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Mulheres podem construir suas casas?!

Não fui criada como uma princesinha padrão. Brincava de bonecas, panelinhas, casinha, mas também jogava futebol, brincava de carrinho, Poli (que era um Lego brasileiro sem bonecos) e ajudava meu pai no seu hobby de marcenaria. Ainda assim, construir era uma coisa absolutamente distante e misteriosa para mim e absolutamente só possível aos homens.

Uma das minhas grandes frustrações era a incapacidade de ampliar a pequena casa que eu morava com meus dois filhos e uma amiga ajudante, depois de me separar. Me dava raiva não ter dinheiro para pagar um pedreiro e por isso não poder ter dois quartos na casinha.

O tempo passou, me casei novamente, tive mais dois filhos, eles cresceram, já são todos adultos. Começamos a sonhar com um lugar calmo, onde pudéssemos morar. Conhecemos a Permacultura, nos apaixonamos pela bioconstrução e, ano passado, realizamos o sonho de comprar um sítio. Finalmente colocamos a mão na massa e eu me surpreendi com a minha capacidade de construir. Foi uma sensação de empoderamento, força, liberdade e satisfação que mal consigo descrever. A cada contato com a bioconstrução no nosso sítio ou em mutirões e cursos, com mulheres bioconstrutoras, esses sentimentos cresciam. Descobri que é possível ser uma mulher que construa sua casa e de outres.

Mulheres na bioconstrução

O movimento da bioconstrução tem inúmeros exemplos de mulheres construtoras. Esse texto vai mostrar a perspectiva de algumas delas.

Paula Peret é arquiteta e bioconstrutora. Ela descobriu a bioconstrução ainda quando cursava a graduação de arquitetura, em 2008, quando fez um curso de ecoconstrução no IPEMA com o Marcelo Bueno1.

Paula diz que a bioconstrução mudou sua vida e impediu que desistisse do curso de arquitetura por causa do tamanho impacto negativo das cidades. “Quando descobri a bioconstrução, eu percebi que havia uma forma mais inteligente e harmônica de construir. Isso me deu esperanças de que o meu futuro trabalho pudesse contribuir de forma positiva na nossa forma de ocupar o mundo, minimizando o impacto e criando uma interação mais inteligente com o meio ambiente”.

Ainda na faculdade ela começou a mudar seu jeito de pensar, agir, comer e ser. Empolgada com a novidade levou o assunto para o grupo de pesquisa do qual participava, para os projetos acadêmicos e construiu sua própria casa. “Hoje divulgo o poder da bioconstrução, faço projetos e executo obras para outras pessoas que tenham interesse nessa transformação. Bioconstrução é um estilo de vida!”, afirma a arquiteta.

Paula gosta de trabalhar com tijolo de adobe, com estruturas de madeira de demolição, contudo ressalta que cada lugar tem um clima e uma peculiaridade que influencia na escolha da técnica. Para o cerrado de Minas Gerais, ela considera o tijolo de adobe uma técnica muito adequada. A arquiteta também gosta da taipa de mão (ou pau-a-pique) e já executou projetos de terra ensacada. “O tijolo de adobe é bem conhecido aqui na região, a forma de construção das paredes é de fácil compreensão e tem muitas vantagens comparado a outras técnicas. Ele pode ser transportado porque aceita bem o processo de desmontabilidade, ou seja, você consegue demolir aproveitando todo o material e remontar a construção em outro lugar”, explica Paula.

Para a arquiteta bioconstruir é “uma forma de construir saudável, integrada a natureza, que respeita o meio ambiente, e usa os recursos de forma inteligente, e é um resgate da relação em comunidade e da autonomia construtiva”.

 

Cecília Prompt, tem 43 anos, soube da bioconstrução através do movimento estudantil em 2001, em um momento inicial da discussão a respeito de questões ambientais na arquitetura. Foi no IPEP (ou IPEC?) que teve seu primeiro contato com a permacultura e bioconstrução , no mesmo ano. “A sensação foi de alegria e realização para uma jovem estudante. Encontrei meu caminho”. As oportunidades de trabalho com bioconstrução começaram a surgir desde sua formatura.

