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Nos falharam e nós falhamos

Com o assinalar dos 47 anos da independência de Angola no último 11 de novembro, se fechou o ciclo de aniversários independentistas com a mesma idade nas ex-colônias portuguesas em África. Tal como Angola, Moçambique (25 de junho), Cabo Verde (5 de julho) e São Tomé e Príncipe (12 de julho), esses países conquistaram as respectivas independências territoriais em 1975. A exceção é a Guiné-Bissau cuja independência foi unilateralmente declarada em 24 de setembro de 1973 pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).

 

Passado que está quase meio século das independências nos chamados PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), idade que em tempo histórico é quase nada, e vendo o atual panorama político, econômico e social desses países é inevitável questionar sobre o que falhou, quem falhou e porque falhou?

 

Ao fazer esses questionamentos temos que começar pelos libertadores. Foram homens e mulheres valentes que viveram o contexto e as contradições do seu tempo, com seus defeitos e virtudes como qualquer ser humano tem. Bem e/ou mal cumpriram a missão de nos conduzir à independência, mas nos falharam mesmo antes de nos fazerem acontecer como povos e países independentes.

 

Nos falharam com suas desunidades e guerrinhas fratricidas pelo poder na caminhada para a libertação, com maquinações fabricadas desde o início para diabolizar, desqualificar, eliminar adversários e mesmo correligionários que viam como ameaças às suas ambições de poder. Alguns fizeram tudo isso em conluio com o próprio colonizador e o assassinato de Amílcar Cabral, o pedagogo das nossas lutas de libertação, é o exemplo trágico mais sonante daquele período.

 

E, porque nos falharam mesmo antes de nos fazerem acontecer como povos e países livres e soberanos, também falhamos herdando suas falhas e continuando prisioneiros delas quando delas nos deveríamos desfazer guardando lições e optando por carregar em nós apenas o legado das suas bravuras e ensinamentos para, com ambas, nos inspirarmos e agirmos como sujeitos da nossa história e donos do nosso futuro.

 

Não o tendo feito, falhamos ao continuar ao replicar seus erros, a aceitar como normal a demonização do outro que é nosso irmão e ao enxergarmos no adversário um inimigo e não alguém com quem devemos aprender e crescer no debate de ideias. Falhamos porque, em alguns casos, continuamos a insistir numa visão monolítica de país. Não aprendemos, ou nos recusamos a aprender, que não há realidade sem diversidade e diversidade sem representatividade.

 

Falhamos quando, por um lado, aceitamos que a corrupção e a ostentação fossem normalizadas até com certo “glamour” enquanto que, por outro, plantamos em nós sementes de uma indiferença doentia, desumanizante, que ajuda a matar quando olhamos para a pobreza e a miséria dos nossos povos e nada fazemos. Falhamos ao não reconhecer que a vida é bem maior do que os nossos êxitos pessoais, do que uma casa bonita com piscina e batalhão de empregados, um carro de último modelo e topo de gama, restaurantes caros e luxuosos, roupas, sapatos relógios e jóias ostensivas e caras, festas, festins e férias chocantemente principescas enquanto muitos dos nossos não têm onde comer e dormir.

 

Falhamos porque nos preocupamos mais com as aparências nas fotos de perfil e menos em maximizar o nosso potencial, mais com os likes que recebemos do que propriamente em sermos livres, mais com o aspecto exterior da casa do que com os alicerces em que ela se assenta. Falhamos quando não nos indignamos e nos insurgimos contra o luxo que coabita lado a lado com a pobreza e a miséria, quando não reconhecemos que é vergonhoso ser desigual em países ricos de recursos naturais, à exceção de Cabo Verde, mas paupérrimos em recursos de competência, ética e humanidade na governação.

 

Falhamos ao não nos revoltarmos e insurgir de forma coletiva e firme quando o presidente do maior país e o mais naturalmente rico dos chamados PALOP, vivendo uma realidade paralela imaginada, “relativiza a fome” do seu povo e nega em conferência de imprensa que famílias angolanas estejam a emigrar em maior número para Portugal e outros destinos em busca de melhores condições de vida para si e para os seus. Por essas e por outras João Lourenço está, no mínimo, em dívida com pedidos de desculpa ao povo angolano.

