneca vai desde exercer o papel de pai, professor, amigo, dono do mercadinho.
Quando um menino brinca com uma boneca bebê, ele pode estar encenando diversas situações que vive no cotidiano, destaca-se a papel de pai, simulando as responsabilidades da paternidade com uma boneca. A L. em certos momentos fica preocupada em ir trabalhar e deixar a bebê com o pai, J.P, pede ao mesmo para fazer a lição de casa enquanto faz a janta, vão ao mercado juntos, brigam pq o J.P. não trocou a fralda e a bebê chora. Ela por sua vez ama brinquedos de montar, se envolve no jogo de futebol, anda de skate e se lança em atividades que muitos diriam, “coisa de menino”. Conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se, deveriam ou são direitos básicos.
O livro A boneca de William, de Charlotte Zolotow, sugere a ruptura dos estereótipos de que meninas brincam de bonecas e meninos de carrinho. E não se trata apenas de discutir que tipo de brinquedo é pra menino ou pra menina. O menino não brinca de boneca, brinca de ser pai ou desenvolve outros papéis sociais através do ato de brincar.
Recordo-me de uma campanha britânica chamada “Let Toys, Be Toys” (Deixem os brinquedos serem brinquedos), com o intuito de remover rótulos e a associação á sexualidade. O antigo molde, meninos brincam de bola e meninas de boneca, já não basta. Sim!, meninos brincam de boneca, elas são fundamentais para romper com o paradigma de gênero – porque boneca é brinquedo e brinquedo não tem gênero.
Visando possibilitar que as crianças falassem de suas impressões das bonecas, convidei algumas mães negras a não se tornarem apenas uma discursista, mas uma “companheira interlocutora”. Busquei “dar voz” às crianças, vê-las como atores sociais, com uma postura ativa frente à cultura. As crianças relataram suas infâncias e suas relações com as bonecas tecendo teias culturais. Abriu-se espaço e acolhimento para outras vozes, outras culturas no brincar com bonecas, de modo que não se tenha uma história única circulando no imaginário.
Há quem defenda que não importa se ela é Barbie, de pano, plástico, se é quebrada, da moda ou não. O que importa é que a boneca foi e é um brinquedo importante para as crianças na educação infantil. Temos uma enxurrada de bonecas brancas e na contracorrente da indústria, cresce o número de artesãs especializadas nos chamados brinquedos afirmativos, bonecas negras, representando a diversidade da mulher negra.
A comunicóloga Caroline dos Santos que não viveu a representatividade na infância e cresceu se questionando: “Eu tinha Barbies, Pollies, mas elas não representavam de forma alguma a minha pele, então eu não conseguia me ver nas bonecas. Enquanto muitas outras meninas chamavam as bonecas de filhas ou irmãs, eu chamava de colega porque eu sabia que ela não fazia parte do meu círculo por não se parecer comigo”. (https://www.educamaisbrasil.com.br/educacao/noticias/cade-minha-boneca-representatividade-nos-brinquedos-nao-contempla-a-todos)
O mercado de bonecas não entende ou ignora o poder e necessidade da representatividade preta, a escassez de bonecas negras no mercado reforça o preconceito e racismo. O aumento de bonecas negras no mercado não significa a democratização dos brinquedos ou a resolução de uma problematização da diversidade, mas uma ampliação do mercado de bonecas, que procura atingir um número maior de meninas consumidoras. Mesmo porque as bonecas pretas são, em regra, itens de colecionador.
Em meio à ausência de modelos negros no mercado tradicional, uma opção comum é buscar brinquedos artesanais. Qual a real importância de ter bonecas negras? Porque bonecas nos dizem quem somos.
Respostas de 2
Obrigada pelo texto Fabiana e parabéns pela reflexão ainda tão relevante. Trouxe-me uma questão: Cadê os bonecos, bonecos pretos? Onde estão os personagens meninos pretos na literatura e ilustração infantil? Programação infantil então? Muito ainda a conquistar.
Beijo grande e gratidão ?
Obrigado, Andrea Franco. Continue nos acompanhando!