Por Gilson Negão.
O fim do mês de maio não encerra a urgência de falarmos da abolição inconclusa, da repressão ao povo preto, e do papel que as instituições continuam desempenhando para manter desigualdades. Que este momento sirva como um lembrete de que a memória, a denúncia e a resistência seguem vivas — muito além do calendário oficial.
Nas religiões de matriz africana, abô significa tomar um banho de limpeza, livrar-se das agruras da vida. É algo que sempre devemos aprender com os mais velhos — nossos antepassados. Então, por favor: tome um banho de abô!
O dia 13 de maio é a data em que os canalhas que se apoderam das estruturas de poder — que representam o Estado brasileiro — dizem ser o dia da abolição. Mas nunca se mexeram ou se empenharam para que o povo preto fosse de fato respeitado. São mais de 500 anos, e nossa agonia continua.
Em São Paulo, para se ter uma ideia, a Câmara Municipal — que representa o poder — tem sua fundação registrada em 1560. A primeira Casa de Câmara e Cadeia (que prendia e soltava) é datada de 1783, e não foi criada para punir ricos burgueses, mas sim a população escravizada, que depois de condenados, eram levadas ao Largo da Forca, num teatro deprimente.
A outra casa do poder, a Assembleia Legislativa de São Paulo, foi fundada em 1835 — ou seja, 53 anos antes da falsa abolição. E só em 1970 foi eleita a primeira deputada negra, Dona Theodosina Ribeiro. Foram 135 anos de silêncio. E, se falarmos da Câmara Municipal, estamos falando de séculos!
Em São Paulo, o comércio ambulante — que é perseguido até hoje — tem registros desde 1591, com as “Negras de Tabuleiro” ocupando as ruas da cidade. Esse comércio se intensificou a partir de 1808, com a chegada da família real ao Brasil. Vendendo em seus tabuleiros, essas mulheres incomodaram tanto a burguesia que, mesmo sendo beneficiada pela exploração do trabalho escravo na época, resolveu intervir. Em 1857, a Câmara Municipal adotou “posturas municipais” para modernizar a cidade, incluindo a proibição da circulação das “negras de ganho” pelas ruas de São Paulo — as primeiras microempreendedoras do Brasil.
Estou usando esses fatos históricos, com datas e registros, para que todos entendam como a perseguição ao trabalho ambulante em São Paulo — que é negro — existe há séculos, desde 1591. Esses trabalhadores eram explorados na condição de escravizados para dar lucro aos seus senhores. Até mesmo os aleijados eram obrigados a pedir esmolas e partilhar o arrecadado com seus donos.
Esses grupos de burgueses canalhas, que só visam lucro, dominaram e dominam as estruturas de poder. Usam argumentos “convincente” para manter seus privilégios e levar vantagem até hoje.

Atualmente, aqui em São Paulo, a luta do comércio ambulante é pelo reconhecimento da Resolução 204 da OIT, e pela extinção da “Operação Delegada” — um convênio entre a Prefeitura e a Polícia Militar de SP para perseguir e proibir o comércio ambulante nas ruas.
Essa famigerada operação se utiliza do argumento de que os trabalhadores(as) ambulantes são “ilegais” por estarem nas ruas. Mas esquecem que os soldados da PM também estão em situação ilegal: aproveitam o dia de folga para fazer “bico” para a prefeitura, usando fardas, viaturas, armas e equipamentos do Estado para violentar trabalhadores(as) informais, com agressões, crimes de morte e sumiço de mercadorias. Esses fatos precisam urgentemente ser investigados e punidos nos termos da lei. Afinal, eles também são ilegais — e ainda usam os recursos públicos para cometer crimes.
Fora isso, os ambulantes ainda sofrem com coações das milícias, da GCM e de outras forças.
Lembramos que o Brasil é signatário da Resolução 204, adotada em 2015, que visa facilitar a transição do trabalho informal para o formal. Nos cinco continentes, a economia informal é responsável por mais de 50% da economia mundial. Nos continentes asiáticos e africanos, essa taxa chega a 75%.

Por isso, o dia 13 de maio, para o povo preto, é um dia de lutas e denúncias. Denúncias sobre as mazelas que o Estado comete nas favelas, morros, botecos, vielas, contra o comércio informal, contra as mulheres negras — que não são amparadas nem reparadas pelo Estado racista.
Finalizo com um trecho de um poema de minha autoria, publicado durante o evento dos 300 anos de Zumbi e Dandara:
“Quando olho pra imagem da Mãe Preta,
Lembro-me que o branco explorou a sua teta!”
Mas como diz o governador:
“Podem me denunciar na ONU ou aonde vocês quiserem, eu não estou nem aí.”
— A certeza da impunidade!
Axé!
Gilson Negão é militante do Movimento Negro, diretor da Fala Negão/Fala Mulher ZL, membro do Fórum dos Ambulantes – UNICAB, coordenador da COOPAMESP.
Revisão e edição: Brenda Evaristo.