Hoje se inicia o 53º Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas, e a tradicional disputa local entre os bois-bumbás Garantido e Caprichoso em três noites de apresentação. Especialmente aqui no Sudeste, não temos o costume de olhar para outras manifestações de cultura popular do Brasil que não aquelas do eixo Rio-SP. Ou por falta de mídia que dê visualização nacional a estas manifestações, ou por falta interesse em procurar conhecer mais a respeito, ou por falta de hábito ou até por algum tipo de ideia pré-concebida.
Como a grande maioria do país, ouvi falar sobre essa história de boi-bumbá de Parintins pela primeira vez nos anos 1990, com a explosão no rádio e na TV das toadas ‘’Vermelho’’ com Fafá de Belém e David Assayag, e ‘’Tic-Tic-Tac’’ com a Banda Carrapicho. Passado o sucesso, novamente toda essa história de toada e boi-bumbá ficou relegada ao esquecimento do grande público nacional, a não ser durante as transmissões do carnaval quando um ou outro comentarista dizia que tal alegoria com acabamento impecável, tamanho gigantesco e com movimentos tinha sido construída por um grupo de artistas de Parintins a serviço do carnaval.
Em 2012, a Band fez a transmissão ao vivo do Festival e pela primeira vez eu pude acompanhar na íntegra. Pela presença de alegorias, fantasias e instrumentos de percussão, temos uma tendência natural de comparar com o carnaval e seu desfile das escolas de samba.
Acontece que é uma outra cultura, outro tipo de música, outro tipo de dinâmica de apresentação, outros itens de julgamento. Eu comparo a um esporte novo que você assiste e que precisa tentar entender os elementos inseridos, o contexto e as regras do jogo para que possa fazer sentido, caso contrário pode se tornar algo enfadonho como um jogo de futebol americano, beisebol ou tênis para quem nunca viu.
A dinâmica de apresentação dos bois é como se fosse a de uma ópera popular dividida em alguns atos, sendo que o principal deles é o chamado Auto do Boi. Trata-se de uma lenda originária do bumba-meu-boi nordestino, surgido no século XVIII, e que depois foi levada para Parintins por migrantes juntamente com a tradição da brincadeira de boi durante os festejos juninos.
Esta lenda, o Auto do Boi, consiste basicamente no seguinte, com variações conforme o local: o dono da fazenda tinha um boi que era o que ele mais gostava; o seu escravo, Pai Francisco, estava com sua esposa Catirina grávida; Catirina teve o desejo de comer língua de boi; Pai Francisco acaba matando o boi que o amo mais gostava e sacia o desejo da esposa; o dono da fazenda ao descobrir a morte do seu boi favorito e tomado de tanta tristeza, tenta de todas as formas ressuscitá-lo, sem sucesso.
Na adaptação amazônica – que incrementa o boi bumbá com elementos locais (sobretudo indígenas) – o boi é ressuscitado pelo Pajé e se torna o boi de pano que vive e brilha para sempre, no caso o Garantido ou o Caprichoso.
Depois de aprender a lógica central disso, a origem, procurei ler a respeito e entender como surgiram esses dois bois-bumbás, como é a vida na cidade de Parintins durante o ano inteiro diante de uma rivalidade absurda comparável, vá lá, a Corinthians x Palmeiras com o agravante de ser uma cidade relativamente pequena, não existirem outras agremiações para pulverizar e as pessoas serem familiares, vizinhos. Assisti também a um documentário espetacular sobre os 100 anos do Boi Caprichoso, riquíssimo de informação e mais detalhes a respeito disso tudo.
Lá na ilha de Parintins a pessoa é Garantido ou é Caprichoso, não tem espaço para os ‘’isentões’’; muitas casas e estabelecimentos comerciais são pintados na cor do boi favorito; evita-se ao máximo mencionar o nome do rival, chamado simplesmente de ‘’contrário’’; os bairros da cidade ligados historicamente ao Boi Caprichoso são a Francesa e o Palmares, enquanto o território do Garantido é a Baixa do São José.
Famílias inteiras são torcedoras ou ligadas diretamente a um dos bois, mas às vezes escapa uma ovelha azul ou uma ovelha vermelha para desgosto da parentela. É o caso, por exemplo, da família Paulain. O Sr. Carlos Paulain, de família tradicionalmente ligada ao boi azulado, compositor de alto conceito em Parintins e autor da toada que é considerada o hino do Boi Caprichoso (‘’Ninguém gosta mais desse boi do que eu’’) teve dois filhos: Júnior e Israel.
Um dia, quando criança, Israel revelou ao pai que o coração dele não era azul, mas sim vermelho. Doeu, doeu demais. O amor de pai falou mais alto e o Sr. Carlos fez uma toada dolorida mas belíssima ‘’entregando’’ o filho para o boi contrário chamada ‘’Sangue novo’’. Ah! Mais tarde, Israel se tornou apresentador do Garantido na Arena enquanto o filho Júnior era o apresentador do Caprichoso ao mesmo tempo, sendo este um dos itens de julgamento.
A única regra de boa convivência no lar do Sr. Carlos: em casa ninguém fala de boi… Por falar em rivalidade, ontem aconteceu a fatalidade do incêndio numa das alegorias do Boi Caprichoso. Operários do boi contrário, prontamente ajudaram a apagar o fogo num ato de solidariedade acima da rivalidade; muitos torcedores do Garantido manifestaram pesar ao contrário pelo ocorrido nas redes sociais, ao ponto de eu ter visto um senhor que é associado do Garantido doar R$ 60,00 para a reconstrução da alegoria.
Em impressionantes 12 horas de força total de trabalho, a alegoria já estava cerca de 80% pronta novamente e terá condições de ser apresentada a tempo na segunda noite de Festival. A guerra fica para a Arena tão somente, onde os dois lados querem vencer o contrário com aquilo que ele puder dispôr de melhor para si e para o Festival. Achei isso muito bonito.
Outra coisa que chama a atenção por lá, é que as torcidas (galeras) também são avaliadas pelos jurados como um dos itens de julgamento. A galera do Boi Caprichoso se orgulha de vencer neste item de forma consecutiva nos últimos sete anos. Quando o boi contrário se apresenta, a galera rival não pode se manifestar, deve permanecer em silêncio sob pena de perder pontos.
Ou seja, o povo participa efetivamente do espetáculo não apenas como espectador e pode ser determinante para a vitória de sua agremiação. Ao todo são julgados 21 itens: apresentador; levantador de toadas; batucada; ritual; porta-estandarte; amo do boi; sinházinha da fazenda; rainha do folclore; cunhã poranga; boi bumbá (evolução); toada (letra e música); pajé; tribos indígenas; tuxauas; figuras típicas regionais; alegorias; lenda amazônica; vaqueirada; galera; coreografia, organização do conjunto folclórico.
Quem tiver curiosidade e quiser conhecer um pouco mais sobre esta manifestação cultural genuinamente brasileira, a TV Cultura fará a transmissão do Festival de Parintins ao vivo e na íntegra: sexta-feira (29) a partir das 22:30 hs; sábado (30) a partir das 21 hs; domingo (1) também a partir das 21 hs.
Por Alexandre Tavares