O arroz
Em janeiro de 2020, o preço da saca de 50 quilos do arroz em casca estava pouco abaixo de 50 reais. A safra brasileira prevista não era exuberante (10,5 milhões de toneladas), mas somada à importação, daria conta do consumo interno e de uma exportação em torno de 15% da produção, no período da safra, de março de 2020 a fevereiro de 2021. Registremos aqui uma primeira razão para a alta que se seguirá: não se previa uma safra abundante de arroz.
O dólar mais forte em relação ao real, no final de março, deixava o preço de exportação (cerca de 70 reais por saca) mais atraente para o produtor, que vendia no mercado interno por 52 reais. As preocupações com a pandemia começavam a influir no aumento da demanda no Brasil e no exterior. Dois novos componentes para a alta, assim, se agregam aqui: o dólar forte favorece a exportação, o mesmo valor em dólares de tempos anteriores se transforma em mais reais para quem exporta. O segundo é que a procura pelo arroz cresce em função da insegurança, no Brasil e fora, com relação ao abastecimento.
O mês de abril foi de forte alta, com a saca fechando a 57 reais, ao contrário do esperado, pois a safra estava em pleno andamento. Mais um fator entra em cena para esse resultado: os custos de produção e transporte, que já eram altos, se agravam. Com o início do fechamento de indústrias, pela pandemia, em São Paulo e Rio, muitos caminhões que levavam arroz do Rio Grande do Sul tiveram que voltar vazios, pressionando os custos.
O mês de maio fecha com a saca sendo negociada a 63 reais, resultante de alta demanda interna e externa. As exportações continuavam favorecidas por preço mais alto no exterior e o dólar alto em relação ao real. A procura permaneceu aquecida durante todo o mês de julho que fechou a 65 reais a saca.
O movimento de preços em agosto marcou recordes em cima de recordes de preços máximos. A cotação fechou o mês a 94 reais a saca, e a média do período foi de 80 reais. Os produtores, ao perceberem a forte procura e o movimento de alta dos preços, limitaram suas vendas no mercado na tentativa de aumentar seus resultados. Além disso, as exportações em agosto 2020 foram o dobro das de agosto de 2019.
Em setembro os negócios superaram a casa dos 100 reais por saca. O pico registrado ocorreu em meados de outubro a 106 reais. Em dezembro, os agentes começaram a se questionar se haveria mesmo razão para alta tão expressiva e, como acontece nesses casos, a alta começou a refluir. De todo modo, “no acumulado do ano (de 30/12/2019 até 30/12/2020), o Indicador Esalq/Senar-RS subiu expressivos 95,5%, fechando a R$ 93,91 por saca de 50 kg no dia 30”.
A linha vermelha do gráfico refere-se aos preços da saca de 50 quilos do arroz em casca durante o ano de 2020. O ano começa com o preço em 48 reais, o patamar de 63 reais é alcançado no segundo trimestre e o grande salto, para cima de 100 reais, ocorre em agosto e setembro. O valor mais alto do ano foi 106 reais em outubro. Os preços fecham ano de 2020 pouco perto de 94 reais, uma alta no ano de 95,5%, ou seja, o preço do arroz praticamente dobrou no Brasil em 2020.
Em resumo, pode-se dizer que o estoque de arroz na passagem de uma safra a outra vinha baixo, em relação aos anos anteriores. Isso significa que produtores migraram para outras culturas mais vantajosas, como soja. Estoques baixos significam maior risco de oscilação de preços, pois eventos não previstos, de clima por exemplo, podem provocar desbalanceamentos de oferta pelos produtores e procura pela indústria e comércio, com os consumidores na ponta final.
