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Muitos textos nascem de um gatilho, experiência, percalço, embaraço, grito, leitura e/ou narrativa. O mito de que nós – mulheres negras – nascemos para dar conta de tudo e que somos ótimas nas multitarefas, com uma habilidade invejada e ovacionada, nos atravessa de muitas formas. Dessa maneira, somos transformadas em mulheres polvo, pois estarmos sempre dando conta de diferentes afazeres tal qual um polvo agarra diferentes objetos com os tentáculos. E transformamos cada extensão do nosso corpo em tentáculos, com os quais administramos desde os compromissos até o lazer.

Como toda história fictícia que começa com era uma vez… essa também não passa de uma fantasia. Ninguém é capaz de dar conta de tudo, de dividir seu tempo entre tantas coisas e ainda manter a sanidade mental. Mas, esse malabarismo é feito por muitas de nós e por mim também. Nós maquiamos a sobrecarga como algo divino e até milagroso. Entretanto, só falamos sobre o excesso de carga em momentos de extremo cansaço, nunca em momentos mais calmos, fora do contexto de exaustão.

Revisitei minha estante e li o livro: A criação do patriarcado, de Gerda Lerner, que relata o início da escravidão com homens escravizando mulheres e afirma que toda história precisa ser apagada para que as mulheres possam ser inteiramente dominadas, domesticadas, exotificadas e coisificadas. Reli, A Coragem de se apaixonar por você, de Gisele Miranda, que estuda o mito da mulher polvo.

A sociedade reproduz a ideia de que nós, mulheres negras, temos um papel social a desempenhar: o de serviçal. Impondo o corpo negro e feminino ao estigma social da diferença, com a marca ancestral do corpo escravizado e da fêmea mucama. Mais uma tentativa de nos silenciar, naturalizando as opressões, animalizando nossa vivência e nos transformando em mulheres polvo.

O livro Mulheres não são chatas, mulheres estão exaustas, de Ruth Manus, explana a recorrência ao silêncio, o seu preço e a síndrome da mulher maravilha, questões que não acontecem sem profundos arranhões. Sempre questionei o rótulo de forte atribuído a nós, mulheres negras, como se não tivéssemos o direito de chorar, de falar e de gritar quando sentimos dor. Chegamos a acumular até oito jornadas em consequência da ideia de que somos naturalmente cuidadoras, e boa parte de nossos tentáculos estão sobrecarregados com responsabilidades que deveriam ser divididas.

Durante anos, celebrei a minha própria habilidade de ser naturalmente forte, assim como o ato de fazer malabarismos com inúmeros compromissos, e, diante dos questionamentos eu respondia dou conta. Até a morte de minhas filhas e de minha mãe, onde o peso das minhas lutas mostraram a falha nessa percepção. Senti-me culpada quando não dava conta, o orgulho de ser uma mulher polvo escondeu o custo emocional.

Por muito tempo abracei tarefas e mais tarefas, cada uma delas se desdobrando em outras. Uma espécie de mérito, que me conferiu o título de mulher polvo. Foi assim que me animalizei e multipliquei meus braços. Mesmo quando a máscara de oxigênio caía, não a usava, não falava ou gritava, apenas ultrapassava meus limites e aceitava o cansaço como virtude.

Hoje deparo-me com a fase da mulher loba, que – ao invés de desenvolver braços para além do normal – convive em matilha. Estou aprendendo a gritar, a pedir ajuda, a não silenciar minhas dores e emoções. Levanto da mesa quando o amor já não está sendo servido, como orientou Nina Simone. E você, em que fase está?

De quem é a culpa desse mito da mulher polvo? Será que é da criação equivocada? Ou da romantização do cuidado feminino? Apesar das mudanças, ainda somos sobrecarregadas e compelidas a acreditar em um script construído e elaborado, que desonera os homens de responsabilidades.

Todo nosso questionamento, dúvidas, estranhamentos e ausência de nós mesmas, passa pelo o que foi estabelecido como a norma, ou seja, o normal tal como um padrão. Mas, normal é o esforço desprendido para nos adaptar, até encarar o espelho e ele nos devolver a pergunta: quem é você?

O livro escrito por Ruth relata a importância da desconstrução do termo mulher guerreira, pois já passamos da época em que a mulher era enaltecida por cuidar da família, principalmente de seus filhos. Transitamos do mito da mulher polvo para a realidade da mulher lobo, recusamos a domesticação e as normas socialmente impostas à nós. Não somos apenas mulheres negras anônimas, nós somos o sustentáculo econômico, afetivo, social e moral de nossas famílias.

Questiono se somos mulheres polvo ou se estamos sobrecarregadas. Nós, mulheres negras, apresentamos maior incidência de transtornos mentais, tais como, depressão, ansiedade e doenças psicossomáticas, porque estarmos sobrecarregadas. Se racializarmos a síndrome de burnout podemos perceber características diferentes da síndrome de burnout sofrida por pessoas não racializadas, ou seja, para além da exaustão oriunda do trabalho,sofremos também a exaustão oriunda do racismo. 

As desigualdades sociais e o racismo atravessam as instituições de saúde e impõem barreiras ano nosso acesso aos serviços de cuidado. Assim como, a falta de rede de apoio, que nos leva a postergar o auto-cuidado e a normalizar a exaustão mental.

Chorei por vários dias, diante das demandas que nunca acabam, pois sempre tem tarefas a serem feitas. É como se, a todo momento, eu precisasse provar que sou boa em tudo o que faço. Sou uma pessoa perfeccionista e, abrir mão da régua da perfeição para realizar o que é possível dentro dos meus limites, é um exercício diário.

Já não espero que tudo esteja resolvido para que eu possa descansar e não resumo o descanso à dormir. Afinal, dormir não é a única forma de descansar. 

Revisão e edição: Tatiana Oliveira Botosso

NOTA

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