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A REVOLTA DE UMA BRANQUITUDE INDIGNADA: A síndrome de Macunaíma e o “racismo reverso” num Brasil que não é racista

Era uma vez um país em que não existia o racismo. Todos os habitantes eram mestiços e, amados por um deus mestiço como eles, comiam comidas tão mestiças quanto e vestiam roupas igualmente mestiças. A mestiçagem era a grande marca dessa incrível nação, que fora formada, harmoniosamente, por três grupos humanos num encontro que aconteceu há 517 anos e, desde então, perceberam o quanto seriam belos e felizes se conseguissem unir as suas culturas em prol de um grande, lindo e pacífico paraíso sincrético e miscigenado. E assim nasceu o Brasil, a “pátria amada, idolatrada…Salve! Salve! ”

Para os desavisados que acharam se tratar de um conto de fadas, lembro que a fábula do tal país miscigenado e feliz é uma grande falácia! O Brasil nunca foi a mãe gentil que aos seus filhos acalenta. Trata-se, em contrapartida, de uma nação que carrega em sua história um passado de dor, sofrimento, exploração e negação cultural de parte significativa do seu povo, ou melhor, da maioria dos povos que o compõe, especialmente as populações negras e indígenas.

Imagino que relembrar que somos cria de um país escravista, cuja riqueza construída pelas elites foi banhada pelo suor e sangue de negros escravizados, é desnecessário. Todavia, diante dos burburinhos e clamores da branquitude revoltada nas redes sociais por serem “vítimas” de um tal “racismo reverso”, resolvi historiar (já que é esta a nossa proposta) acerca de algumas questões que precisam ser lembradas, para não serem esquecidas. Ou melhor, precisam ser retomadas, uma vez que foram ocultadas pela memória forjada de um Brasil se pretendia “o paraíso dos mulatos”.

Confesso que sinto pena dessa branquitude “injustiçada”, que vai às redes sociais com hastags clamando o “direito de apropriação cultural”, atribuindo sua indignação à um debate que envolve, entre outras questões, o uso de turbantes. O que a “revolta branca” desconhece é a diferença que existe entre um turbante, um Gèlé e um lenço qualquer amarrado na cabeça, ou sequer sabe que cada amarração tem um sentido; tem um significado; tem uma razão de ser, podendo identificar desde a origem étnica (a nação), o status social, o Òrìsà da filha de Santo e a sua idade de santo ou o humor de quem o carrega…

A priori, faço esta observação: um turbante, para os adeptos das religiões de matriz africana, nunca será apenas um pedaço de pano usado como enfeite ou adereço fashion. Diante do que representa, o turbante é hoje, um símbolo do empoderamento da mulher negra e, principalmente, um símbolo da luta contra a intolerância religiosa. Então, como disse Ana Maria Gonçalves num post recente em sua página do Facebook, “enquanto mulheres brancas esperneiam por aí #VaiTerBrancaDeTurbanteSim, sentindo-se rebeldes e descoladas, aplaudindo gracinhas publicadas por homens brancos, de turbante ou sem turbante, continuam sendo mulheres brancas, imunes ao racismo. ”

De fato, em toda história deste país, nunca se viu um episódio sequer em que homens brancos e/ou mulheres brancas foram desprovidos de direitos pela marca genética decorrente da quantidade de melanina que carregam em seus corpos. Em nenhum momento dessa história, homens e mulheres brancos se viram obrigados a lutar para manter sua identidade cultural e religiosa ou, simplesmente, para provarem a sua humanidade e reclamarem o direito de reconhecimento da sua cidadania.

Ser negro no Brasil, ao contrário, sempre foi tarefa difícil. Carregar a cor que trazia o estigma da criminalidade e era considerada pelas elites brasileiras até fins do século XIX como um defeito que carecia de “dispensa” em caso de pretensões de ocupação de cargos eclesiásticos, por exemplo, é para homens e mulheres afro-brasileiros o sinônimo de luta, persistência e resistência à opressão.

Cabe aqui fazer uma segunda observação: ser negro no Brasil é ainda mais difícil, porque o Brasil não se queria negro. Lembra da fábula do país mulato lá do início do texto? Pois é! O sonho do Brasil era embranquecer. Ah… como ele queria ter sido o reino da branquitude, mas o fracasso das teorias racialistas desenvolvidas no século XIX foi a sua grande derrota.

A proposta de incentivar a imigração com fins de eliminação do passado negro e indígena não deu certo e o grande plano de branqueamento em um século, defendido pelo médico e antropólogo João Baptista Lacerda, babou!!! De fato, a ideia era limpar o ambiente até 2011, levando em conta que essa proposta foi apresentada em Londres, no I Congresso Universal das Raças, nos idos de 1911. De lá para cá, o que se viu foi um país que nunca assumiu sua cria, tampouco se responsabilizou pelo tratamento diferenciado que dá a seus herdeiros.

O defeito de cor levantado nas Constituições da Bahia como prática diretiva do Direito Canônico parece persistir em ambientes ainda mais diversos e o que vemos diariamente são tentativas de desmoralizar e questionar a legitimidade da luta dos povos negros no Brasil, na busca pela cidadania plena.

À guisa de conclusão, o que vemos é que ao longo da sua história, o Brasil saiu do patamar de nação escravista para país racista. O grande problema é que, ainda obcecado pela ideia de embranquecer e acuado pela impossibilidade de fazê-lo, o ideal branco foi substituído pelo ideal mestiço; diga-se: conformado, alienado, domesticado, aculturado. Assim, entre assumir-se “o purgatório dos brancos (insatisfeitos pelo fracasso do branqueamento) ou o inferno dos negros”, o Brasil optou por reconhecer-se como o paraíso dos mulatos.

Nessa via, a disseminação do mito da democracia das raças e a síndrome de Macunaíma se alastrou e tomou posse do juízo dessa gente brasileira, que acredita viver num país em que não existe racismo, visto ser um país mestiço. O curioso é que a mesma branquitude que nega a existência do racismo, hoje se revolta por se dizer vítima de racismo às avessas… Vá entender!

NOTA

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