Sem nhenhenhém, permaneço submersa, revisito e cito o verso musicado metaforicamente por Antônio Carlos Santos de Freitas, popularmente conhecido como Carlinhos Brown: “O Brasil não é só verde, anil e amarelo, o Brasil também é cor de rosa e carvão”.
Já estamos há 22 anos no século 21 e o medo do genocídio não arreda pé. Presa em uma teia musical, estética e social, acumulo e repercuto não apenas dolorosas memórias diaspóricas, mas pele sobreposta a pele, memórias vestíveis que geram identidade e inspiram a moda a pensar o oposto, o avesso, o contrário.
A identidade negra é resgatada e ressignificada, para além do ato de “tornar-se militante”, “criar uma guerrilha”, “formar uma geração tombamento”, mas de se encontrar enquanto sujeito histórico. Aceite o conselho de Lelê Teles – ocupa-te, primeiro, do teu espaço interior, preencha os teus vazios conceituais, quilombize-se.
O medo tornou-se uma das mais eficazes armas invisíveis e a coragem é seu mais poderoso antídoto. Não existe uma definição unívoca de coragem, verdade seja dita, mas é vista como indispensável ao ato de pensar e tornar-se negro para além do reflexo no espelho. Afinal, no espelho do branco, o negro é um vampiro, sua imagem simplesmente não aparece. Cito Machado de Assis, O ESPELHO: “cada criatura humana traz duas almas consigo; uma que olha de dentro pra fora, outra que olha de fora pra dentro.”
ACUMULÔ é o nome desta matéria inspirada nas periféricas maneiras de vestir e no fashion filme Acumulô, curta-metragem de Matheus Dias, produzido por artistas pretos nordestinos LGBTQIAP+. Ambos entregam sentimentos e referências para a moda do futuro e de agora: preta, ancestral, consciente e responsável. Cito Lele Teles, que diz, ” Entenda, cara gente preta, não basta vestir a filha de princesa Elsa, é necessário vesti-la de rainha nzinga”.
Insisto em reelaborar meios e modos de ser negro, preto ou ainda chamizos, pardos, cambujos, morenos, criollos, zambos, barcinos, castizos, morochos, zambaigos, cholos etc. Que não achamo-nos diferentes entre nós, eles nos veem como iguais, porque a discriminação que sofremos é a mesma.
Elejo o corpo negro e periférico como enunciador e anunciador, em primeira pessoa, através da sua indumentária; seu futuro é inteiro e não mais fragmentado, como um pedaço de pizza. A moda periférica afasta-o da metáfora corpo-rascunho, que é preciso melhorar a todo o instante. Nunca existiu troca, uma troca de mão única é entrega, é rendição; não é kula, não é escambo.
De forma condescendente, a moda periférica estabelece relações afrodiaspóricas que estão em movimento e geram movimento, contando outras narrativas através destes corpos. Emprego o conceito de diáspora, no que tange os deslocamentos e trânsitos de CEPs, um lugar de efervescência cultural, onde a todo momento criam-se modos de fazer moda.
Precisamos entender a relação entre significante, significado e signo. No caso temos a moda periférica (significante), que produz um significado (afrofuturismo, geração tombamento, ancestralidade, identidade). A combinação destes dois produz o signo, ou seja a mensagem: A roupa é nossa interface com o mundo, memória, território e ancestralidade.
Quem conta essa história é Willian Andre Alves Carvalho dos Santos, designer, educador, produtor cultural e afroempreendedor. Morador do bairro de Perus, na zona noroeste de São Paulo, criado a partir da instalação de uma fábrica de cimento que levava o mesmo nome. Lá, ele desenvolveu sua marca e o Coletivo ‘Afronte Empodere-se’, que promove moda, política e arte através de intervenções e desfiles.
Will, criador da marca Afroperifa, lançou coleções exclusivas para crianças e pessoas LGBTQIAPN+, abordando também a inclusão e a diversidade no bairro e em todo o País. Realizou intercâmbio para a concepção de coleções com artistas da África do Sul, além de ações, sprints e desenvolvimento de produtos com marcas como Vult, O Boticário e C&A, ministrou em Agosto, no Espaço Sebrae no Trakto Show, Centro Cultural e de Exposições Ruth Cardoso, em Maceió, a palestra ‘Empreendedorismo na Quebrada’. Atuando, ainda, com produtos no metaverso.