 

Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, no país mano grande, emocionados assistimos há dias a um ex-presidente eleito, Lula da Silva, numa sublime manifestação de empatia, chorar com a fome do seu povo e dizendo não se sentir realizado no seu novo mandato enquanto houver brasileiros sem o direito de comer três vezes ao dia. Uma das formas de os racistas no Brasil agredirem seus compatriotas negros simpatizantes daquele que Obama chamou de “o cara” é mandarem-nos “gritar Lula lá na África.” Como seria bom a África ter um punhado de Lulas para por eles gritar!

 

Pan-africanismo engavetado

 

Falhamos quando não iniciamos o processo de descolonização do ensino no dia seguinte à proclamação das independências ao não colocarmos o pan-africanismo no centro das nossas atenções e ao agirmos como se fossemos uma África fora da África, tal como os colonizadores nos quiseram fazer crer. Falhamos ao não reconhecer a força das nossas culturas e de as usar como arma de combate, resistência, libertação e emancipação como teorizou Cabral.

 

Não deveria ser surpresa neste ano de quase meio século de independências conquistadas e em plena semana da comemoração do dia da África, termos assistido em Angola à absurdos como os de se proibir expressamente a fala de línguas nacionais em instituição pública de saúde no município de Soyo, província do Zaire, e de escolas de Luanda regulamentando no sentido de proibir o uso de cabelos “compridos, trançados e com cortes extravagantes”.

 

O irônico é a clínica se chamar “Sagrada Esperança”, nome do icônico livro de poesias de Agostinho Neto, o proclamador da independência do país, cujos poemas instam precisamente ao retorno às tradições como parte dos estágios de conscientização da luta e da esperança na vitória contra todas as formas de dominação colonial. Absurdos que não nos deveriam surpreender se estivéssemos desde o início atentos às nossas falhas individuais e coletivas.

 

Embora tenham divergido no melhor caminho a seguir, nossos libertadores foram todos, sem exceção, entusiastas do pan-africanismo, movimento assente no sonho de uma África unida como única via para a nossa emancipação e forma de sobreviveremos e nós defendermos da voracidade dos abutres externos e internos presentes no continente. Alguns, como Cabral e Mondlane, entre outros e outras, partiram prematuramente e sequer tiveram tempo de testemunhar as independências por que tanto se bateram dando a própria vida. Outros, como Neto e Machel, foram praticamente efêmeros como primeiros presidentes dos respectivos países, em contextos de guerra internas e contra o famigerado regime do apartheid sul-africano. Mesmo próximos da ideologia socialista marxista-leninista,

não tiveram tempo para nos conduzir de forma clara, comprometida e prioritária pela via de um pan-africanismo socialista de acordo com nossas realidades.

 

Os que os sucederam praticamente engavetaram o pan-africanismo ao sucumbirem ao assimilacionismo colonial que nos divide, hierarquiza e nos mantém, consciente ou inconscientemente, ao serviço do colonizador. Não nos educaram continuamente na perspectiva pan-africanista idealizada e assumida pelos libertadores. Caíram ou deixaram-se cair na lábia dos ex-colonizadores ao priorizarem organizações por estes idealizadas com o objetivo de nos manterem ad eternum sob suas tutelas e, com isso, dificultar ou mesmo impedir a realização de um ideal que no continente teve em Nkrumah e Nyerere os seus maiores expoentes.

 

Não nos educaram como se impunha no espírito pan-africanista, nos falharam e falhamos. Assim se explica que para o presidente da Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló, o Estado guineense seja em primeiro lugar da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e só depois de outras organizações e organismos internacionais como a CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental), organização da qual é o atual presidente.

