Em algum momento, desde meu retorno ao RPG, uma das coisas que eu ouvia era: “você conhece o Alan? Ele é de Nova Lima (cidade da região metropolitana de Belo Horizonte), escreve vários jogos tá no rolê já há algum tempo…” Quando vi um homem preto, em Minas Gerais, construindo jogos de RPG , mas sobretudo, dentro de uma leitura legal sobre questões raciais, sobre gênero e sexualidade. Essa entrevista tem um tom muito interessante, não só pela forma como Alan aborda alguns elementos sobre raça, gênero e sexualidade, mas também pelo modo como ele desconstrói a forma convencional de se vivenciar, projetar e analisar jogos narrativos. Nesse novo capítulo, uma conversa com o autor de Veridiana, Cachorros Samurais. Produtor de tanta coisa bacana. Com vocês, Alan Silva.
Dados Críticos – Alan, eu sempre gosto começar com a mesma pergunta: como você começou a jogar RPG?
Alan Silva – Eu comecei a jogar RPG pela internet. Tinha um site chamado RPG Online e foi lá que detectei que existe um tipo de jogo completamente diferente. Na verdade, eu caí na armadilha de entender que era um jogo digital igual tinha na época dos MMORPG’s, mas quando vi que era tudo em texto me apaixonei. Desde então, fiquei em contato com esta plataforma de chat online por um longo tempo. Anos depois eu tive o meu primeiro contato pessoal com o RPG.
D.C – E seu interesse pelos jogos de modo mais aprofundado? Quando surgiu? Quando você sacou que também gostava de criar jogos?
A.S – Eu comecei a me incomodar com o tradicional modelo de violência e rolagem excessiva de dados. Eu senti que não tinha controle sobre a história e sim os dados. Eles anulavam toda aquela muralha de texto carregada de adjetivos e imaginações. Eu ficava muito frustrado. Então eu tive uma narradora, apelidada de Isis, e ela me apresentou o Fudge. Cara, quando ela narrou para mim, foi algo bem mágico, ali eu vi que a história importava e muito mais que rolar os dados. E esse tipo de emoção foi algo que me fez perceber que eu poderia fazer algo deste tipo. Mostrar outras pessoas que existem outras maneiras de jogar RPG.
E foi na minha participação de 2012 no concurso Faça-Você-Mesmo do coletivo Secular-Games. Eu tinha uma percepção mais sonhadora sobre o processo de criar um jogo, mas com o tempo eu fui amadurecendo o meu posicionamento com muita leitura, perseverança e paciência.
D.C – Explica ai o nome Inseto Vermelho? Qual a justificativa do apelido? Aliás, fala também do laboratório que você conduz! Como funciona essa ideia de conduzir um laboratório de jogos?
A.S – O nome Inseto Vermelho vem de um Pokémon que eu curto muito o Scizor. É porque é um nome muito complicado de falar e escrever, e acabei adotando isso, apesar que muitas pessoas realmente preferem falar o meu nome mesmo. Mas sobre o meu blog a proposta era ter um site para hospedar os jogos que eu faço e compartilhar pensamentos sobre design de jogo focado para jogos de RPG de mesa.
O modelo que eu adoto no meu laboratório tem seguinte estrutura: Criar, experimentar e produzir. Criar é trabalhar o imaginário, pesquisar informações e tomar notas de forma desorganizada. A etapa seguinte de experimentação é organizar as notas e elaborar um conjunto de instruções e um enredo básico, que serão usados durante uma narrativa. Tudo que não for realmente utilizado eu ignoro e apago (esta foi a parte mais difícil de ser aceita no processo criativo). E por fim a etapa de produção envolve o processo de elaborar um material para ser distribuído e comercializado. É a etapa que tenho menos experiência, e cada jogo é um aprendizado diferente.
D.C – você é um dos sócios do HQueijo. Belo Horizonte possui vários lugares legais para jogar RPG, Boardgames. Como Esses espaços contribuem para a cena de RPG?
A.S – Na verdade eu já fui sócio, eu preferi apoiar apenas a ideia e continuar a promovê-los. Mas os espaços para jogar jogos analógicos são bastante acolhedores. Eles não tem uma agenda focada no RPG em si, geralmente é para jogos de cartas ou tabuleiro, mas eles só de não impedir a ocupação do espaço para jogar RPG é muito significativo. Eu sou extremamente grato por isso.