Jornal Empoderado (JE): Que leitura você faz da Moda periférica e do corpo periférico?
A Moda periférica, assim como a Moda é um comportamento, uma cultura de um certo local. Reconhecer que a periferia gera cultura, uma cultura enraizada, e que ao valorizar a quebrada, a periferia começamos a vestir este local, eis a Moda Periférica. Que influenciada pelo samba, o pagode e o funk ostenta a construção de estilos e a invenção de linguagens próprias. Já o corpo periférico, é um corpo marginalizado, preto, LGBTQIA+, enfim todos os corpos que sofrem violência de um sistema machista, racista, de classe e segregador.
Jornal Empoderado (JE): O corpo periférico se materializa na personificação de alguém que naturalmente tem sua centralidade lida como marginalizada e a moda periférica como se materializa?
Materializa-se a partir do momento em que este corpo, violentado e marginalizado, empodera-se e assume sua identidade, através de um estilo, lido como Moda periférica.
Jornal Empoderado (JE): A tomada de consciência do “tornar-se negro” se dá em muitos casos através das vestimenta, desencadeando narrativas de como passaram a se entender enquanto sujeitos negros. Como essa tomada de consciência está implícita ao vestir o corpo periférico?
Tornar-se negro através da moda, esta para além de vestir Jordan, Nike e Adidas como muitos acreditavam e acreditam. Aqui em Perus, ao desenvolver um trabalho com o coletivo AFRONTE EMPODERE-SE, entendemos o que é ser negro dentro da sociedade e a construção a partir da militância, do ativismo, da politica, dentro da estética e da moda. Tornar-se negro, dentro deste coletivo, foi perceber que a identidade e a ancestralidade, representa luta, liberdade, reconhecer nossos direitos e empoderamento.
Jornal Empoderado (JE): Ao vestir o corpo periférico, a Afroperifa é inserida no contexto de moda ativista e se torna uma iniciativa de democratizar a moda?
Sim, a partir do momento em que se trabalha dentro da periferia e vestir os corpos periféricos nos tornamos uma moda ativista, democratizando e ressignificando a moda para além do consumo, através da moda política que traz o empoderamento e a identidade do povo preto e periférico.
Jornal Empoderado (JE): O princípio africano UBUNTU, “EU SOU O QUE SOU PORQUE VOCÊ É”, reforça a necessidade de estabelecer conexões e parcerias. Como você estabelece essas conexões e parcerias junto a Afroperifa?
Trago essa conexão com os meus. Onde o mercado enxerga, concorrentes, enxergo colaborador. Onde contribuí com meu crescimento e da Afroperifa. De modo que os lugares de destaque e os voos, não são conquistas do Will ou a Afroperifa e sim, da galera que consome, acredita, que fazer parte desta perspectiva e ideal.
Jornal Empoderado (JE): A diversidade racial na moda brasileira depende de grifes jovens, em 2018 o estilista Luiz Claudio utilizou do seu poder para levar um casting 100% negro na sua coleção “Medo da cor” ao SPFW. Qual sua visão para driblar o binômio entre corpos negros e não negros, os “de dentro” e os “de fora”, baseados na mistura de CEPs ?
O ponto de partida é o conceito de minoria e maioria, a SPFW é um lugar de destaque na qual somos a minoria dentro da maioria, no qual podemos ocupar, mas não nos prender. Podemos e devemos criar nosso próprio espaço. Temos potencial para criar a NOSSA FASHION WEEK e mostrar as tendências dentro das nossas quebradas. Promovendo o caminho inverso, “eles” virem até “nós” ao invés de irmos até eles.
Jornal Empoderado (JE): A parceria entre o projeto SANKOFA e a SPFW nasceu com prazo de validade, expirou em Abril deste ano (três temporadas: Abril e Outubro de 2021 e Abril de 2022). SANKOFA é uma iniciativa do movimento Pretos na Moda e da startup de inovação social Vetor Afro Indígena na Moda (VAMO), contemplou oito marcas para desfilar na 52ª edição.
Apesar da população brasileira ser 54% negra, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quando o assunto é representatividade, seja na moda ou em outras áreas, o cenário muda, e se apresenta majoritariamente branco.
