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O Dia Internacional do Trabalhador não é apenas mais uma data do calendário – ou, pelo menos, não deveria ser. O feriado marca a resistência histórica dos trabalhadores e trabalhadoras contra a exploração capitalista e a sua luta por direitos e condições dignas de trabalho. Neste 1º de Maio, o Jornal Empoderado convida você a refletir sobre o verdadeiro significado da data e a conhecer um grupo quase invisível, mas profundamente simbólico de força e resistência: as marisqueiras da Bahia.

No meu estado, existe uma tradição de mulheres que se dedicam à coleta de mariscos, passada de geração em geração, especialmente em comunidades tradicionais e área de manguezais. Em sua maioria, são mulheres negras, de diferentes idades, que exercem a pesca de aratu, siri, caranguejo, camarão, peixe, etc. São elas que, com mãos calejadas e instrumentos simples, como facas e ganchos, garantem o sustento de suas famílias e mantêm viva uma cultura que resiste às investidas do racismo ambiental, da desigualdade de gênero e do descaso do Estado. 

A mariscagem não é apenas um trabalho: é uma prática ancestral, um ato de resistência cotidiana com grande valor cultural e econômico para as comunidades baianas. A atuação dessas mulheres é essencial não apenas para a preservação da biodiversidade e das tradições locais, mas também para a economia das regiões onde vivem. Luciene Maciel de Andrade Oliveira, de 60 anos, é uma dessas mulheres. 

Luciene nasceu em Canavieiras, no sul da Bahia. Ela me contou que começou a pescar aratu há 13 anos, após enfrentar dificuldades para manter empregos formais na área da saúde. Além disso, problemas de saúde a afastaram do trabalho e a levaram a buscar apoio do INSS, onde seu processo de aposentadoria ainda está em andamento. A mariscagem surgiu, então, como alternativa de sustento diante da precariedade e da ausência de garantias trabalhistas.

A pescadora relatou que a presença das mulheres na mariscagem, em Poxim do Sul, povoado de Canavieiras, sempre foi uma constante. “Aqui em Poxim, sempre houve mulheres que pescavam aratu, só que nos anos 80, anos 90, começou essa coisa da venda, porque antes era mais para o consumo próprio. Então, as minhas vizinhas, as mulheres da minha comunidade, pescavam muito. Hoje, isso virou uma rotina na vida dessas mulheres aqui”, disse ao Jornal Empoderado. 

Sobre sua rotina de trabalho, Luciene explica que tudo gira em torno das marés: “Acordo sempre de acordo com as marés. Se a maré é mais cedo, você acorda mais cedo, se a maré é da mais tarde, você, claro, vai acordar mais tarde um pouquinho também. É levantar, fazer as nossas coisas de casa, as nossas tarefas diárias – arrumar casa, deixar o almoço pronto para o esposo […] Eu vou sempre remando, eu ando dois, três quilômetros remando, então, quando meu marido tem um tempo disponível, ele me leva de motor também, ele já vai pilotando e só vai pondo a canoa para mim pescar. Mas, normalmente, eu vou remando, por isso que demora muito mais, às vezes, para mim.”

Ela explicou também que, para trabalhar com o aratu, é preciso capturar dois ou três quilos, voltar para casa, cozinhar e catar tudo para, então, vender. O quilo é vendido a 60 reais, mas antes disso é necessário limpar e filetar todo o marisco. São cerca de 100 aratus — e ainda assim, depende do tamanho — para se conseguir um quilo de carne limpa.

Luciene ainda destacou a importância da união entre as mulheres marisqueiras, numa atividade que vai muito além da subsistência: é resistência coletiva. “Eu sempre prezo dizer que o importante aqui é as mulheres estarem juntas. Normalmente, as mulheres vão sempre em trios, em duplas, de quatro […] E é sempre bom você estar com alguém. No meu caso, não dá para ir com alguém, porque a pescaria que eu faço é de dentro da canoa”, explica. 