D.C – você é da região metropolitana, lá de Nova Lima, como você nota a construção da cena de RPG nesses lugares? Existe uma conversa com as pessoas de Belo Horizonte?
A.S – Em Nova Lima as pessoas jogam RPG de forma bem privada em suas casas, ou pela internet. A cena por lá não tem uma combustão como tem na capital. Já existiram tentativas de estreitar as barreiras geográficas entre pessoas da região metropolitana, a última foi a Dungeon das Gerais do qual eu fazia parte da organização, mas que infelizmente durou pouco tempo. Os custos de deslocamentos atualmente estão altíssimos e isso realmente é um fator que faz criar um distanciamento entre as pessoas.
D.C – No financiamento coletivo de reimpressão do Veridiana você fala em dialogar com um público que não está inserido no RPG. Seria legal notar um pouco mais do seu ponto de vista sobre essa abordagem.
A.S – Certamente, os jogos de RPG ainda é um nicho, poucas foram as tentativas feitas para criar modelos de jogos com abordagens fora do eixo tradicional, por exemplo, formatos econômicos, temas não-violentos, ausência de exaltação a masculinidade, etc… Tem pouca referência nacional no mercado e destas referências, são poucos que realmente conseguem atingir pessoas de classes mais baixas da nossa sociedade. O RPG não foi criado por pessoas de países pobres, e essa herança nos atinge fortemente. Ir contra toda essa estrutura é uma nova oportunidade de expandir a conversa com outras pessoas. Claro que eu estou falando apenas de acesso ao conteúdo, mas é possível construir uma nova geração de pessoas que gostam de RPG, principalmente feito por pessoas brasileiras.
Capa do Jogo Veridiana, criança de Alan Silva
D.C – Ainda pensando no Veridiana, não me parece comum a construção de jogos de rpg não violentos… qual a importância em pensar em jogos narrativos que os conflitos convencionais não são o foco?
A.S – Eu ainda tenho um vício de dizer uma palavra muito forte para um jogo: “Eu matei um personagem”. Tipo, é naturalizado a exaltação de um “crime” apenas matar por ter recompensas, ok, existe todo um contexto e uma fantasia por trás. Mas existem maneiras mais adequadas, por exemplo, você derrotou o adversário. Necessariamente não matou algo, você se provou superior em um desafio. São linguagens diferentes que eu acredito que geram impactos diferentes. Reforçar conflitos convencionais como combate, morte e pilhagem eu estaria apenas servindo de eco para algo já perpetuado.
Eu como designer de jogo, tenho uma responsabilidade social. Criar um jogo não é apenas rolar dados e enfiar goela abaixo uma narrativa que as pessoas amam. Eu estou levando para elas uma história. Uma história que pode mudar a forma como as pessoas que participam pensam sobre o tema. E não somente isso, a forma como esse tema é conduzido na narrativa (com recompensas e penalidades).
D.C – No seu canal do YouTube, você aborda bastante os jogos eletrônicos. Quais e como os jogos eletrônicos te inspiram na escrita de novos jogos?
A.S – Eu não jogo RPG com tanta frequência da qual eu gostaria. Os jogos eletrônicos pode nos ensinar muitas informações que é possível migrar para uma modalidade analógico. Por exemplo, o jogo Veridiana é diretamente inspirado no jogo Journey (Playstation 3). Então tudo depende da forma como você enxerga estes jogos como algo inspirador para o seu campo. Eu tenho apreciado a fazer lives comentadas no YouTube porque é uma experiência bastante ímpar de jogar em conjunto e comentando sobre o jogo auxiliando iniciantes. Eu tenho consigo ter um público, que não é necessariamente de RPG, mas que se eles se apaixonarem pelo trabalho que eu faço, um dia eles descobriram que eu faço jogos de RPG e certamente terei uma boa recompensa com isso.
D.C – você fala muito da comunidade LGBTQ+ e da comunidade negra no cenário do RPG. Qual a sua impressão sobre essas pessoas na cena do RPG nacional?
