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ÉTICA 01

Fabiana Cozza…

Fade in. Meses atrás. Folhas de um calendário com heróis da negritude vão caindo no chão dando a sensação de passagem de tempo reverso.

Breve introdução:

Um produtor alucinadamente, apaixonadamente recebe a raríssima notícia de patrocínio para seu espetáculo. Pula de alegria. Era muito menos do que ele queria. Mas a alma da criação regozija pela realização também. A idéia  será realizada, O Musical: “Dona  Ivone Lara – “Um Sorriso negro” “.

Confirma com os parceiros a primeira reunião da equipe. Pautas várias, uma delas: Quem será? Quem fará a Ivone Lara?

Pensam alguns nomes, citam Fabiana Cozza:

– Não temos dinheiro!

– Você é louco ela tem uma agenda muito grande nunca aceitará.

– Vamos ver com a…

Mas um entusiasta não desiste de sua ideia. Pega o contato, liga…

Fabiana Cozza, começa a se arrepiar ao saber que haverá um musical de sua cantora favorita, amiga, irmã e ídola.  Já compartilhou shows, fez tributos e homenagens. Quando ouve que querem ela para protagonista, nem pergunta o cachê, chora de alegria. Chuva de estrelas, Ivone Lara chora e canta no ceú! Seu canto abençoa a equipe e sentem a certeza que tudo dará certo.

Mas, produção é produção. A máxima que rege a profissão é “ou tudo da certo ou é produção”, ou “Se tudo fosse dar certo não precisava de produção”.

A arte; que sina, não se faz sem lágrimas. É um  copo de lágrimas de alegrias para dois copos de lágrimas de tristezas. Doce com salgado, sabor sangue e suor de quem quer ser e fazer, mas os  Deuses intervém sem dó nem piedade e colocam tudo em outro lugar. Quando tudo está certo, sempre tem um mas.

Ivone Lara

São Pedro: – Quanta gente lutando pela senhora heim?

Ivone: – Pois é.

São Pedro: – Muito amor. Mas como é esse negócio dessa preta não ser tão preta?

Ivone: – Você é branco, acho que não vai entender pedrinho.

São Pedro: – Ossos do ofício é compreender tudo aqui.

Ivone: – Amo, amo muito essa menina. Se eu pudesse agora dava para ela metade do céu e metade da terra, ela  merece. Mas ela esqueceu que por muitas portas que ela entrou eu nem pude passar. As catracas da cor no brasil são severas.

São Pedro: – Tudo por causa do tom? Não levam em conta, cultura, etnia e religião?

Ivone: – Mais ou menos. Levam tudo em conta. Quando é para pejorar enquanto mais  preto mais excluem.  Se você faz samba e é preto, um branco pode dizer que isso é “musica de bandido” e jamais ser punido. Tom Jobim e Vinicius de Moraes, podem dizer que são do samba, mas sempre dirão  que o que eles  fazem é Bossa Nova. Jamais chamarão eles de bandidos, porque são brancos, e ainda recebem e vendem mais que os sambistas que lhes inspiraram.

São Pedro: (confuso) – Eu quis dizer, compreender quase tudo.

Ivone: – É assim o branco pode tudo, pode dizer “que é o branco mais preto da Bahia” e que é “melhor ser alegre do que ser triste”  fazendo samba, mas ele não é o bandido fazendo samba; bandido é só o preto mesmo.

São Pedro fica um tanto quanto incomodado, chega Vinicius de Moraes.

Vinicius: – O Ivone, eu explico.  (encara São Pedro). Aliás eu disse que a vida era só uma também, e que eu só acreditaria em uma segunda vida com cartório e firma  reconhecida e assinatura de Deus. E olha só, aqui estou eu.

São Pedro: – Você achou que umbandista não vinha para o céu (riem os três).

Vinicius: – Eu ainda imaginava que uma caipirinha sob o sol carioca era mais parecido com o lado de baixo. E por vezes tinha essa preferência.

Ivone: – Fala Capitão do Mato, quer dizer que o samba é branco na poesia e negro no coração, é isso?

Vinicius: (Tosse) – Pedrão uma música eu não acabei, eu não fiz, ficou faltando, precisava fazer a canção pedindo 500 anos de desculpas, milhões de toneladas de ouro e diamantes de perdão.  Nós que somos brancos até quando queremos ajudar atrapalhamos. E quando não queremos atrapalhar, atrapalhamos mais ainda. Fizemos tudo errado. Mas é /era inveja Pedrão, o maior pecado do mundo. Mas como não invejar, tiramos tudo deles. Não São Pedro, não estou falando que tiramos a comida, a casa, as roupas e uns passaportes. Tiramos a alma para poder torturar, tiramos a fé, a religião, tiramos o nome e a nação, tiramos a língua e o passado, proibimos as tradições, exterminamos eles com as doenças, armas, chicotes, secamos e desertificamos um continente inteiro. E mesmo assim eles brilham na arte, no esporte, na ciência, no Direito e na engenharia. É só cansar de oprimir que um punhado em algum lugar desponta. Pede para Deus tirar os Brancos do Brasil estamos atrasando tudo por lá. Por favor!