Para muitas mulheres de Poxim, a mariscagem é uma questão de sobrevivência. Em meio a um cotidiano marcado por desafios, elas acumulam múltiplas jornadas: são provedoras, mães, pescadoras e cozinheiras. Luciene, no entanto, reconhece que sua realidade é mais tranquila do que a de muitas companheiras de ofício. Sem filhos e contando com o apoio do marido, ela consegue organizar sua rotina de trabalho conforme as condições da maré e da própria saúde, pescando quando se sente bem. Mesmo assim, sua fala carrega empatia e um profundo respeito pelas mulheres que vivem exclusivamente da pesca e enfrentam diariamente as dificuldades que a mariscagem impõe:

“As dificuldades existem para aquelas mulheres que vivem aqui em Poxim. Tem muitas mulheres que vivem da sua pesca, né? Aquelas que às vezes não têm seus esposos, que criam seus filhos, é a mãe e o pai daquela casa… Então, elas acordam muito cedo, faça sol, faça chuva, vão pescar. Têm essa rotina de cuidar da sua casa, dos filhos, às vezes, deixam os filhos mais novos com os mais velhos, né? E por aí vai. E quando retornam, têm que cozinhar o marisco, filetar os seus mariscos, então, tem toda essa problemática”, conta a pescadora. 

Ela continua: “Eu acho muito duro, muito duro para uma mulher entrar dentro de um mangue e ficar puxando meio saco de aratu na cabeça ou puxando na lama, com toda aquela engrenagem que você sabe como é o manguezal — uma rede de raízes sobre lamas, com muitas ostras. Então, eu considero esse um trabalho extremamente árduo”. 

A pescadora também afirmou que, entre todas as atividades, catar aratu é a mais difícil. Explica que é preciso pegar perninha por perninha do crustáceo para conseguir formar um quilo, o que exige muito esforço e paciência. “As mulheres vão e pegam, às vezes, 500, 600 aratus no dia. E fazem até cinco, seis quilos por dia. Eu acho uma coisa extrema, sabe, para essas mulheres. É encantador ver isso”, aponta. Luciene também ressaltou os problemas relacionados à grande grande quantidade de mosquitos e ostras espalhadas pelos manguezais, além de abelhas e até cobras. Além disso, algumas mulheres pescam em locais muito distantes, chegando a percorrer cinco ou seis quilômetros com motor, e, quando esse motor quebra, são obrigadas a retornar remando, muitas vezes sem qualquer ajuda disponível.

Ao responder por que tantas mulheres atuam na mariscagem, Luciene afirmou que a maioria delas não escolhe esse caminho por vontade própria, mas por falta de oportunidades e pela ausência de políticas públicas eficazes. “Não é fácil. Eu acredito que há muitas mulheres trabalhando como marisqueiras por falta de um trabalho, por falta de uma visão — de um presidente, de um governador, de um prefeito, né? Eu sempre falo que a mola que move o mundo é o amor. Mas, se você não coloca isso para fluir… a atitude, né? A atitude está aliada a tudo isso. Você precisa ter atitude. Então, aqui em Poxim deveria ter uma creche, deveria ter uma praça, deveria ter tantas coisas… Deveria ter uma associação equipada, um trabalho diferenciado para essas mulheres. Porque algumas até estudam; outras, já não. Outras vivem de cuidar das suas casas, de cuidar dos filhos — e ainda têm que pescar para sobreviver, né?”, relata a pescadora. 

Questionada sobre se acredita que este é um trabalho valorizado, Luciene destacou a falta de apoio estrutural e financeiro para essas profissionais: “Eu não acho que seja valorizado, porque você não tem um respaldo, né? Você não tem um caixa — um caixa porque, por exemplo, se você ficar doente, se chover, você não é ressarcida, né? Então, assim, você só tem dinheiro se for pescar. Tem alguns pescadores aqui que são colonizados, inscritos em alguma associação ou colônia. Eles pagam um valor à associação, um valor ao INSS, e, claro, quando ficam doentes ou acontece alguma coisa, eles recebem por isso.