A.S – Falar de raça, gênero e sexualidade no campo de RPG é ainda extremamente embrionário. É um tema muito sensível e não é nada confortável ou seguro de falar abertamente. Existem algumas pessoas que realmente estão conseguindo vencer a barreira da visibilidade dando voz para nós. Acredito que ainda faltam mais oportunidades de pessoas talentosas brilharem e serem relevantes para a cena, por exemplo, eu posso publicar um livro, mas o meu impacto ainda é muito menor que um homem branco hétero lançando também um livro no mesmo período. Entende? Isso machuca um tanto, pelo menos para mim, não sei como minhas irmãs e irmãos de luta sentem isso.
Acredito que essas pessoas não estão agrupadas e tendo a mesma voz. É um momento ainda de descoberta, pesquisa, informação e principalmente de acolhimento. É um processo longo até tomarmos ações reais para que consiga atingir uma mudança que transformará o meio. Mas estamos começando uma nova geração de pessoas que estão se incomodando com o que temos atualmente, e estou confiante que elas estão começando a produzir conteúdos incríveis.
Eu estou acompanhando todas estas pessoas. Elas me dão muita força para continuar a estar presente na cena.
D.C – Ainda em cima da pergunta anterior o concurso Faça Você Mesmo desse ano está convidando pessoas pertencentes a diferentes grupos, minorias políticas a escrita de jogos, qual a impressão que você tem sobre a concepção do concurso, o dialogo com as pessoas que se interessam pelo concurso e quais as impressões você tem sobre os jogos que chegaram para vocês?
A.S – Eu amei a proposta do FVM 2018, foi um passo muito largo para convidar novas pessoas para o meio. Eu notei que o volume de jogos e a participação destas pessoas foram o grande destaque. Não cheguei a ler algum, eu estou aguardando a etapa onde realmente eu terei que tecer uma opinião sobre o jogo. Eu sempre confiei na criatividade brasileira. Temos uma mistura de várias culturas, o nosso potencial é extremamente alto. Eu acredito que uma parcela considerável deste volume de jogos feitos terão uma continuidade, mesmo não sendo escolhido como vencedor. Meu caminho foi assim e com plena certeza serve de inspiração para outras pessoas. Nem sempre vencer um concurso que proporcionará a recompensa que você espera, mas entender que é uma oportunidade de amadurecimento pessoal e profissional é fundamental.
Eu estou ansioso para ler todos os jogos após o concurso, quero saber como os temas foram abordados e se eu conseguir organizar meu tempo opinar sobre estes jogos para ajudar essas pessoas com orientações.
D.C – Cachorros Samurais está em um processo avançado de reimpressão. O que muda do primeiro momento em que jogo foi publicado para esse momento novo?
A.S – Grandes mudanças! A princípio é a estrutura de leitura, está bem mais fluida, a Marina é uma editora talentosa e me desafiou a melhorar ainda o jogo. O engraçado é que eu já estava escrevendo do zero um segundo volume, com um design de jogo completamente novo, porém deixei de lado para focar na reimpressão do jogo corrigindo algumas informações. O que posso dizer até o momento é que o jogo será mais personalizado na questão dos animais samurai. Na primeira edição estava mais direcionado a lobos e cães, e na atual versão terão mais animais e cada um com habilidades específicas. Eu acredito que isso vai conquistar a atenção de muitas pessoas e tornar a experiência narrativa melhor e divertida.
Cachorros Samurais. Arte por Fábio Junior
Cachorros Samurais, Arte por Bruna Nora
D.C – Belo Horizonte possui algo interessante. A cena independente. Como você nota essa cena? Ela desloca para a região metropolitana?
A.S – A cena independente aqui em BH é bem animadora, eu vou te dizer o porque: A galera é muito perseverante. Eles realmente acreditam fortemente em suas ideias e conseguem vencer qualquer barreira. Não temos um volume expressivo, mas são pessoas incríveis com muita energia boa. Eu não sei como está o movimento para fora do centro de Belo Horizonte, mas o fato é que ainda existe o movimento, mesmo que ele seja menor, está ganhando força a medida do tempo, é preciso ir atrás destas pessoas e somar forças. Eu estou bem confiante no futuro da cena em BH.
D.C – Existe alguma novidade sendo pensada no seu laboratório?