Cecília gosta de trabalhar com terra ensacada (super ou hiperadobe), taipa de mão e telhado verde, mas vem aplicando cada vez mais o BTC por uma questão comercial.

Para a arquiteta bioconstrução é “minha escolha profissional e missão de vida há quase 20 anos, continuo confiante de que é o caminho certo”.

 

 

 

Tathy Yazigi, 37 anos, é artista, bioconstrutora, terapeuta e educadora do movimento. Seu contato com a bioconstrução aconteceu na construção de sua casa. A sensação foi de algo que conhecido, orgânico. “Algo que eu já sabia, um conhecimento muito natural. Sentir que é potente construir em terra, poder tocar as partículas de toda a casa!”

Para Tathy, falar de bioconstrução evoca muitas analogias, “mas construir em terra, é construir estruturas vivas, assim como nossos corpos. Sua manutenção é algo para se pensar… manter/cuidar da casa/corpo para que tenhamos saúde. Bioconstruir é sustentabilidade da vida, proteção, luta, resgate”.

Como artista, Cob é sua técnica preferida, porque permite explorar formas livremente, de uma maneira mais orgânica e criativ

 

 

Vika Martins tem 50 anos e é arquiteta, bioconstrutora, permacultora, geobióloga e terapeuta de saberes femininos. Ela se formou em PDC, foi voluntária e monitora de bioconstrução e Permacultura no IPEP2 (Instituto de Permacultura da Pampa – Escola Rama de Permacultura) e depois em movimentos sociais, antes mesmo de se formar arquiteta. Está envolvida com a Permacultura e Bioconstrução há mais de 20 anos.

Filha de agricultores, nos primeiros anos de vida morou em uma casa de madeira na zona rural, que não tinha banheiro, nem luz, “foi meu pai que resolveu tudo”. A arquiteta e bioconstrutora lembra que “na faculdade de arquitetura já sonhava em uma forma de fazer Arquitetura que gerasse autonomia, especialmente para famílias rurais como a minha. Quando descobri a permacultura e a bioconstrução entendi que o que eu sonhava era possível. Com o tempo, entendi que era uma resposta para os centros urbanos também. Sou muito grata!”

Para Vika bioconstrução é mais do que uma escolha por técnicas sustentáveis, “trabalhar com sustentabilidade é pensar nas pessoas, no significado que o espaço tem para elas, nos espaços de encontro, no fortalecimento de comunidades saudáveis”. A partir desta perspectiva ela sublinha que é preciso perceber a paisagem conectada a nós – seres humanos – de forma sistêmica. “Há anos desenvolvo projetos e obras buscam construir, não só edificações, mas saúde, bem-estar e relações humanas potentes. A bioconstrução é uma forma poderosa de tornar isso tudo em realidade”.

Como bioconstrutora acredita que a melhor técnica é a que atende as peculiaridades de cada projeto, incluindo os desejos de quem vai usar o espaço, a natureza, os condicionantes e os materiais disponíveis, “só assim conseguimos chegar a soluções mais sustentáveis e humanizadas”. Sem considerar o contexto, considera o pau-a-pique e o COB mais práticos, “gosto muito também das paredes de fardo de palha. Mas todas as técnicas tem seus encantos!”

Vika defende que a bioconstrução é uma ferramenta que fomenta a autonomia e o protagonismo, um forma de construir um mundo mais sustentável, baseado em colaboração, afeto e reconexão entre as pessoas e a natureza. “Mas para isso é importante que sua prática faça parte de um movimento que defenda essas causas, é preciso ter cuidado para não tratar apenas como técnicas construtivas. É necessário ter a consciência que são oriundas de saberes ancestrais, lembrar que bebemos na fonte da sabedoria popular e da estética dos povos do mundo. Honrar a história daqueles que nós inspiram”.