São Pedro:  – E o que isso tem haver com a Fabiana Cozza.

Vinicius: – Quantas  vezes, eu fui infeliz em homenagear o “Mulato” e a “Mulata”, nós íamos colorindo e descolorindo para se aproximar da gente, ficar mais branco, de tão ruim que somos para ser bom tinha que parecer conosco. (gagueja, triste, soluça) Enquanto menos preto melhor era, o mais claro poderia ser da casa grande, o mais claro ainda era Capitão do Mato, até chefe da guarda, púnhamos irmão para matar irmão. (inconformado Vinicius chora arrependido).

São Pedro: – Então com o tempo vocês foram homeopaticamente distribuindo os privilégios, de forma que nunca ninguém se tornou pleno cidadão, mas uns mais que outros.

Ivone: – Sim, eles fizeram isso, e avisa esse chorão que ter culpa não tem lugar no CÉU, não pega bem. Ele precisa ser exaltado e dramático em tudo. A menina não precisava ter passado por isso pedrinho. Éramos muito ligadas, irmãs, e essa confusão toda a distraiu desse detalhe. Ela é preta, mas bem menos preta que eu. A fila anda mais devagar para as pretas retintas do que para as pretas claras. E as pessoas estão certas de ajudar a fila andar mais rápido. Mas lá na terra, mesmo certos agimos errados, e muitos agiram errado com ela.

NA SALA DE PRODUÇÃO:

O produtor já esqueceu aquela felicidade inicial.

Se culpa de tudo, e quase se arrepende de ter insistido no projeto, no nome dela, de ter chamado, sente o sal na língua das lágrimas da arte, deseja desistir e parar o espetáculo por um tempo.

A equipe não deixa a bola cair, por amizade, por honra, por compromisso e por que é o único cachê dos últimos  07 meses sem trabalho. Por tudo e mais um pouco a produção se apega a mais uma máxima “ O show não pode parar”, “Levanta, sacode a poeira e vamos dar a volta por cima”.

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Entre lágrimas  de alegrias e tristezas escrevo essa  crônica para o Jornal Empoderado, que pretende dar voz aos invisíveis, pretos, claros, escuros, retintos e médios complicando e descomplicando o complicado.

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BREVE REFLEXÃO

O Malabarismo da luta social para a ética ficar em riste.

O Colorismo nesse exato momento coloca todos nós em um mesmo lugar: no vácuo.

É preciso legitimar-se, e representatividade importa sim. Mas é preciso poupar os nossos.

No Brasil perdemos o limite entre a causa e o individuo, entre o ódio e o argumento, entre o sistema e as idiossincrasias de cada um.  As lutas se espremem de tal forma em tantas direções que flechas atingem o alvo errado. Quase nunca a intenção é a pessoa, mas aquilo que ela representa.

É possível respeitar Fabiana Cozza, como cantora e crer que ela faria um excelente papel. E ao mesmo tempo entender que mulheres gordas, negras retintas, quase nunca tem uma oportunidade de fazer uma protagonista, de fenótipo tão similar. Colocar  a humanidade  mais alto do que a arte. Entender que isso faz parte da evolução, da civilização, e que a arte é catalizadora desses processos civilizatórios e evolutivos materiais e anímicos.

Na corda bamba, ao exigir mais melanina da atriz, é preciso uma legião de acolhimento a Fabiana Cozza, pessoa querida impossível de não amar sem conhece-la, e mais impossível ainda  depois de conhece-la.

Em 1999, nada seria dito, seriam aplausos ensandecidos para negra clara. Hoje, os tempos são outros.  E quem luta por mais melanina pode também lutar pelo afeto a quem sempre foi companheira de luta.

CORAGEM

Assim de supetão escreve uma carta a mão, lê e o áudio manda para todo Brasil, sem revisor ou redator. Como é da natureza da artista, se despe, se expõe, se envolve e se entrega a opinião pública. Imperfeições, tem também, cada um de nós, algumas.  A Carta atraiu ainda mais hostilidade, mesmo tendo acatado o pedido dos reclamantes o linchamento virtual continuou, mas existiu tanto quanto o apoio virtual. Coragem é ouvir, e afazer a coisa certa conforme sua consciência.

ÉTICA 02

Será possível pouparmos os indivíduos de agressões e fitar a idéia, focar no objeto, na análise e no discurso? E cuidar do seu interlocutor com carinho mesmo que voraz e contrário as opiniões dele? Será que isso se chamaria Democracia Harmônica?

