Espetáculo Tragédie
Roupa é só roupa e o caos está instalado no momento em que vestir o corpo nu, se torna um caos. Em 2015, no espetáculo “Tragédie”, de autoria do coreógrafo francês Olivier Dubois, dezoito bailarinos entraram em cena, todos nus. Por uma hora e meia, nove homens e nove mulheres de 22 a 51 anos dançam à exaustão, começando em passos lentos e alcançando picos de um ritmo ensandecido de uma mistura musical que inclui rock n’roll. O espetáculo atinge um ponto onde as roupas não fazem mais diferença, quando se testemunha o desaparecimento das identidades e dos gêneros. O que resta são pranchas de carne, como placas tectônicas. Pele que ganha espaço para cobrir o mundo. A função principal da nudez, segundo o coreógrafo, é demonstrar como somos iguais.
Na matéria CORPOS QUE TRANSITAM, mostro que nossos corpos estão transitando e produzindo um protesto, deixando de ser corpos inertes, controlados, encarcerados, banidos, segregados e fora de lugar. Tenho a clareza, de que é da personalidade do consumidor decidir se alguma peça lhe cai bem e se ele deve usá-la. Apenas a sua vontade de usar a peça deve influenciar a decisão de compra, e não a cultura pré-estipulada do que um homem ou uma mulher devem vestir. Dito isto, comecei a buscar outros corpos para o novo editorial do projeto Silva & Silva Luluzinha Boutique, o qual sou idealizadora e curadora, onde o empoderamento da mulher começa pela roupa que veste seu corpo nú e a rever os desfiles de moda na busca de corpos não binários. Na grande maioria, encontramos homens e mulheres cisgêneras com uma ou outra característica “diferente”: homens tatuados, uma mulher negra careca, um homem de cabelos compridos, uma ruiva… e todos eles com uma coisa em comum: o corpo padrão.
A ideia de que somos muitos e com diferentes gostos, contraria a lógica da produção em massa e abre espaço para segmentos, identidades, propostas de vida diferentes. As grande marcas conhecem a importância da democratização da moda, onde inovar nos negócios, tem sido atrair novos públicos, nichos e vertentes ideológicas. Para toda e qualquer marca ou produto, independente do segmento,ter uma causa está na moda.
Se a moda reflete o espírito de uma época, o ponto de partida para a criação de uma peça é o conforto e as modelagens mais soltas que caem bem em vários tipos de corpos. Não havendo restrição na paleta de cores, transita desde os tons pastéis aos metalizados. Moda sem gênero não significa usar uma palheta de cores neutras nas peças, não significa usar apenas jeans e moletons, e muito menos usar apenas tênis.
Se a moda reflete comportamentos e tendências sociais, era questão de tempo até outra moda ganhar força: a sem gênero, conhecida atualmente como Genderless ou Agender, é um movimento que responde a uma demanda social, com intuito de quebrar paradigmas e em um primeiro momento trazer uma reflexão coletiva. A ideia dessa moda de gênero neutro é não haver separação de sexos, com o consumidor podendo escolher e comprar qualquer peça que lhe agrade, sem que essa escolha o defina como uma pessoa masculina ou feminina.
É essencial diferenciar o unissex do agênero: o unissex é definido por peças de roupa criadas tanto para homens quanto para mulheres, enquanto a moda sem gênero quebra esse padrão e não define para quem são as roupas. Não se procura peças nas sessões do sexo oposto, e sim roupas sem conceitos de gêneros, sem limitações ou estereótipos. Roupa não é homem, roupa não é mulher, roupa é simplesmente roupa.