Existe o defeso do caranguejo, do robalo, do camarão, da lagosta — lá em Canavieiras — e essas pessoas recebem três salários mínimos no período de três meses, de maio a agosto, né? Já o trabalho do pescador e da marisqueira, no caso de pessoas que pescam peixe ou mulheres que pescam aratu, por exemplo, não tem esse tipo de amparo. As que têm são as que são colonizadas. As que não são — às vezes por escolha, por não quererem se associar — não têm nenhum respaldo. Se chove, não tem pescaria. E se não tem pescaria, não tem dinheiro. E se não tem dinheiro, surgem os problemas dentro de casa, né? Não existe, por exemplo, um selo para esses produtos, que permita levá-los para fora. A gente vende sempre por aqui”, explica Luciene. 

Ela também demonstrou um forte vínculo afetivo com a mariscagem, revelando, mais uma vez, como essa atividade se consolidou como uma prática cultural profundamente enraizada na vida dessas mulheres baianas. “Eu vou para poder me distrair, me desestressar […]. A minha família briga muito comigo porque eu faço isso, mas eu vou porque me faz bem, sabe, me faz bem. Não é tanto pelo valor – você volta com a sua mente limpa, tranquila. Então, é isso que me faz ir”, confessa. 

Contudo, as condições de trabalho desfavoráveis fazem com que apenas o amor pela profissão não seja o suficiente. Essas mulheres carecem de apoio e estrutura para exercerem seu trabalho com segurança. Luciene expressou um desejo coletivo por dignidade:

“Eu falo em nome das mulheres de Poxim. Eu queria que elas tivessem mais visibilidade, que a sociedade olhasse para elas com o olhar de amor, com o olhar de acolhimento, que pudesse ajudar de alguma forma, estudassem um modo que pudesse ajudá-las, que pudessem suprir as suas necessidades, sabe? Dessem condições de vida, uma ótima canoa, que elas pudessem ter bons acessórios para pescar, roupas adequadas, botas adequadas para pescarem, produtos para usar na sua pele, um repelente, um protetor solar, que é muito importante”, pontua. 

Por fim, pedi a Luciene que deixasse uma mensagem em homenagem a este Dia do Trabalhador: “Gostaria que cada um de nós pudesse olhar para o outro com um olhar de igualdade, sabe? Um olhar de amor, um olhar de cuidado, porque se cada um cuidar um do outro, eu acho que as marisqueiras, não só as marisqueiras, claro, todos os trabalhadores do nosso país teriam uma vida diferente. Precisamos olhar o outro com esse olhar de contemplar o outro”, afirma.

Além de Luciene, muitas outras mulheres marisqueiras de Poxim do Sul merecem reconhecimento e atenção por parte do Poder Público. Diversas delas atuam na mariscagem há décadas – pessoas que têm 60, 70 anos e que continuam pescando nos mangues. Luciene Souza, por exemplo, pesca há 30 anos, dia e noite, em jornadas exaustivas.  Antes de ter o apoio de um motor, precisava acordar cedo, cuidar da casa e dos filhos, deixá-los com a mãe e, então, seguir para o mangue remando. Rilza Matos também é pescadora, e iniciou na pesca devido às dificuldades financeiras enfrentadas pela família e pelo desejo de conquistar autonomia. Você pode conhecer essas guerreiras no documentário “Marisqueiras”, dirigido por estudantes de graduação da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), no sul da Bahia. 

Em nossa entrevista, Luciene disse que as mulheres marisqueiras representam, para ela, “inspiração”, e eu acredito que não há palavra melhor para definir a força com que essas mulheres enfrentam o cotidiano nos mangues. Nesta data tão emblemática, é importante direcionarmos nosso olhar a quem está na base da pirâmide social, resistindo com garra e, sobretudo, com amor. Amor pelo mangue, pela pesca e pela vida que construíram a partir desse ofício tão invisibilizado. Que o Dia do Trabalhador nos convide a reconhecer essas trajetórias, valorizar essas vozes e lutar por políticas públicas que garantam dignidade, visibilidade e justiça para as marisqueiras e todos os trabalhadores e trabalhadoras do Brasil.

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