No começo do século XIX, o comandante da marinha inglesa para o Hemisfério Sul dizia que Salvador era a cidade mais bonita do mundo. No século passado, Pierre Verger, depois de muitas errâncias, parou em Salvador para nunca mais sair. Referia-se ao pequeno quarto onde primeiro ficou na cidade, com bela vista, como um “pedaço do paraíso”. A primeira capital brasileira guardava e ainda guarda encantos, mas o que faz dessa cidade um lugar tão diferente?
Faço importantes considerações antes de prosseguir. Uso a terminologia atual, aceita pela ciência, que há tempo não fala mais em raças e sim em cor de pele ( branca, preta, parda…)
A Cidade da Bahia de Todos os Santos, como era chamada, guardava mesmo uma beleza singular. Muitas eram as igrejas e mosteiros. A despeito da vegetação nos taludes que contornavam a costa; que, em meio ao casario, fazia a vista ainda mais linda, – eram frequentes os desabamentos. No entanto, tanto as belezas quanto os acidentes naturais não eram a razão da singularidade apontada pelos cronistas.
No Brasil colônia era muito grande a proporção da população de cor de pele preta e parda na Cidade da Bahia . Nos primeiros anos do século XIX estimava-se que aproximadamente 50% da população era composta por escravos, 25% por portugueses com cor de pele branca e outros 25% por pretos e pardos alforriados. Tamanha era a relação da cidade com a escravidão que mesmo grande parte dos pretos e pardos livres possuía escravos. Diziam os cronistas que o habitante da cidade que tivesse menos do que três escravos, pertencesse ele a qualquer estrato social, era certamente muito pobre.
Os africanos eram no século XIX, em Salvador, chamados de pretos, e os nascidos no Brasil, chamados de crioulos. Muitos dos crioulos eram pardos. Os pretos viam na época os crioulos com antipatia. Viam os mesmos como traidores. Assim, os mulatos sofriam perseguição de brancos e de pretos.
Esta distinção era vista em lugares como as igrejas. Em Salvador os pretos, escravos ou alforriados, construíram a igreja do Rosário dos Pretos. Ela não era a única no país. Existiam outras, como a do Recife. Nestes templos os pretos, impedidos de frequentar outras igrejas, podiam professar a sua fé. Mesmo na igreja do Rosário dos Pretos, crioulos e pretos se apartavam pela intolerância racial.
Outro traço característico de Salvador era a vida urbana. No Brasil Colônia prosperavam os engenhos e minguavam as populações das cidades. Em Salvador era, opostamente, abundante a população de artesãos, taberneiros, ferreiros e toda a sorte de gente voltada para ofícios citadinos. Também por isso se desenvolveu ali um outro tipo de escravidão, que diferia da observada no engenho: o escravo de ganho. O escravo de ganho vendia seus serviços. Com o valor arrecadado pagava o seu senhor e muitas vezes pagava a sua moradia. Normalmente estes escravos viviam abaixo dos sobrados, em câmaras chamadas na época de lojas.
Muitos escravos de ganho, e pretos e crioulos alforriados costumavam concentrar-se de dia nos cantos. Eram lugares onde se agrupavam prestadores de serviços específicos. Havia por exemplo cantos onde se prestavam serviços de lavadeiras, enquanto em outros pontos ofereciam serviços como o transporte nas cadeirinhas.
Os pretos de Salvador pertenciam à muitas nações africanas. Populosa era a quantidade de pretos da nação nagô, de reinos Iorubás. Professavam no Brasil o candomblé, com algumas semelhanças em relação a religião que se perpetuou na África. Eram comum entre estes a escarificação da pele. As marcas no rosto definiam a procedência e a posição social na África.
Outras eram as nações, como os jejes, os minas e os angolas, mas merecem destaque ainda os malés. Os malês eram muçulmanos e muitos dos malês eram alfabetizados, algo raro mesmo entre os brancos no início do século XIX. Os malês não se adequaram da mesma forma à vida na colônia que os pretos de outras nações, mas protagonizaram a Revolta dos Malês, importante insurreição escrava do Brasil Colônia.
O sociólogo Gilberto Freyre dizia que os africanos eram mais industriosos do que os próprios portugueses, porque sabiam arar a terra e alguns ainda eram alfabetizados, ao contrario da maioria portuguesa no Brasil Colônia. Foi o sociólogo pernambucano quem, a despeito das criticas contra algumas de suas teorias, reconsiderou o conhecimento, vasto, do africano que vinha nos navios negreiros ao Brasil.
Ainda segundo Gilberto Freyre muitos eram os escravos de ascendência nobre, mesmo príncipes e rainhas. Por isso espanta a expressão de orgulho de alguns escravos em fotos antigas. Conta-se que alguns mantiveram uma postura digna até os últimos instantes da vida.
Enfim, muitas são as curiosidades da história da capital no Brasil Colônia. Muitos estudam sobre o tema, como João José Reis, pesquisador da Universidade Federal da Bahia. Salvador, bem como o tema, encantam. Conhecer a história é resgatar as origens.