A tentativa de criar uma moda mais “democrática” vem desde os anos 20, quando a estilista Coco Chanel ousou criar roupas para mulheres baseadas no que os homens vestiam. Um dos objetivos de Chanel, era dar mais liberdade de movimento e dinamismo para a mulher. Ela foi a pioneira na questão quando introduziu peças exclusivamente masculinas em seus desfiles, como calça pantalona e camiseta bretã listrada, que era comum entre os marinheiros. Mais tarde, incorporou elementos masculinos ao vestuário feminino, como blazers, camisas, calças e influências navy. O feito revolucionou a indústria da moda na época e, em pouco tempo, revolucionou a maneira como as mulheres se vestiam.
As discussões sobre a questão da identidade de gênero surgiu como importante reflexão para o feminismo, que no final da década de 40, a filósofa francesa Simone de Beauvoir afirmou que ninguém nasce mulher, mas torna-se uma, ou seja, o “ser mulher” é, na verdade, uma construção social e cultural.
O icônico David Bowie, nos anos 70, já vinha desconstruindo estereótipo de gênero, ao usar maquiagens nos olhos, perucas, bijuterias, vestuário feminino. Bowie desferiu “um ataque radical à forma como o vestuário codifica e estipula os gêneros”. Nas passarelas, é iniciada por volta dos anos 80 pela Jean Paul Gaultier, hora e outra é revisitada por algumas grifes, como é o caso da Prada, Givenchy, Gucci e Louis Vuitton.
Atualmente, o filho do ator e diretor Will Smith, o jovem cantor e também ator Jaden Smith, é um nome que tem se destacado em relação à questão da desconstrução de gênero na moda. Ele é uma grande influência no tema, inclusive, chegou estrelar na campanha da grife feminina Louis Vuitton.
Vivemos e respiramos o empoderamento, o corpo é usado como resistência e cada um pode escolher a identidade de gênero. Moda sem gênero, tem a ver com quebra do conceito masculino e feminino, com a livre expressão de identidade de gênero, com a ressignificação, onde ‘todo mundo pode tudo’.
Muito se fala sobre “moda sem gênero”, no entanto, percebo que a maioria das pessoas não sabem o que é e só conseguem imaginar “um homem usando vestido” quando escuta o termo. É bem mais do que isso!
No fundo, as pessoas querem se libertar de certos códigos pré-estabelecidos. A moda sem gênero surge para quebrar paradigmas, abraçar a diversidade e mostrar que a moda é livre, independentemente de quem seja o público final. O objetivo do movimento é criar um ambiente confortável para que pessoas possam ser quem são, fiquem livres de limitações e encontrem na moda uma forma de expressar ao máximo a sua personalidade. A proposta da moda sem gênero é quebrar preconceitos e abrir espaço para que todas as pessoas sejam aceitas e respeitadas.
Demos um salto no tempo, 1920 para 2019, onde o retorno da moda sem gênero desperta interesse em assuntos que antes não tinham espaço, como a ideia de que o rosa é uma cor feminina e o azul, masculina. A restrição do azul para meninos e do rosa para meninas gera um preconceito, quando sabemos que cores não têm sexo. E juramos diante da tecnologia que nos cerca que somos, hiperconectado, mas não utilizamos essa conexão para gerar mais empatia e respeito entre pessoas diferentes
Inclusão e diversidade são duas palavras-chave e, nesse sentido, a igualdade entre os sexos se torna fundamental gerando debates aquecidos sobre questões de gênero, tendem a acabar com os limites do que é masculino e feminino, a favor da livre expressão. Sob essa perspectiva, o gênero deixa de ditar o que as pessoas devem vestir. As peças são pensadas para pessoas reais, respeitando a individualidade e particularidade de cada corpo.
Em 2010, nasce a Wildfang, uma marca que trabalha com a estética masculina para mulheres, que em seu manifesto dizia que estavam “roubando o armário dos homens”, apropriando e relendo peças.
Em 2015, foi a vez da apresentadora Ellen DeGeneres que diante da sua dificuldade e de seus fãs em encontrar peças que traduzissem seu estilo agênero, criou sua marca, ED – suas iniciais e também o apelido que ganhou de sua esposa, a atriz Portia de Rossi, a qual procurava facilitar o não-binarismo. Apresentando blazers tradicionamente masculinos com cortes que favoreciam corpos com quadril largo, camisas e calças com cortes e modelagens inclusivas, itens que fogem ao binarismo de gênero, ou seja, não tendem para o que é considerado esteticamente masculino ou feminino.
