No Brasil não tínhamos George Floyd. Tínhamos Agatha, João Pedro, Marcos Vinicius, Cleiton, Carlos, Roberto, Wesley, Wilton e tantos outros, onde dialogar sobre o racismo com meus filhos tornou-se inevitável, resultando num processo de juntar as memórias fragmentadas. Memórias fragmentadas, por que no caso da minha e de muitas outras famílias negras, a escravidão propiciou uma fragmentação das memórias. Neste diálogo, minhas memórias não começam com o tráfico, a escravidão e a colonização.
Sem uma memória histórica, nós seríamos autômatos, zumbis, sem ponto de partida nem de chegada, zanzando sem saber o que esperar. E dentro deste contexto de resgate, trago seu olhar para moda de maneira a reconstruir e constituir histórias, começando pelo ato de bordar aleatoriamente alguns pontos.
Sou articuladora de um movimento que questiona o consumismo e nesta quarentena, tenho feito inúmeras postagens no instagram da Silva & Silva Luluzinha Boutique (@fabianasilva9536) que falam da necessidade, importância e a mudança de como consumir. Trabalho o desapego, através do slogam: VISTA ROUPAS QUE CONTAM HISTÓRIAS, de modo que novas protagonistas deem continuidade as memórias, tecendo uma teia e contribuindo com o ciclo de vida das roupas.
Ali, incentivo abrir o armário para fazer uma “limpa”, ciente de que inúmeras questões nascem no processo de eleger quais as peças serão desapegadas. Separá-las, pode se tornar um processo doloroso, quando atribuímos sentimentos. Ouço com frequência, que encontros como este são adiados, pelo fato das peça que lá estão carregam histórias e memórias.
Questões que vão além da análise inicial sobre o estado do tecido, a estampa, o caimento, ou se há formas de customizar a peça, à origem dela e às lembranças que nos traz. As roupas estão em todos os momentos, elas fazem parte da nossa história e nelas depositamos memórias. A forma de acesso a roupa, sejam feitas em casa, pelos familiares, ou humildes costureiras, ou compradas em grandes casas da alta costura, são objetos de memória.
Neste emparelhamento de histórias, onde mulheres negras aprendem o oficio da costura e desenvolvem “modos e moda” de vestir, recordo a fórmula de ouro que encerrou a SPFW 43 (2017): Raízes, memória afetiva, samba e Dona Jacira. Os bordados de Dona Jacira, a mãe de Leandro (ou Emicida, se preferir) e de Evandro, tem uma narrativa que ela conta. Emicida ressalta, “Minha mãe só sabe bordar se tiver uma história pra contar”. Entre as personagens da história, estava Nzinga, rainha africana do século XVII e ícone de resistência da história de Angola, na jaqueta confeccionada por sua mãe. Emicida, completa, “…cada vez que a gente reconta a história sobre as nossas raízes, a gente ajuda as pessoas a darem um passo em direção à sua ancestralidade”.
A narrativa de mulheres negras na construção das memórias, revela a ancestralidade e se projeta no presente e prepara o futuro. E no mês em que celebramos o dia Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, o Programa Sobre Tudo (@sobretudo.programa), propõe reflexões tendo como base a moda. Partindo das narrativas e vivências de Cris Marques, @crismbadu, (design de moda, modelo e criadora de conteúdo de moda); Maiwsi Ayana, @maiwsi, (multiartista, estilista, stylist, produtora de moda e diretora de arte); Nayara Reis, @sovemquemcurte, (designer, stylist e produtora de moda com bacharel em negócios na moda) e Joyce Carolina, @joycaroll, (modelo, bailarina, influencer, atriz, bailarina e passista), cria-se uma trama, dando voz as roupas.
Dia 31/07 as 20:00 na live: MEMÓRIAS COLETIVAS do programa Sobre Tudo através do Facebook da produtora musical e cultural DJEMBÊ, @djembeproduções. Link: https://www.facebook.com/2344141708981141/live/.