A um dos mais baixos estoques de passagem da história, aliou-se uma pressão de custos de insumos para o produtor; os preços dos combustíveis jogam um papel crucial aqui. A pandemia acabou por ser o fator desestabilizador: dificultou e encareceu a logística de transporte, provocou incerteza nos consumidores que reagiram aumentando a demanda para ter algum estoque em casa, tornou vantajosa a exportação, pelo fortalecimento do dólar frente ao real, agregado a uma forte demanda no mercado internacional. A exportação cresceu 48% nos primeiros 11 meses de 2020. A subida de preços realimentou o desequilíbrio na medida gerou insegurança nos consumidores e incentivou os agentes a segurar o produto na espera de novos aumentos.
Os preços de 2021 estão representados pela linha verde do gráfico. O primeiro trimestre marca uma queda de 94 reais por saca para 87 reais. A queda se acentua no segundo trimestre para fechar próximo de 69 reais. O mais recente valor do Indicador do arroz em casca Esalq/Senar-RS foi 74,99 reais, no dia 27 de julho.
“As cotações domésticas do arroz estão voltando aos patamares médios históricos, quando considerados os valores deflacionados. Assim, abre-se o questionamento sobre a sustentabilidade da produção agrícola, especialmente porque nos últimos 10 anos a cultura [de arroz] mostrou-se pouco viável no Rio Grande do Sul. As expressivas altas dos custos de produção nos últimos meses, aliadas à redução dos preços de comercialização, devem complicar as tomadas de decisões e reduzir a atratividade da cultura”, avaliou o boletim Agromensal Cepea/Esalq-USP, de junho de 2021.
O arroz tem duas características importantes de serem destacadas. Ele é produzido por inúmeros agricultores, beneficiado por grande número de indústrias e consumido por milhões de pessoas. Isso quer dizer que não há um grupo restrito de pessoas ou empresas que consiga manipular os preços em seu benefício. Em outras palavras, é possível considerar que inexiste poder de mercado na cadeia do arroz.
A segunda característica é que o arroz, para o consumidor brasileiro, não tem substitutos. Se o preço sobe as pessoas que conseguem ter renda continuam comprando pois, grosso modo, não há outro produto para substituí-lo. São essas características que, aliadas, aos eventos iniciados em 2020, explicam a expressiva alta e o retorno a preços ainda altos, mas um pouco mais “normais” agora em 2021.
Com o aumento da fome no país seria perfeitamente justificável que o governo, temporariamente, arcasse com parte do preço do arroz, entre outros produtos. Um subsídio, por exemplo, para baratear a comida, como já aconteceu em outros tempos, teria aliviado enormemente o sofrimento de milhões de brasileiros durante a mais mortal pandemia de todos os tempos.
Gás de cozinha e gasolina
Bem diferentes do arroz, são os combustíveis para veículos e o gás de botijão. Uma só empresa, a Petrobras, detém o poder de definir os preços a serem oferecidos aos distribuidores. Embora a empresa afirme que os preços são livres, uma importação equivalente a 5,31% (em 2020, segundo a ANP) do total comercializado de gasolina, por exemplo, não é capaz de influir no preço, restando ao importador apenas seguir os preços determinados pela Petrobras.
E aos milhões de consumidores só cabe pagar o preço estipulado ou não ter o produto. Contudo, mesmo que o consumidor consiga arranjar uma forma de viver sem gasolina e sem gás de cozinha, ele não escapará do impacto que o aumento dos combustíveis, pela via de maiores custos dos transportes, terá sobre todos os produtos. Praticamente tudo o que torna possível nossa existência urbana precisa ser transportado para nossa vizinhança.
Pois bem, em 10 dos últimos 12 meses, portanto de julho de 2020 a junho de 2021, o item denominado transportes foi o maior ou o segundo maior responsável pela inflação medida pelo IPCA. Segundo a Agência Nacional do Petróleo (ANP), o preço médio da gasolina em julho de 2020 ficou em 4,14 reais por litro e, um ano depois, em junho de 2021, tinha subido para 5,69, também em média para o mês e para todo o território nacional. Um acréscimo superior a 37%. O percentual de aumento da gasolina, no mesmo período e calculado pelo IBGE, foi de 42,21%.
O Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), em botijão de 13 kg, custava 69,96 reais em média, em julho de 2020, conforme a planilha da ANP e, um ano, depois era vendido da 87,43 reais, 18,8% de aumento. Os cálculos de IBGE apontam para um salto ainda maior de 24,25%, no mesmo período.
Dado que o dólar subiu em relação ao real e que o preço internacional do barril de petróleo também subiu, era inevitável que a Petrobras também fizesse o mesmo? Bem, essa questão merece uma resposta um pouco mais elaborada.
Houve uma mudança, em outubro de 2016, na política de preços adotada pela Petrobras. A empresa passou a adotar a chamada política de Preços de Paridade de Importação (PPI), em que os produtos da empresa são precificados de acordo com o preço do petróleo no mercado internacional e ajustado à paridade dólar-real. Essa é a razão da alta recente e da alta desde 2016.
A política adotada anteriormente levava em conta os custos de produção da Petrobras, que, em sua maior parte, são cotados em reais. A política anterior também visava reduzir a volatilidade de preços e, consequentemente, a inflação.
A Associação do Engenheiros da Petrobras (AEPET), em editorial, criticou fortemente a mudança:
“Em resumo, foram praticados preços mais altos que viabilizaram a importação por concorrentes. A estatal perdeu mercado e a ociosidade de suas refinarias chegou a um quarto da capacidade instalada. A exportação de petróleo cru disparou, enquanto a importação de derivados bateu recordes. (…)
Ganharam os produtores norte-americanos, os ‘traders’ multinacionais, os importadores e distribuidores de capital privado no Brasil. Perderam os consumidores brasileiros, a Petrobras, a União e os estados federados com os impactos recessivos e na arrecadação. Batizamos essa política de ‘America first!’, ‘os Estados Unidos primeiro!’.”
Os Engenheiros da Petrobras reconhecem excessos e erros na política praticada anteriormente, mas reforçam o papel da empresa estatal:
“Entendemos que uma empresa estatal pode, e deve ter outros objetivos, além de maximizar seus lucros no curto prazo, postura típica das multinacionais privadas controladas por agentes do sistema financeiro. O desenvolvimento e a segurança energética nacionais estão entre os objetivos típicos das estatais do setor.”
Em outras palavras, em tempos de pandemia, uma empresa estatal como a Petrobras, deveria prioritariamente trabalhar para aliviar o sofrimento de seus consumidores, especialmente daqueles de baixa renda. A Petrobras, ao contrário, dificultou enormemente o acesso dos brasileiros ao gás de botijão e aos combustíveis e contribuir fortemente para a disseminação da inflação por toda a economia.
O governo federal tinha diversas formas de aliviar a vida da população que lutava contra o vírus. No entanto, a medida tomada no arroz, de retirar impostos de importação, não teve qualquer efetividade. Do lado dos derivados de petróleo, o governo manteve a política preços que serviu de combustível para a inflação se espalhar por toda a economia. E cortou o auxílio emergencial pela metade.
Nota: As informações sobre o arroz foram extraídas das análises do Agromensal Cepea. O Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) é parte do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq), unidade da Universidade de São Paulo (USP), localizada em Piracicaba.
Principais altas em 12 meses em %
- Cereais, leguminosas e oleaginosas: 57,83
- Óleos e gorduras: 55,98
- Tubérculos, raízes e legumes: 31,62
- Carnes: 29,51
- Frutas: 27,09
- Hortaliças e verduras: 23,30
- Tv, som e informática: 18,62
- Joias e bijuterias: 17,92
- Carnes e peixes industrializados: 16,35
- Leites e derivados: 15,44
- Cama, mesa e banho: 14,29
- Combustíveis (domésticos): 13,38
- Aves e ovos: 13,26
- Enlatados e conservas: 13,16
- Consertos e manutenção: 10,34
- Açúcares e derivados: 10,15
Por César Locatelli – Associação Brasileira de Economista pela Democracia – São Paulo