Longa dirigido por Melina Matsoukas percorre questões delicadas, mas mostra a necessidade do cuidar e a resistência pela afetividade
Poucas vezes assistimos um casal negro protagonizar filmes. Sempre os vimos como sendo figurativos, em personagens que pouco exploram a beleza, a subjetividade e as complexidades pertencentes a eles. Falar de temas como amor e afeição não é muito comum quando o roteiro escrito traz o assunto racismo como foco.
Pois bem, lançado o ano passado [2019], o longa Queem e Slim dialoga com muitos tópicos em torno da temática racial. Precisamente, coloca a violência policial em cena, mais uma vez, não só para denunciar. Contudo, para dizer de forma clara e objetiva os impactos de práticas e construção do racismo estrutural e institucional no tecido social.
Mas o filme vai muito além disso, inclui no centro de discussão uma série de recortes, como a construção afetiva entre os dois jovens, o amor que nasce no meio de uma intrincada situação de autodefesa. A paixão em pauta, vista e sendo dita com imagens, sons e uma história marcada pelo sentimento de cuidado e responsabilidade.
E ir mais além ao mostrar o papel da solidariedade entre a comunidade preta, vemos isso em muitos momentos do longa. Exemplo é a cena com um policial negro que deixa o casal fugir em um carro porque sabe que Queem e Slim não fizeram nada – apenas agiram para se defender da truculência e arbitrariedades de mais um policial branco.
Essa parte é muito simbólica porque traz o senso de pertencimento, de se ver e entender as injustiças contra todo um povo marginalizado. O oficial afro-americano age em defesa dos seus, de uma coletividade, mesmo indo contra determinações das forças policiais.
O desenrolar da história pontua como são criadas narrativas de ódio e os estereótipos contra corpos negros. Reservando a eles o estigma de violentos e criminosos, quando, na verdade, é o contrário: policiais prendem e matam pessoas pretas e sabem que não serão cobrados por ninguém.
Fato que fica evidente na cobertura midiática, sempre colocando o casal como fugitivos de um crime, sem ao menos contextualizar o episódio e o porquê de todo o ocorrido. Cria-se no imaginário popular os elementos para criminalizar e julgar sem buscar os desdobramentos da situação.
Para a opinião pública, um policial branco alvejado com um tiro é o suficiente para causar a prisão e linchamento dos dois. E o contraditório é que esquecem todo o histórico de abusos policiais, de prisões e mortes sem investigações profundas, mas logo se condena corpos negros tentando proteger suas vidas.
Corra!
Queem e Slim é protagonizado pelo ator Daniel Kaluuya e a atriz estreante Jodie Turner-Smith. Kaluuya é o astro do celebrado filme Corra!, lançado em 2017, do também aclamado cineasta Jordan Peele. Novamente, o protagonista de Get Out, dá um show juntamente com Jodie, ambos em atuações marcantes e perfeitas.
A trama tem a direção de Melina Matsoukas, que produziu famosos videoclipes como “Formation”, de Beyonce e “We Found Love”, de Rihanna, e roteiro de Lena Waithe, também reconhecidíssima no circuito. Ela foi produtora do filme [Netflix] “Cara Gente Branca”, que virou, depois, série da grande empresa de streaming.
É interessante pegarmos as duas produções para pensarmos o recorte afetividade. Podemos analisar em Corra! muitas coisas, mas, sobretudo, observar como são as relações interraciais para muitos. Os episódios de racismo praticados pela família da namorada de Chris, todo o interesse [nesse caso] perverso nele.
Sabemos que há, sim, muitas problemáticas subjacentes em volta do mote relacionamento interracial, como casos de preconceito – aonde o par preto (a) é sempre tratado sob a perspectiva da desconfiança e aceito com ressalvas no meio familiar. Não podemos negar a existência de muitos casos assim.
Queem e Slim precisa ser debatido como referência, e não ficar somente sob o olhar cinematográfico, porém, pensar e agir sobre cotidianamente. Afinal, construir afetividade [pretos e pretas se amando] é uma forma de se refletir acerca de produção e processos de formação da identidade afro-afetiva.
Expor como o longa também procura dar visibilidade ao amor preto e a produção política dos afetos. E isso é falado bastante, mesmo que sejamos impelidos a refletir, inicialmente, sobre os modus operandi da violência sistêmica contra eles. Há uma bonita, empoderada, construção de sentimentos e desejos; um apelo crítico para o olhar sensível e poético entre os protagonistas.