Jornal Empoderado (JE): Para além da paridade racial (cota racial na SPFW), como você contesta à uniformização de padrões estéticos observada na indústria da moda ao longo de décadas, seja de beleza, gênero ou cor?
Perceba, que precisou de cota e de projeto para que corpos negros adentrassem, sendo que vivemos em um país majoritariamente negro. A SPFW é um ambiente notoriamente elitista e segregador. Não concordo com a necessidade de existir projetos para que ocorra a inserção de corpos negros na Moda. Defendo meu território e muitos questionam – “você só fala de Perus, do seu território”, acredito que a partir daqui iremos ganhar o mundo.
Perus tem diversas problemáticas como qualquer outro território. Só que lá, o pessoal diz que somos diferentes na questão da organização cultural do bairro. Com o coletivo, construímos uma nova narrativa, discutindo questões sociais e a nossa identidade negra, o dia a dia do negro e das pessoas da periferia.
Jornal Empoderado (JE): Como a marca Afroperifa abarca os jovens entrantes no consumo, que querem se identificar não apenas com o estilo da roupa, mas também com as bandeiras que ela carrega consigo?
Abarcamos mostrando nos reels e stories (instagram) a realidade da marca, do Will, da Dalva (costureira), de todos que participam do processo com o intuito de humanizar. Não somos uma fábrica, não há robôs, e sim, pessoas que dormem, acordam e que possuem limites. Mostrar essa humanização foi um divisor de águas para que os consumidores se enxergassem e se identificassem com a Afroperifa.
Trabalhamos o impacto sócio econômico há 5 anos, entendendo porque esse jovem compra da Afroperifa e não de outra marca em ascensão, mostrar de onde vem a peça, criar uma identidade e fazer com que ele tenha orgulho de carregar a bandeira da moda periférica do seu bairro, de um estilista preto. Abrimos as portas para que possam embarcar conosco nessa construção.
Hoje, muitos perguntam: como faço para ser modelo, para consumir, estar dentro do projeto e de que modo posso ajudar. Deste modo engajamos profissionais do próprio bairro, entre eles, costureiras, fotógrafas, designers, artistas e modelos.
JE: Sendo o afrofuturismo um divisor de águas, onde a história é contada e tão somente por meio do intelecto e voz do povo preto. De que maneira a Afroperifa conta sua história através da releitura ancestral?
Afroturismo, é nossa base de trabalho, onde o negro no futuro domina a tecnologia sem perde a raiz ancestral. Hoje mostramos o negro dominando a cena , a Moda, de modo que adentramos no mundo do METAVERSO. Em Julho, lançamos um tênis no metaverso, que traz uma releitura da coleção da Afroperifa e da C&A. Projeto do Contaí (evento que reuniu empreendedores LGBTQIAP+) e da Nhaí ( empresa de tecnologia focada em inovação com diversidade dentro das marcas e empresas, fundada por Raquel Virgínia), na primeira loja do Shopping LGBTQIAP+.
Shopping com o nome de Marsha Shopping, em homenagem a Marsha P. Johnson, mulher trans e ativista americana pela libertação LGBTQIAP+. Apoiado pelo laboratório de novas realidades (NRLab), espaço de desenvolvimento criativo em Web3 e metaversos culturais do Centro de Inovação State junto com a BRIFW.
O Jornal Empoderado na primeira edição da EXPO FAVELA, acompanhou uma roda de conversa abordando o “AFROEMPREENDEDORISMO NA QUEBRADA – A moda é estética como processo de resistência do povo preto e periférico “. Como você elucida o cenário afroempreendedorismo na quebrada? Partindo do princípio de que afroempreendedor visa o empreendedor negro que resgata e enaltece através dos seus produtos a ancestralidade e a cultura negra e o empreendedor afro comercializa produtos que não possuem ligação com a cultura negra.
A Afroperifa trabalha a economia criativa, conceito que desenvolvi em meu TCC da pós graduação (Cidades, Planejamento Urbano e Participação Popular / Unifesp), de dentro para dentro e incentiva o afroempreendedorismo e o consumo de produtos de negócios periféricos. Assim, o público alvo são as próprias pessoas que moram no território (onde a marca nasceu) e nas proximidades.
Assim como o curta metragem de Matheus Dias, ACUMULÔ, a marca AFROPERIFA, (re)afirma que a (r)evolução tem cor, é preta e periférica.