Em 2015, nasce a Another Place, marca de roupas de Recife, que prioriza peças sem limitação de gênero. Defende a ideia de que nasceram para vestir todo mundo sem fazer diferença de gênero, acreditam que não dá para ser original sem fazer a diferença, não dá para ter atitude sem quebrar paradigmas e não dá para ter opinião e continuar repetindo a mesma fórmula. A humanidade não cabe toda dentro de uma caixinha ou um armário. Em 2018, Another Place e Passarela se uniram em uma collab inédita para criação de uma bota coturno – sem gênero – com a palavra de ordem “ANP”, para dar mais voz ao movimento.
A grife de apenas três anos já vestiu as novas estrelas do pop nacional, como Anitta, Pabllo Vittar e Iza, e tem uma clientela de jovens entre 18 e 30 anos, 53% são homens e 47%, mulheres. Apesar do sotaque pernambucano, a Another Place é inteiramente produzida em São Paulo, em confecções da Casa Verde, do Brás e da Granja Viana, por exemplo. Nova York, “onde as coisas acontecem” e a cidade que primeiro recebeu uma passarela da marca, é de onde sai a maioria das inspirações aplicadas nas coleções.
Ainda, em 2015, o resultado do TCC do curso de Design de Moda, da UFC -Universidade Federal do Ceará, de Fortaleza, virou marca e negócio, nasceu a Pangea, marca de moda brasileira agênero. Peças não estereotipadas que desconstroem o padrão de modelagem usual, levando-se em consideração um equilíbrio entre padrões de medidas masculinos e femininos. Em 2017, a Pangea lançou sua segunda coleção trazendo tecidos mais versáteis, que se adaptam melhor dentro das multiplicidades dos corpos.
Em 2016, a loja de departamento brasileira C&A lançou uma coleção chamada “Tudo Lindo e Misturado”, com fundamentos genderless e estampada por um homem usando um vestido floral em sua nova campanha.A marca usou o Facebook para divulgar o vídeo da campanha, que levou os seguidores a loucura. O material mostra modelos homens e mulheres correndo nus para vestirem-se com as peças da marca. Modelos homens usam vestidos e mulheres vestem cuecas. O vídeo obteve mais de 1,8 milhão de visualizações, mais que 17 mil curtidas e mais que três mil compartilhamentos.
https://youtu.be/kfA4GcujLjU
No entanto, tal coleção foi criticada, já que nos cabides das lojas não havia nenhuma novidade além do que estamos acostumados. Aparentemente a C&A em nenhum momento afirmou textualmente que seria uma coleção sem gênero.
Ainda em 2016, no início de março a Zara também lançou uma coleção “agênero”. Tão lugar-comum como a C&A, trouxe moletons cinzas, jeans largos e camisetas vestindo modelos cis, brancos, magros e altos. Isso não mudou nada em relação à moda que já existia nas prateleiras, não havia cortes que ajudassem homens e mulheres trans e pessoas não binárias a se expressarem.
Em 2016, A marca do criativo Victor Apolinário fala de inclusão, divisão e acolhimento em uma discussão de gênero que também é social. Negro e da periferia, Apolinário busca igualdade no entremeio entre o feminino e o masculino, numa discussão forte sobre o que é ser um estilista, pobre e negro no Brasil.
A linha de pensamento do consumidor é algo bem mais simples: ‘eu gosto, eu compro, eu uso’. Sem grandes análises de gênero. Acredito que quando o mercado compreender isso por completo, vamos ver surgir lojas sem divisão de gênero”, afirma Nuta Vasconcellos, jornalista de moda e blogueira no Girls With Style.