Há símbolos que são eternos. Eles transcendem o ato de representação e passam a ter o poder de ação e personificação de desejos, sonhos e histórias. Símbolos eternos não mudam, porque se mudar, eles passam a ser outro. Os sonhos, desejos, histórias que se inscreviam no seu corpo mítico se perdem com o redesenho ou têm que serem reescritos.
Um símbolo é um corpo material em forma de desenho que trás em si; um corpo imaterial muito maior que seu formato limitador do físico. Ele é quase um espectro – liga os mundos do vivos com todas as almas, a realidade com a loucura, a razão com a paixão, o chão com o céu. O símbolo é, antes de tudo, um elo entre o carnal e o espiritual, o material e o místico. Os elos são ligações como correntes inquebráveis. Se alguém os quebrar, eles morrem como símbolos de personificação e passam a ser desenhos velhos de tempos abandonados em gavetas.
Assim são os escudos de times de futebol. São como símbolos eternos que carregam todo um corpo imaterial e poderoso. Quando torcemos para um time de futebol, ouvimos que não ganhamos nada com isso. Não ganhamos nada materialmente, e por vezes, só gastamos. Neste sentido, esse é um amor absolutamente necessário nos tempos de utilitarismo. É um amor extremamente gratuito.
E o que esse amor tem a ver com o símbolo da camisa? Tudo. Porque é aquele desenho estampado na flâmula que trêmula o peito, agita a garganta e que canta o nosso coração.
Há alguns especialistas em marketing futebolístico que desejam refazer is símbolos dos clubes, talvez mais por vaidades e ambições do que por necessidade real de mudança. Mas como são marqueteiros, sabem jogar com os argumentos mais que velhos de que o novo é sempre melhor e que o moderno é a revolução da história.
O debate entre Antigos e Modernos não começou hoje e nem com o Modernismo do Século XX. É um debate que, em sua origem no século XVI opunha formas de pensar o mundo e civilizações. Os antigos eram os Clássicos e a Idade Média, enquanto os Modernos estavam em sintonia com a Reforma Luterana e o surgimento do espírito do Capitalismo. Na sociologia, definimos o período pós Revolução Industrial de Modernidade Material, enquanto esse mesmo período na literatura e nas artes, é chamado de Modernidade Estética.
A Modernidade Material é capitalista, linear e presa pelo novo acima de tudo. Ela tem a necessidade de reproduzir cada vez mais e mais mercadorias, gosta do útil e do agradável, é tecnológica, despojada, arrogante e ilógica. A Modernidade Material não admite valores muito duráveis, é preciso que tudo seja descartável para que o novo seja a nova ordem.
Ela é isso: matéria, mas matéria líquida segundo Bauman. Não admite ligações do espírito, não admite gratuidade, misticismos. Seus símbolos são emblemas de marcas de produtos vendáveis, tecnológicos e práticos.
A Modernidade Estética pode ter alguns preceitos da Modernidade Material, porém, ela não abandona o sagrado e ainda faz oposição ao utilitarismo, mostrando como inútil e o gratuito são extremamente importantes. A Modernidade Estética revela que o ser humano não é apenas um robô das condições sócio-históricas, mas um ser dotado de paixão e conhecimento. Esse ser tem a necessidade de sentir e de aprofundar os significados da vida e de sua presença no mundo. Essa Modernidade pondera que nem sempre é preciso mudar, mas navegar sempre. A mudança deve vir do âmago do sujeito e não do apelo da propaganda. A M. E. MPs faz refletir o que é a condição humana e, a partir disso, a estabelecer e a restabelecer ligações entre o ser com o seu chão, com o seu íntimo, com a sua mente, com a sua história e com o outro.
E é isso que é um símbolo de um clube de futebol faz: liga o imaterial do amor ao material do seu corpo, liga pessoas, histórias e cantos. Liga, além disso, gerações e tempos, vô e neto, vó e neta, sonhos antigos, pulsações que já se perderam e a resistência em busca da permanência.
No caso do distintivo do Corinthians, mudar o seu desenho físico em nome da Modernidade Material é praticamente reinventar outro clube. Acredito que muito do seu poder imagético esteja no nome, mas também esteja em grande parte na obra de arte de Rebolo. Alguns irão dizer que o escudo do Corinthians já se modificou outras vezes e citam o CP e a retirada de estrelas como exemplo. Ora, não se pode comparar a certidão de nascimento com o RG, nem um RG antigo com o atual, mas ainda sim da mesma pessoa com a troca por uma identidade falsa.
Antonia Perrone, uma mulher negra, sacramentou o nascimento do Corinthians quando bordou com suas mãos o CP numa camisa creme. Ela teve o poder de materializar pela primeira vez, a criação dos cincos operários e de dar-lhe o sopro da vida. Entretanto, a busca por uma identidade sólida era visível e se refletiu na mudança do CP até chegar ao círculo com a bandeira de São Paulo no meio. Bandeira que hoje representa a resistência e a luta do próprio Corinthians contra a ditadura de Vargas e o fascismo que naquele momento proliferava no mundo. É a amostra de que nunca esse time se curvou a tirania e a violência do Estado e de um governo.
Mas o toque final de Rebolo deu um poder mágico ao distintivo do time do povo, o qual nenhum outro tem. É o único que se distingue entre todos os outros na sombra. É o único que tem o remo e a âncora lembrando que o Corinthians é um clube poliesportivo. Hoje, o remo e a âncora também lembram que um dia, o rio Tietê foi limpo e que nele se praticavam esportes náuticos.
Essas duas figuras por si só já são símbolos alto teor de significados. Vamos a eles:
Âncora: A âncora representa o chão, o porto, algo que se fixa, a vontade de pertencer-se, de ser. Ela é segurança, fortaleza, referência e ponto de chegada. Representa os valores sólidos, a tradição, a história, o conhecimento, a cultura que se passa entre as gerações. A âncora, segundo dicionário de símbolos, é força, tranquilidade, esperança e fidelidade. A parte estável e durável do nosso ser.
Remo: O Remo é movimento e se transforma em asas, braços capazes de dar a sintonia, a ação e o abraço em quem o vê. Remo é o contraponto à âncora, enquanto ela é pedra, ele é velocidade, passo e dança. No início do século, ele representava a chegada de uma nova era, o apontamento para o futuro, a própria modernidade no esporte. Os remos se tornam a senha para uma nova partida do porto. São asas passos que se misturam e se desaparecem nas correntezas das águas.
O Timão: Dizem que o apelido do Corinthians não é por conta de seu formato de leme, mas pelo apelido de timaço que ganhou quando contratou Garrincha com o intuito de sair na fila. O fato que coincidentemente, o remo e âncora dispostos dessa maneira formam o timão de um navio. Simbolicamente, o timão indica direção, responsabilidade e prudência. Representa a união entre a Modernidade do remo e a Tradição da âncora. Mostra e aponta o caminho para um novo mundo sem perder as raízes do passado. É matéria, mas também é espírito, é útil, mas também é arte, é vitória, mas é principalmente; coração.
Mudar o símbolo do Corinthians é violentá-lo de todo poder que em seus traçados habita. Elimina-se com isso as grandes viradas nos últimos minutos, as vitórias da superação, o sonho e a dor de um povo que o forjou na luta e na garra. Tirar o Remo e a âncora é destruir o seu equilíbrio secular, imagético e real. Destrói os nós, as linhas, os elos sensíveis, rompe com o patrimônio imaterial que por todos esses quase 80 anos carregou e, por incrível que pareça, mata a única lembrança de que o Tietê poderia ser um rio limpo, navegável e um caminho de novas esperanças.