ÉTICA 03

É possível as lutas dos direitos civis existirem sem  empatia? Podemos chorar juntos e lutar juntos pelo mesmo objetivo com todo respeito?

ÉTICA 04

Pense você em uma luta sua pela negritude a vida toda, e um dia ser atacada, e deslegitimada como artista, como negra, querendo só fazer o bem ao homenagear uma amiga muito próxima.

É com essa dor profunda, que machuca os ossos, que arrepia a alma e congela a ponta da língua e com a mão trêmula que tem uma atitude ética, empática e cidadã de renunciar ao papel. Agredida e violentada, mas sabendo que a fila de todos devem sim andar mais  rápidas. E que se nós não contarmos conosco mesmo, ficará ainda mais difícil. Ela, então, se enche de PAZ na dor, e permite que a fila ande.

Ética é sim transformar privilégios em direito, mesmo que doa, é sim permitir que quem precisa mais tenha um pouco mais. Ética, não é lei, é humanidade extrema com o próximo, é compartilhar e multiplicar afeto. Demora, são  necessários processos de transformações. A consciência é mutável, o tempo é variável para cada um perceber certas coisas. Estamos todos nesse mesmo tempo e processo.

Sabemos que uma coisa é o mundo ideal onde todos podem tudo. Outra coisa é o real onde algumas mulheres negras nem mantém viva uma fagulha de desejo de ser amada para não se frustrar. A ausência de afeto. O excesso de vigilância sobre corpos negrxs mantém dispare as múltiplas realidades que andam lado a lado. A dor de ser suspeita, evitada, nunca assumida e nunca vista nessa sociedade seja em outdoor, parlamento ou nos contos de fada. Essa dor retinta da invisibilidade calada e solidão sempre em primeiro plano, nos faz ponderar também sobre o tom e volume em que insurge o grito por representatividade.

Quando duas dores se chocam, onde deveriam se curar, abre um novo paradoxo:

  1. Não precisávamos nos machucar para essa mudança acontecer, mas para isso, nós brasileiros precisamos treinar muito ser civilizadamente afetivos. Lembrando que essa cidade e país é sem afeto aos negros hoje e sempre.

Em solidariedade a Fabiana Cozza, agradeço pela sua existência na arte e coragem cidadã.

E que a nova Ivone Lara, seja uma atriz retinta, que honre a todos nós, num sútil tributo a Fabiana Cozza, nesse espetáculo que anseio por assistir

Outras matérias desse autor: 

A Malandragem na Arte de Anitta.

Queermuseu uma arte que a ‘não política’ não quer!

Amém, Justiça de Xangô, no TRF3 de SP

Trágedia Real da 4a Feira (TRF4)

NOTA

Não deixe de curtir nossas mídias sociais. Fortaleça a mídia negra e periférica

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Respostas de 6

  1. Sempre que alguém exagera no argumento, acaba prejudicando a causa. Isso é certeiro. O sujeito destila um varal de ideias que, ao chegar no 3 item, se percebe um distanciamento do assunto principal.

    Não percebe o sujeito que para a defesa de qualquer tese, um estudo e raciocínio profundo é necessário, é fundamental. Alguns de alguns movimentos já saíram na frente e decretaram: Ela é branca! Ela é pouco preta! Ela não é preta! Ela….

    Soube que a moça causou felicidade na família da homenageada, por diversas vezes. Ao ser indicada para tal homenagem, a felicidade foi até maior! Artista habitué das canções de Dona Ivone, também ficou homenageada com a lembrança de seu talento para tal empreitada.

    Imagino que deve ter sido na mesma proporção de sua tristeza ao ver o que dizem os “movimentos” sobre o ocorrido.

    Deu no que deu!

    Exageraram a argumentação e perderam-se na causa.

    Nossa escravidão é um machucado exposto! Todo machucado tem que evoluir para a cura, e se não possível for, para uma cicatriz. A cicatriz serve como uma lembrança para não tornar a praticar o ato danoso.

    Mas não! De um lado ou de outro os que querem ajudar atrapalham e os que não fazem nada, por sua omissão atrapalham mais ainda!

    Lutaremos essa luta por muito mais tempo! A chance de vitória que desemboque em mais oportunidades necessitará de um convencimento de muitos. Alguns desses estão do outro lado da corda! Mas o “fogo amigo” sempre ronda qualquer luta!

    Max, parabéns pelo seu texto!

  2. Torço para que um dia não tenhamos mais esses tipos de discussões, mas não posso negar q são necessárias… O racismo no Brasil é complexo e compreendo que um dos mecanismos mais perversos de dominação é jistamente dividir.

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