Por Flávia Albaine/ Via Justiça & Cidadania
Dia 21 de setembro se comemora o Dia Nacional da Pessoa com Deficiência, o que nos leva a refletir sobre o desenvolvimento dos instrumentos e dos movimentos de inclusão dessas pessoas na sociedade brasileira.
Infelizmente, ainda vivemos em uma comunidade bastante exclusiva em relação às pessoas com deficiência, onde grande parte das ruas e calçadas brasileiras não está adaptada para o trânsito seguro de um cadeirante, onde a maioria das escolas não dispõe de tecnologia assistiva adequada para os alunos que apresentam alguma deficiência, onde os dados estatísticos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística) ainda apontam para uma exclusão das pessoas com deficiência do mercado de trabalho, onde pessoas com deficiência mental são estigmatizadas como se todo o restante da humanidade tivesse imune a ter os seus momentos de loucura e onde reinam tantos outros absurdos que dificultam a inclusão dessas pessoas no meio social.
Não se nega o progresso que já tivemos em termos de legislação brasileira objetivando o empoderamento e a autonomia desse grupo de pessoas.
Cite-se, como marcos de avanços legislativos, a incorporação, sob o status de norma constitucional, da Convenção da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre os direitos das pessoas com deficiência (Decreto no 6.949, de 25 de agosto de 2009) e seu protocolo facultativo e a edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei no 13.146/2015) em âmbito interno. Mais recentemente também o Tratado de Marraquexe para facilitar o acesso a obras publicadas às pessoas cegas, com deficiência visual ou com outras dificuldades para aceder ao texto impresso, e que igualmente foi incorporado ao Ordenamento Jurídico Brasileiro com status constitucional.
Entre outros ganhos trazidos com esses avanços legislativos, aplaudimos a adoção do modelo social de deficiência em substituição ao modelo médico, transformando, assim, a sociedade em um ator protagonista em favor da inclusão desse grupo de pessoas, além de ser agente influenciador na conceituação do que vem a ser deficiência. A deficiência não é mais uma característica da pessoa, mas sim da sociedade, que não consegue se adaptar e permitir que todos (independentemente de eventuais limitações físicas, intelectuais, sensoriais e/ou mentais) exerçam os seus direitos e deveres com o maior grau de autonomia possível e em condições de igualdade com os demais.
No mesmo sentido tem sido a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, ao julgar o caso “Talía X Equador”, adotou expressamente o modelo social de abordagem da pessoa com deficiência, entendendo que a criança Talía deveria ser considerada pessoa com deficiência não apenas por ser portadora do vírus HIV, mas também pelo ambiente de extrema exclusão social a que ela estava submetida, o que impossibilitou o exercício regular de seus direitos básicos tais como educação, saúde, habitação, dentre outros. E que se, porventura, uma pessoa portadora do vírus HIV estiver inserida em determinado meio social inclusivo e adaptado para que ela possa exercer os seus direitos regularmente, então ela não poderá ser considerada pessoa com deficiência.
Mais do que nunca é preciso lutar pela solidariedade em um mundo onde o individualismo ainda predomina. E o modelo social de abordagem da deficiência é exatamente isso. A deficiência não pode mais seguir entrelaçada à ideia de caridade e de vitimização. A deficiência não é mais um problema individual da pessoa que a torna incapacitada diante de suas limitações. A deficiência é uma questão eminentemente social, pois é o contexto que gera a exclusão.
E é exatamente nessa busca pela eliminação de obstáculos que impedem a inclusão social de grupos vulneráveis, nessa busca por uma sociedade livre de preconceitos e efetivamente justa e solidária, é que opera a Defensoria Pública enquanto instituição de expressão e instrumento do regime democrático. Objetivando a efetividade dos direitos humanos e a primazia da dignidade da pessoa humana, a Defensoria Pública oferece inúmeras formas de atuações que contribuem para que a sociedade consiga se ajustar à diversidade.
O comportamento estigmatizado em relação à deficiência possui raízes culturais, econômicas, sociais e históricas, e o trabalho desenvolvido pela Defensoria Pública Brasileira em muito contribui para a eliminação gradativa de cada uma dessas raízes geradoras de preconceito e exclusão. Uma breve leitura do artigo 3o – a da Lei Complementar 80 de 1994 – que lista os objetivos a serem perseguidos pela Defensoria Pública durante o desempenho de suas funções institucionais – já demonstra isso.
Citamos, como exemplos dessas atuações, as diversas vertentes do acesso à justiça pelas pessoas com deficiência que ocorrem com o auxílio da Defensoria Pública.
Acesso à justiça quando a Defensoria Pública presta assistência judicial de forma gratuita para as pessoas com deficiência que não possuem condições de arcar com as custas de um advogado e de um processo. Ou então, quando, independentemente da situação financeira, presta essa mesma assistência para uma pessoa com deficiência que encontra-se em situação de vulnerabilidade, já que, em se tratando de pessoa com deficiência, a vulnerabilidade é extremamente patente diante de uma sociedade que ainda não consegue incluí-la.
Acesso à justiça também quando a Defensoria Pública atua na tutela coletiva em benefício de grandes massas de pessoas com deficiência que sofrem violações aos seus direitos.
Acesso à justiça, mais uma vez, quando a Defensoria Pública luta por procedimentos judiciais mais céleres em processos envolvendo pessoas com deficiência; e quando busca a atuação extrajudicial em parceria com os órgãos de rede e com profissionais de outras áreas (psicólogos, assistentes sociais, médicos e outros) para a solução dos problemas das pessoas com deficiência.
Acesso à justiça, novamente, quando realiza a alfabetização jurídica, promovendo a educação em direitos humanos, esclarecendo à população – seja por meio de palestras, cartilhas, artigos e outros instrumentos – quais são os direitos das pessoas com deficiência e como efetivá-los, além de auxiliar na conscientização do que cada qual pode fazer em benefício da inclusão social, efetivando, assim as Regras 26 e 27 das 100 Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade.
Acesso à justiça, igualmente, quando atua nos Sistemas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, auxiliando pessoas com deficiência vítimas de violações de direitos humanos que tiveram que encarar a debilidade e/ou a morosidade da justiça brasileira em resolver as suas questões.
Por derradeiro, citamos a criação, em 2018, da Comissão Especial dos Direitos das Pessoas com Deficiência pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, e da qual eu tenho o prazer de ser membro integrante. Através da referida Comissão, Defensoras e Defensores Públicos do País inteiro – cada qual trazendo as experiências e peculiaridades dos locais onde atua – se unem com o mesmo propósito: lutar para que a nossa sociedade seja mais inclusiva e menos preconceituosa em relação às pessoas com algum tipo de deficiência.
Defensoras e Defensoras Públicos são, indiscutivelmente, instrumentos de inclusão social das pessoas com deficiência, assim como de tantos outros grupos vulneráveis.
Que cada Defensor e que cada Defensora tenha força para levar essa missão – que nem sempre é fácil – adiante. Sem se deixar abater pelo desânimo, sem se perder na vaidade, e sem ter preguiça de sair da sua zona de conforto para buscar o melhor para os seus assistidos e assistidas.
E lembremos sempre: a pior deficiência não é uma limitação física, sensorial, mental ou intelectual. A pior deficiência é a incapacidade de aceitar e conviver com as diversidades de forma saudável, pois é exatamente a convivência com as diferenças que nos trazem crescimento e amadurecimento pessoal.