Em 2019 o Jornal Empoderado entrevistou a genial cartunista, escritora, chargista, desenhista de humor e apresentadora: Laerte Coutinho. E resolvemos relembrar esse papo. Mas, como muita coisa aconteceu desde então, fizemos novas perguntas para Laerte, que gentilmente nos respondeu.
Jornal Empoderado – Após o impedimento da presidente Dilma, você foi muito chamada para mesas e eventos. Fale sobre sua militância e momento atual que vivemos. (pergunta de 2019)
L.C. – Procuro fazer parte do movimento pela retomada da democracia – e também não ultrapassar meus limites, senão me sinto desarvorada. Falo não só dos limites de tempo e de energia, como também dos de competência e conhecimento. Ao mesmo tempo, momentos como esse são importantes para aprofundar as reflexões que temos sobre a nossa realidade.
JE – Qual sua opinião sobre a situação atual do país e que espera para o futuro? (pergunta de 2019)
Laerte Coutinho – Não sei bem o que esperar para o futuro. O que espero é para o presente – que o golpe parlamentar aplicado no Brasil seja derrotado, que se retome a condução democrática da política, que as melhorias de vida que os brasileiros tiveram se consolidem, que novos governos se preocupem em consolidá-las e em ampliar a atenção sobre a população e o meio ambiente.
JE – De 2019 para cá o Brasil mudou: teve impedimento da ex-presidenta Dilma, pandemia, Bolsonaro e volta do Lula.
L. C. – Acho que não fiz nenhuma tira que sintetizasse tanta coisa. Acho que não conseguiria.
JE – Pensando em caminhos contra o ódio, da extrema direita: O “humor” é o antidoto?
L. C. – Se o humor é o caminho contra o ódio? Não. O ódio é um sentimento, o que pode fazer o humor?
JE – Qual é o seu processo para sinterizar uma ideia em poucos quadros?
L. C. – Não sei contar assim, em palavras. Nem sei se devo tentar…
JE – Como o humor evoluiu para você da época de “Piratas do Tiete” para os dias de hoje?
L. C. –Eu deixei de desenhar personagens, assim como parei com a exclusividade de representações mais caricaturais. Abandonei o roteiro obrigatoriamente cômico de construção de piadas. Passei a trabalhar com um registro mais livre.
JE – Qual a importância do jornal para os cartunistas. Você acha que tem alguma outra nova mídia que ocupa a importância do jornal?
L. C. – Ué, a mídia digital.
Um pouco sobre Laerte, por ela mesma
Laerte foi criadora da revista Balão (quadrinhos), publicou trabalhos no Pasquim, no Bicho, no Estado de São Paulo, na Folha de São Paulo, em várias revistas. Foi autora da revista Piratas do Tietê – também o nome da tira diária que produzo, participei da redação de programas de tevê da Rede Globo: “TV Pirata”, “TV Colosso”, “Sai de Baixo”. Ainda se apresentou no programa “Transando com Laerte”, no Canal Brasil e participei do curta “Vestido de Laerte”, de Claudia Priscila e Pedro Marques; e do longa “Laerte-se”, de Lygia Barbosa e Eliane Brum. UFA!
JE – Quais são suas referências ou aquelas obras de cabeceira?
L. C. – Bom, são muitas, em diferentes épocas, tive obras ou ideias diversas como parceiras ou iluminadoras das minhas. No começo, quando ainda explorava a expressão gráfica como uma possibilidade, curtia muito as pinturas de Norman Rockwell, ilustrador americano. Depois me abri mais para outras formas artísticas, e também para o mundo do desenho de humor e da história em quadrinhos. Nem sei como começar a citar exemplos – é uma lista de décadas!
Posso fazer um resumo grosseiro com as quatro influências básicas de quando comecei a vida profissional, no início dos anos 70: a produção do pessoal do Pasquim (Ziraldo, Jaguar, Fortuna, Millor etc.); o trabalho de Quino, principalmente a Mafalda; os artistas das publicações francesas Hara Kiri, Pilote, Fluide Glacial, Charlie Hebdo; e o underground americano, do qual Robert Crumb é o exemplo mais conhecido.
JE – Quadrinhos e escola: como os quadrinhos podiam ajudar na educação escolar?
L. C. – Acho que a linguagem dos quadrinhos – narrativa gráfica, inter-relação entre texto e imagem etc. – pode ser útil para estudantes de todas as idades.
JE – Los 3 amigos, fale sobre esta fase.
L. C. – Angeli, Glauco e eu tínhamos uma certa produção de cartuns e histórias em parceria, em diversos arranjos – eu e o Glauco, Angeli e eu, Glauco e Angeli, os três juntos etc.
Um dia, pelo final dos anos 80, o Angeli quis fazer uma comemoração dessas parcerias em sua revista, a Chiclete com Banana. Reunimos alguns trabalhos e fizemos um ensaio de fotos vestidos como bandoleiros mexicanos de Hollywood, à maneira do filme “Three Amigos”, de John Landis, que ia ser lançado em pouco no Brasil.