A.S – Sim, eu tenho pensado em fazer workshops virtuais gratuitos voltados para design de jogos para RPG. São aulas de criação de jogos, análise e crítica de jogo, criação de mundos ficcionais, dentre vários outros temas do qual ainda eu estou estruturando. Eu tenho feito a Inseto Newsletter, até como uma forma das pessoas descobrirem novas fontes de informação relevantes para o campo, mas compreendi que ainda falta produzir muito conteúdo em idioma português para auxiliar as pessoas daqui. Quem não tem a oportunidade de aprender o inglês perde muita informação preciosa que está na internet.
Eu estou com um jogo ainda em desenvolvimento que batizei de Mutanthearts (mas deve ter outro nome comercial), este projeto ele fala sobre a cultura do jovem afro-brasileiro da diáspora africana, ele terá oportunidades de mudar os rumos da nação, porém o uso desses superpoderes pode complicar ainda mais a situação. É um jogo audacioso e que tem feito eu reescrever bastante.
D.C – Pra finalizar, outra pergunta que tenho realizado com as pessoas que entrevistei… Quais as suas principais inspirações? Entre autoras, escritoras nos diferentes formatos? Outro ponto, o que você diz para as pessoas que estão enveredando pelo caminho da produção de jogos?
A.S – A minha maior inspiração é o que eu vivo. Meus jogos sempre falam um pouco de quem eu sou ou do tempo que eu vivi. Mas eu sigo atualmente inspirações da Avery Alder (Monsterhearts), o Austin Kleon (dos livros Roube como um Artista e Mostre o seu trabalho), a Katie Salem e o Eric Zimmerman (Livro Regras do Jogo) e bem atualmente estou seguindo mais autores e cineastas negros como a Nnedi Okorafor, Ta-Nehisi Coates, Jordan Peele e etc.
Para quem deseja começar entrar na produção de jogos é: escute menos, siga a sua voz, permita-se errar e corrija quando detectar que algo possa ser reparado. Você ainda é uma pessoa anônima, seus erros não pesam quando as pessoas não te conhecem. Faça o jogo que você deseja jogar, e não deixe de comprar jogos (compre o máximo que puder), ler esses jogos (principalmente os clássicos) que você comprou e principalmente jogá-los (com o máximo de pessoas diferentes).
Acredite, você tem espaço na cena, se está gastando muita energia para gerar um resultado, reflita, talvez seja melhor buscar outro lugar para usar sua energia. As pessoas querem te ouvir, só basta encontrar quem são elas.
E se cuide, fisicamente e mentalmente. Sem saúde, não tem como escrever, não é mesmo?
Gostaria de agradecer a oportunidade de realizar esta entrevista, vocês são incríveis, continuem com o trabalho. Espero poder ajudar vocês de alguma forma, não hesite em me chamar.
Gratidão!
Links interessantes sobre o trabalho do Alan!
Respostas de 4
Tive o prazer de conhecer o Alan pessoalmente, grande pessoa, não só no cenário RPgistico, mas também no social, atuei ao lado dele em alguns eventos, me ajudou bastante quando era membro efetivo da Ethernalys, só desejo força e parabenizo os trabalhos realizados por ele.
Grande Walison! Aliado daqui da grande BH! Logo aparecem novas figuras daqui de BH nas entrevistas!!
Valeu o apoio!
Olá,
Muito boa entrevista! Gostei bastante dos pontos levantados pelo Alan. Principalmente sobre a acessibilidade dos materiais (há pouco acesso aos materiais para quem tiver pouco poder aquisitivo e mais do que isso, há obras que apresentam um linguajar que dificulte a compreensão e até a falta de explicações para novatos esperando que seja para jogadores veteranos) e a responsabilidade dos game designers (que devem ler sobre o que fazem e pensar sobre seus produtos para que não sejam meros reprodutores de opressões sociais e preconceitos naturalizados).
São questões muito importantes, não só para os desenvolvedores mas para os consumidores de tais produtos porque é através da sua ação que as editoras definem seu curso de ação e produção.
E parabéns, Luciano! As questões que você levanta são bem pertinentes, deixando as entrevistas bem interessantes mesmo!
Bonanças.
Atenciosamente,
Leishmaniose
Salve Leish! É sempre bom contar com suas contribuições e com seu apoio na construção dessas entrevistas. Eu penso que o Alan fala de elementos que precisamos refletir sobre a cena em todos os níveis de produção.
Vamos que Vamos!