A experiência feminina

Perguntei a estas bioconstrutoras como elas enxergavam a vivência das mulheres na bioconstrução e o que explica o grande volume de mulheres bioconstrutoras. Paula Peret considera que existe um papel muito importante das mulheres na bioconstrução de resgatar o poder do coletivo, da união faz a força. “O processo colaborativo se perdeu muito com a industrialização e comercialização dos processos construtivos, gerando uma forma exploratória e competitiva que acaba coma saúde dos trabalhadores. As mulheres juntas prezam pela saúde uma das outras, valorizam a colaboração ao invés da competição. A bioconstrução é uma oportunidade de construção saudável (física, metal e espiritual) em todas as etapas da construção. Percebo nas mulheres um olhar holístico para bioconstrução. Acredito que as mulheres prezam muito pela saúde integral, e a bioconstrução é uma grande ferramenta para gerar bem estar, e mais saúde na nossa forma de viver e ocupar o planeta”.

Cecília Prompt se diz cada vez mais impressiona com a capacidade técnica das mulheres. “Talvez as mulheres sejam motivadas a buscar um futuro melhor. Atribuo a presença das mulheres, também, ao fato dessa forma de construir estar vinculada à formas mais inclusivas em grupos sociais”.

Para Tathy Yazigi é “uma rede poderosa de mulheres fazendo o que tem que ser feito, resgatando e distribuindo saberes ancestrais, fazendo rede de apoio em relação às técnicas e rede de possíveis trabalhos. Um saber que nos foi retirado nos processos patriarcais de capitalização e industrialização, então nada mais natural que nós fazermos essa retomada. Além da não toxicidade dos materiais que faz o trabalho mais possível”.

Segundo a arquiteta Vika, os canteiros de obras com mulheres são alegres, organizados, colaborativos e o resultado final do trabalho maravilhoso. “É um exemplo para novas formas de relação de trabalho, em um primeiro olhar, mas eu enxergo que vai além, vejo um fortalecimento das redes de apoio entre mulheres, muitas mães trabalham com seus filhos por perto, elas se ajudam no maternar, compartilham experiências de vida, se veem, se escutam e sonham juntas. Eu vejo uma recuperação e um fortalecimento dos círculos femininos que historicamente empoderaram mulheres para a vida. Para bioconstruir precisamos dos recursos naturais, a terra, as madeiras, as fibras vegetais, bambu… tudo vem dela, da Mãe Terra, símbolo de fertilidade e nutrição. A bioconstrução reverbera nas mulheres, fortalece o feminino, fortalece os círculos de mulheres, amplia o senso de cooperação entre os humanos. Mulheres são tão produtivas quanto homens, isso é claro, mas o grande diferencial é que o feminino carrega os atributos que o nosso mundo precisa para evoluir. É uma microrrevolução, pequenos pontos de luz espalhados pelo mundo, como o trabalho das formiguinhas.

A Coletiva

As quatro bioconstrutoras fazem parte da coletiva feminista “Mulheres na Bioconstrução”, que hoje conta com cerca de 400 mulheres. Para elas este é um espaço de apoio, trocas, auxílios técnicos, suporte, acolhimento, união, aprendizado, inspiração e fonte de parcerias e sociedades. Segundo descrição da página, a coletiva tem por objetivo “o fortalecimento e divulgação de trabalhos e ações de mulheres na bioconstrução em suas mais diversas vertentes”.

O intuito também é unir e incentivar mulheres cujos trabalhos e ações fortalecem e multiplicam o uso de técnicas milenares e contemporâneas de bioconstrução, discutindo o papel da mulher na sociedade. Na coletiva elas formam parcerias, trocam informações e experiências, unem trabalhos e sonhos e empoderam comunidades. Juntas formam uma rede de mulheres envoltas na criação sustentável e no cuidado com o meio ambiente e com as relações.

Além da coletiva, existem muitas mulheres atuando na área de permacultura e bioconstrução e dividindo seus saberes com outras pessoas. Como mulher me sinto feliz de ver a sensibilidade e consciência feminina fazendo diferença nas construções e nos flashes de luz espalhados pelo mundo, como disse Vika.

Que esse seja um espaço de libertação e empoderamento do feminino.

 

Obs: Nos links você encontra as páginas das arquitetas e da Coletiva.

1Marcelo Bueno é arquiteto, permacultor e criador do Instituto de Permacultura Ecovilas da Mata Atlântica em Ubatuba, SP. https://www.moradaviva.com.br/

2https://www.ipep.org.br/

 

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