Eron Duarte Fagundes é escritor, jornalista e critico literário, contribuindo para diversos jornais como o Correio do Povo e a mídia DVDMagazine. O ensaísta escreveu ainda ” Uma vida nos cinemas” pela Editora Movimento e participou de diversos eventos envolvendo literatura e cinema (E-mail: eron@dvdmagazine.com.br). O texto que segue é a crítica realizada pelo jornalista à obra ” A última aldeia”, de minha autoria.
por Eron Duarte Fagundes
A Última Aldeia (2017; editora Insular) surpreende no seio duma literatura muitas vezes voltada para o jornalístico e o trivial
Rodrigo de Novaes Lima é paulista e vive presentemente em Florianópolis, a bela capital catarinense. Sua novela de estreia, A última aldeia (2017; editora Insular), surpreende no seio duma literatura muitas vezes voltada para o jornalístico e o trivial; o uso amiudado de vocábulos e de construções sintáticas bastante fora da linguagem oral brasileira confere ao texto de Novaes Lima uma forma estranha de narrar, ainda que aqui e ali certa forma ou alguma indicação moderna se intrometa dentro daquele refinamento verbal antigo que é o que parece edificar a espinha das preocupações literárias do narrador.
Com tantos ficcionistas da história, do russo Anton Tchekhov ao brasileiro José Geraldo Vieira, Novaes Lima é um escritor que também é médico. Não se sabe bem até que ponto a profissão paralela do escritor pode influenciar sua escrita; se o contador de histórias é jornalista ou publicitário está mais próximo da palavra na ficção, mas e se ele é um burocrata ou um profissional da saúde? Poderiam um relatório da burocracia ou uma receita médica composta num consultório servir de base para alguma literatura?
À parte estas lucubrações delirantes de um comentarista a esmo, convém meditar sobre A última aldeia como uma navegação em metáforas, fluidas ou líquidas, que quase se esgarçam na alma do leitor. É como se um autor brasileiro do século XIX desembarcasse no cenário brasileiro de hoje; eu arriscaria uma assombração: o romancista cearense José de Alencar, um clássico hoje tão combatido por nossos atuais gostos de ler e escrever. Certos adjetivos e certa adjetivação remetem aos recheios linguísticos de Alencar. É claro que se esta transposição não conduzisse algo mais complexo, que funde e confunde os tempos literários (do romantismo arcaico ao pós-pós-moderno), o universo de Novaes Lima seria anacrônico e provavelmente mofaria, levando o observador ao tédio; não é o que acontece: o que temos na página é, ressuscitemos, um sol a pino do verbo raro, incessantemente buscado, para pôr em conflito a cômoda modernidade de todos nós. É bem verdade, todavia, que o narrador, às vezes, topa alguma dificuldade em equilibrar o teor metafórico e sua realidade, as proporções de linguagem e naturalidade das personagens; mas A última aldeia, em seu conjunto, tem atrativos suficientes para interessar o amante de literatura sensível e sem preguiça de dar com algo que foge ao ramerrão.
A novela é uma narrativa em primeira pessoa em que o narrador e protagonista é um aventureiro do sul que vai a uma vila perdida no interior do Rio Grande do Norte; a ambientação nordestina é captada pelos períodos de quando em quando delirantes de Novaes Lima, que já nos primeiros movimentos ataca pela raridade. “Tudo o que existia era um calor espesso, brando, benfazejo. Aquela sensação, lídima coroa dos que lutam com estoicismo ordinariamente, casava com a utopia vaga do final feliz.” O que segue depois são as idas e vindas da personagem no cotidiano da vila, incluindo algumas escaramuças com mulheres (“volvi às carícias de antes”), tudo pontilhado por uma linguagem tensamente inquieta consigo mesma, em busca constante de torneios diferentes de dizer. “Dizia que a pessoa que chegasse ao orgasmo autêntico se desarrumava. No êxtase, transfigurava-se.” O novelista de A última aldeia, como um ser na cópula, se desarruma buscando a transfiguração; até que ponto o desarrumado se rearranja nesta tentativa de transfiguração? Novaes Lima faz seu caminho: irregular, sinuoso, frequentemente preciosista, mas sem deixar de ser intenso em cada curva de sua utilização da língua. “Alimentando concepções elevadas de mim mesmo, usando-me do artifício para tolerar, subsistir no limbo.” O espírito do viajante tateante e dúbio, em formas de linguagem e temas em torno, domina A última aldeia, uma espécie de ponto terminal numa costa nordestina; a frase que fecha a novela sintomatiza esta volatilidade que recobre sua essência narrativa: “Tortas. Sonhos. Promessas ditas, imaginadas. Seguiria movido por expectativas voláteis. Sensatas? Ingênuas? Quem saberá? Fato é que para mim bastavam.” Bastará para os leitores? Também o leitor que houver lido a novela de Novaes Lima e agora percorrer estas linhas aqui, ou que tiver feito o caminho inverso, poderá perguntar-se das possíveis associações de linguagem entre este comentário e a novela que lhe serve de pretexto e ficar um pouco com esta sensação de metalinguagem.
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