O que você vê ?
Taís Espírito Santo
“Sim, há as horas de trégua. Quando se afiam as facas”
Eunice Arruda
Coleciono olhares por onde passo. Talvez estejam pensando que eu possa estar me gabando demais ou me sentindo a maioral com essa coleção, mas não. Não sou maioral, não sou bela e muito menos popular; sou comum, eu acho. Mas tem uma coisa que eu sou e tem sido motivo para maior visibilidade: sou candomblecista. Não, não faça o sinal da cruz agora que te disse, nem tente pegar a água ungida para me purificar, e muito menos pense: “Nossa, ela parecia ser tão inteligente, pra que escolher essa religião tão primitiva?” ou “Meu Deus, ela não conhece a Verdade?!” Não, por favor, não me olhe com cara de dó e muito menos de pena. Coleciono olhares pois ando de branco, da cabeça aos pés, ojá (pano de cabeça), saia, blusa ou vestido, fio de contas de meu Pai Oxalá e cabeça baixa, pois estou de resguardo. Fui falar com um amigo que não é da religião, explicar a ele que eu não podia sair, e também comentei um pouco de como estava vestida e sobre este meu período e ele não se aguentou e disse: “Que medo! Que pena! Você era tão cheirosa…”. Não entendi a sua colocação e perguntei o que poderia ter mudado, como assim, medo? E o que tinha a ver o cheiro, já que o branco representa a pureza e consequentemente preciso estar sempre limpa, e muito bem limpa. Ele me pediu desculpas, disse que havia entendido errado. Bem, não sei o que e como ele pôde ter entendido errado. Ou eu. Respirei fundo, sei que não posso sair do meu eixo, e nem quero. Sei que é um retrato de tudo que esse mundo é: racista. Sei que no meu caminhar existem olhares, e quanto mais se olha, mais percebo o que este representa: pena, raiva, medo, pavor, nojo, tristeza, paz, retribuição, afeto,
cumplicidade. Uns fazem sinal da cruz, daqueles bem “sutis”, sabe? Outros começam a cantar hino alto, a clamar por um deus legítimo, a orar quando pausa a música, e alguns, bem poucos me olham felizes, passam por mim e dizem palavras boas: benção, modupé, que seja de axé… Sinto aquela boa energia emanada, afirmo com a cabeça e dou um sorriso aliviada entendendo que não estou sozinha. O que me questiono, mesmo já sabendo da resposta, é que como que alguém ali, sem falar ou fazer nada, sem gritar aos quatro cantos sobre a sua fé, é vista como algo ruim, uma aberração, um seguidor do coisa ruim ou devota.
Falando em aberração, nesse dia eu me senti fraca, sem energia para lutar, estava no ponto esperando um ônibus e ele simplesmente não parava pra mim, passaram três ônibus e nada… Eles foram parando devagar e depois saíam correndo, não consegui anotar a placa, fiquei sem ação com o que ocorreu, pensava no absurdo de ter que viver assim, de ter que lutar sempre diante dessa realidade. A luta é diária e constante. Mas tem dias que infelizmente a gente se sente assim… Até quando terei que olhar para o lado e ver que alguém está me olhando com desprezo, ou nojo, ou fingir que não está olhando; até quando verei pessoas cutucando as outras, me mostrando, me rotulando?! “Ah, mas você queria o quê? Por que foi escolher essa religião?”
“Só sei que dói”
Não consigo acreditar numa só religião, não dá pra crer numa verdade absoluta ou em uma só história… Tem dias que a cor da minha pele e a religião que escolhi e para a qual fui escolhida me remetem à dor dos meus ancestrais, ao sofrimento deles de professarem sua fé. Sei que os tempos são outros, sei que eles lutaram muito para que pudéssemos chegar aqui, mas só sei que dói. Hoje dói.
A cabeça e o corpo pesados, várias inquietações na mente, antes de dormir peço agô por me sentir triste, peço perdão por me sentir doída, porque mesmo diante de tudo estou aqui, em pé, e são apenas olhares… Exausta das reflexões, no outro dia, acordo mais cedo, lavo minha roupa branca, a estendo, passo minha roupa de hoje, meu ojá, tomo meu banho, me visto, o sol está de rachar… Decido pegar um carro até o metrô, o caminho é um pouco longo e está muito quente. Quando entro no carro, já imaginando que olhar seria, abro a porta e o motorista: “Bom dia, menina!” Respondo aliviada: “Bom dia!” E ele complementa: “Sabe que nós somos resistência, né? A luta é grande, mas precisamos resistir”. Com os olhos marejados, e tendo mais certeza do caminho escolhido, só consigo responder: “Sim, resistir sempre! ”
Taís Espírito Santo, geminiana, mutável e amável na mesma proporção.
Mulher! Negra! Do Rio de Janeiro, precisamente da Zona Oeste, criada em Campo Grande e amadurecida pelo cosmo – Cosmopolita. Filha da Isabel e do Francisco.
Graduanda em Turismo pela Universidade Federal Fluminense. Poetisa nas horas vagas e nas não vagas também, produtora, amante de música e de Nina Simone. Atriz.
Filha de Oxalá com Yemanjá, serena como o ar e viva no mar, como água-viva.
No K-BELA emprestou sua negritude enegrecida através de lábios que falam por si, mesmo em silêncio.
E no início de 2017, pela Editora Malê teve seus dois textos publicados “A pretinha e o pretinho” e “Quando
parei de mandar beijos” no livro “Olhos de Azeviche- dez editoras negras que estão renovando a literatura brasileira”.