Gostamos da experiência e resolvemos criar uma história a seis mãos, com avatares nossos nessa versão: Angel Villa, Glauquito e Laertón. A primeira história foi tão gostosa de fazer que resolvemos continuar a série. Durou alguns anos – depois de um tempo se tornou um tanto rotineira e desgastada, mas no início permitiu que cada um de nós se expressasse de um modo inédito, na interação com os outros.
JE – Ainda lê quadrinhos? O que você lê?
L. C. – Leio bastante quadrinhos, em geral trabalhos autorais, de autores e autoras brasileiros e estrangeiros. Tenho ficado surpresa com a quantidade e a qualidade do que vejo surgir, sem parar.
JE – Charlie Hebdo e o Pasquim tem qual importância para cultura de protesto?
L. C. – São publicações guia; os que as produziram são meus mestres queridos.
JE – Tudo é piada ou existe limite?
L. C. – A pergunta é estranha – não acho que “tudo seja piada”, nem que existam limites. Pelo menos não que a gente possa traçar sem incorrer em censura. O Hugo Possolo disse uma vez que se pode fazer piada sobre qualquer coisa – o importante é saber “de que lado da piada se está”.
Considero o humor e a comicidade linguagens de grande impacto e sofisticação, mas de forma alguma isso as torna neutras do ponto de vista ideológico ou as coloca num ponto fora do alcance da crítica ou da responsabilização.
JE – Temos Comicon, Comix Fest, festival de Quadrinhos, entre outros eventos do Mundo nerd e Quadrinhos. Mudou muito a qualidade dos eventos e costuma ainda ir neles?
L. C. – Tenho um certo problema com eventos de muita multidão.
Fico perdida e não consigo aproveitar direito a grande presença de trabalhos e experiências que se reunem ali.
JE – Quais dicas você daria para alguém que quer lançar um trabalho autoral?
L. C. – Costumo dar dicas olhando o que a pessoa produz – isso quer dizer que são sempre conversas pessoais.
Assim no genérico, o que tenho a dizer, além das obviedades (mostrar o trabalho, procurar trabalhar em grupo etc.), é a partir de uma experiência que vai se tornando mais e mais distante no tempo e nas condições de produção.
No início dos anos 70 havia poucos lugares para se publicar, não havia nem xerox – tínhamos que levar pastas enormes com nossos originais para mostrar a editores de arte.
Hoje, qualquer pessoa consegue, potencialmente, mais visibilidade em uma semana na internet do que nós em dez anos de publicação.
Quem está começando hoje é que tem o que me aconselhar! …
JE – Laerte nos últimos anos vimos que alguns artistas estão revelando sua homossexualidade. Como foi a repercussão quando você anuncio sua homossexualidade?
L. C. – Até que foi moderada, comparando com quando tornei pública a minha transgeneridade. Em nossa cultura, ser homossexual – ou bissexual – é pinto perto de ser transgênero…
JE – Você posou nua para uma exposição. Como foi fazer essas fotos?
Foi ótimo! Ver o corpo nu pelo olhar dos outros – de um bom fotógrafo como o Rafael Roncato – é bem diferente do que se ver no espelho. A nudez tem muito a dizer a nosso respeito.
Acho que toda gente devia fazer, pelo menos uma vez, uma série de fotos nua, através da câmera de outra pessoa – e não uma simples selfie.
JE – Como se define sexualmente, como foi guardar esta decisão da mudança de sexo por tanto tempo e quando e por que da mudança? Como os amigos de quadrinhos receberam a notícia, o Angeli principalmente (imaginamos que foi com bom humor rs)?
L. C. –Sou uma pessoa transgênero, minha expressão é feminina. Entre a descoberta dessa possibilidade – de viver como mulher – e a realização pública dela, não se passou tanto tempo assim. Mais dificeis foram os trinta e tantos anos em que neguei minha atração por homens. Depois de aceitar essa parte, a questão de gênero foi uma descoberta deliciosa. Meus amigos são pessoas esclarecidas e afetuosas; todos me acolheram muito bem. O Angeli, nem se fala!
JE – Wolverine em um mundo paralelo tem um caso com o Colossus (X-Men) e a Mulher Gato mostrou ser lésbica. Temos um Homem Aranha negro, o Morales e ate uma maioria de cosplay femininos. Qual a importância destes atos vindos em um ambiente sempre dominado por brancos héteros?
L. C. – Alguma coisa há de significar…mas não tenho certeza o quê. Já tive uma fase de ler Homem-Aranha, há muitos anos – fora isso, super-heróis nunca me interessaram muito. A não ser como possibilidade de leitura paródica, como fiz com meu personagem Overman.
Sobre o falecimento do Ziraldo, a Laerte mencionou em uma outra matéria: “Foram muitas vezes que Ziraldo cruzou meus interesses com a minha necessidade de aprender alguma coisa. Fundou jornais, escreveu livros, produziu movimentos, chefiou a FUNARTE, criou uma agência de distribuição de quadrinhos. Ziraldo é uma pedra fundamental”. Confira aqui a matéria completa.
Quer ver mais sobre as obras da Laerte? Entre no site dela aqui
Anderson Moraes (42) É Jornalista, fundador do Jornal Empoderado, diretor do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, membro da COJIRA-SP – Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial de São Paulo, da Frente Nacional Antirracista, âncora do programa Domingo na Fórum da revista Fórum e colabora também no Canal Meteoro Brasil.
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