É comum durante nossas vidas acumularmos peças que remetam pessoas e momentos, peças de roupas que muitas vezes ultrapassam gerações familiares, que mesmo perdendo sua utilidade inicial, são guardadas com afeição. Tenho algumas peças, não mais que 5, que não desapego e mantenho uma memória afetiva, memória esta, que emerge em momentos de reflexão sobre cada peça.
No capítulo intitulado O fetichismo da mercadoria: seu segredo, Marx (1971) descreve uma “relação entre coisas” e o “caráter místico” dos objetos. “O fetichismo é o ato de investir os objetos de significados que não lhes são inerentes” (DENIS, 1998). A prática de doar roupas para os menos favorecidos ou para outros membros da família, por exemplo, é indicativa do valor intrínseco que se dá ao material têxtil; entretanto, quando guardamos roupas antigas, estamos apegados ao seu valor simbólico. Quando a bainha de uma é roupa é alterada ou uma manga é cortada, é possível inferir um desejo da usuária de atualizar a silhueta da roupa. Mesmo a mais simples modificação sinaliza um desejo de reaproveitamento, resultando em um prolongamento da vida do artefato, evitando, assim, seu descarte. Até mesmo uma roupa que – por não servir mais, ou por não mais agradar esteticamente – é desfeita completamente, cedendo sua matéria-prima para outra peça, por exemplo, para uma almofada, mostra um “reuso pragmático da vestimenta” (CUMMING, 2004).
Cada peça de vestimenta contém uma infinidade de saberes, quando ouvimos, conhecemos e consumismos ancestralidade através dos panos que cobrem nossos corpos, resgatamos nossas memórias coletivas. Este resgate nos leva a um dialogo sobre resistência, ancestralidade, valorização das vidas negras tendo como base a moda. Os conteúdos que se multiplicam nessas falas, sejam elas ditas ou não, são as produções dessa memória do vestir.
Histórias narradas que ao final são tão nossas, por serem compartilhadas e transmitidas de geração em geração, tradição oral, constituindo o que chamamos de memória coletiva. Esta ao ser compartilhada por cada geração, essa memória, pode ser distorcida e adaptada às pretensões do presente. É bastante comum existir entre as famílias roupas que são herdadas a cada geração, peças que depositamos afeto e emoções.
Sabemos também que, quanto melhor uma história é contada, mais forte tende a ser sua lembrança, mais valor damos a ela. Estamos sempre remendando, contando histórias e nos apropriando das histórias e memórias confidenciadas, atreladas a peça de roupa. Não há duvida de que as elas adornam os corpos e moldam identidades, mas ainda não compreendemo a maneira de como os corpos penetram nas roupas.
De acordo com a filósofa Marilena Chauí (2000): “A memória é uma evocação do passado. É a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais”. A roupa, quando vira memória, evidencia trajetórias cotidianas e propõe reflexões próprias.
É bastante comum existir entre as famílias roupas que são herdadas a cada geração, peças que depositamos afeto e emoções. Nos apegamos a ideia, de que ao preservar estamos resguardando a história e a memória familiar, imortalizando características de nossos antepassados. Concebemos que ao vestir, ou mesmo ao guardar, estamos incorporando a identidade daquele que a usou, seus traços, suas maneiras.
A moda não apenas veste, mas fala da ancestralidade, afirma e contesta, além de ser uma fofoqueira porque mesmo que fechemos a boca ou os olhos, ela continua falando e falando e falando. Uma comunicação que não é falada mas é vista e interpretada. Define o eu, o outro e o eu perante o outro.
Conta de onde nós somos, espaços de memória, geográficos, a história da nossa família, da mãe e da avó. E por acreditar nesse hibridismos, encontros e trocas, vivenciamos uma mistura de elementos, tecidos, materiais, texturas e formas distintas que se fundem para fornecer uma nova identidade a uma peça ou conceito existente.
Peter Stallybrass (2008) torna claro o “significado simbólico da roupa e a sua capacidade para ser permeada”. Detaca ainda: “A mágica da roupa está no fato de que ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe até mesmo nossa forma”.