 

Falhamos quando um país como São Tomé e Príncipe, de estonteante beleza cinematográfica e pródigo em outras riquezas naturais, tido como a “jóia do império” no início do século XX por ser um dos maiores produtores de cacau do mundo e, em consequência, a mais lucrativa colônia portuguesa à época, viva ainda hoje “dependente da generosidade internacional”, como disse seu finado presidente Evaristo Carvalho. Falhamos quando o mesmo país acaba de reeleger um ex-primeiro-ministro, Patrice Trovoada, que chefiou executivos são-tomenses em três ocasiões, a última das quais entre 2014 e 2018, passa tempo vivendo no exterior e só regressa ao país para disputar e vencer eleições, um case study.

 

Falhamos no pan-africanismo quando em Moçambique assistimos à situações trágicas como os conflitos armados em Cabo Delgado, isso não citar o esquecido conflito armado em Cabinda, Angola. Só uma enorme falha na educação pan-africanista explica porque em Cabo Verde ainda se vive uma ambiquidade, preconceito mesmo, da parte de significativa parte da população em ser e em se assumir como africana.

 

Falhamos no pan-africanismo quando ficamos passivos e a bater cabeças no muro de lamentações quando o atual presidente de Angola foi à capital do “antigo” colonizador falar mal do seu antecessor, José Eduardo dos Santos, e falhamos quando este, da geração dos libertadores, manchou sua biografia usando do seu poder para implantar e estruturar um regime autocrático, cleptorático e nepotista. Falhamos quando assistimos atônitos e envergonhados ao seu triste fim no Reino da Espanha, ele que governou como um monarca absoluto, e as disputas entre governo e familiares pela titularidade do seu corpo defunto.

 

Sim, colocamos milhões nas escolas e mandamos outros tantos milhares para formação no exterior, mas investimos realmente no potencial humano dos nossos povos no quadro de uma educação pan-africanista, afrocentrada, mas aberta ao mundo, de forma a nos desenvolvermos e nos modernizarmos sem perder nossas identidades como africanos? Qual a qualidade do nosso ensino e o que nele se ensina para nós sejamos nós mesmos? Quem educa os educadores mentalmente colonizados?

 

Falhamos quando temos mais doutores e engenheiros que durante todo o período colonial em várias áreas do saber científico e tecnológico mas não se conhece uma obra de engenharia que nos orgulhe feita com tecnologia de ponta nossa, desenvolvida por nossos engenheiros em nossos laboratórios e centros de pesquisas, se é que os temos. Nossos “cientistas” políticos e sociais, licenciados, mestres e doutores, sofrem da ridícula cultura do doutorismo herdada do colonizador da qual precisam se libertar urgentemente e, salvo exceções, na sua maioria publicam livros sobre livros. Não se investe na busca de saberes nossos direcionados para uma economia conhecimento e de desenvolvimento sustentável.

 

Não podemos continuar a falhar e, para que isso não aconteça, precisamos de repensar quem somos, de onde viemos e para onde queremos ir se quisermos evitar o abismo que começou a ser construído para nós mesmo antes de acontecermos. Nos falharam e nós falhamos, mas isso não significa que as independências foram um mal que nos aconteceu. Não, o mal que nos aconteceu foi a secular noite de trevas da escravidão e do colonialismo da qual só parcialmente nos libertamos. Esse parcela de libertação devemos aos que nos antecederam.

 

Em conclusão, esse não pretende ser um texto afropessimista mesmo porque coisas boas também aconteceram nesses quase cinquenta anos de nossas independências. A independência em si mesma é uma coisa muito boa que merece ser celebrada, não os seus males. Estamos apenas no início de uma árdua mas gloriosa jornada de reversão de cinco séculos de humilhação e, segundo Amos Wilson, de “falsificação de nossas consciências africanas”.

 

Temos o dever histórico de não continuar a falhar, de apoiar e incentivar novas gerações de belos e belas que estão aí aos trancos e barrancos remando contra a maré. Ainda vamos a tempo de corrigir erros do passado para que gerações vindouras e as que já chegaram não falhem também. Como disse um pensador são-tomense “Anima-me ainda poder contar com o Amanhã porque tive um Ontem de que não gostei.”

Foto de capa: Bandeiras dos chamados PALOP (PAÍSES AFRICANOS DE LÍNGUA OFICIAL PORTUGUESA).

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