» Post

E Agora, José? A Violência de Gênero e o Desafio da Ressocialização

E agora, José? A hibernação festiva acabou, 2025 começou e num passe de mágica, retornamos à realidade – uma realidade em que, ainda hoje, a referência central é o homem. O poema de Carlos Drummond de Andrade, A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José ?, inspirou o programa “E Agora José?”. Trata-se de um programa socioeducativo para homens responsabilizados pela Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), iniciado em 2014.

A iniciativa é das juízas Dra. Teresa Cristina Santana Rodrigues dos Santos e Dra. Milena Dias da Comarca de Santo André. Com a medida, homens condenados pela Lei Maria da Penha têm a pena suspensa por meio do sursis e são encaminhados à Central de Penas e Medidas Alternativas, que, por sua vez, os encaminha ao Programa “E Agora, José?” para cumprir 52 horas de atividades. Eis uma justiça restaurativa, em que os agressores são chamados a assumir a responsabilidade dos seus atos.

Março se foi, o Dia da Mentira passou despercebido, mas as notícias continuam revelando a dura verdade: o medo de ser mulher e o suposto “direito” do homem de nos disciplinar e subjugar. Continuamos loucas, histéricas e mentirosas – e agora, Maria? O álibi não cola e poucos homens demonstram a compreensão de que são, de fato, agressores.

A violência, consumada ou tentada, é um problema coletivo que não se limita a nós, mulheres, ou ao mês de março. Também não se restringe ao lar, mesmo tendo nele sua origem. Em alguns momentos, somos vítimas do controle social masculino, perdendo nossa autonomia para pensar, querer, sentir e agir. Em outros, somos concebidas tanto como vítimas quanto como cúmplices. Como aponta Maria Filomena Gregori no trabalho Cenas e Queixas: Um Estudo sobre Mulheres, Relações Violentas e a Prática Feminista (1993), assumimos a posição de vítimas em busca de proteção, mas o medo da violência, paradoxalmente, nos torna cúmplices no jogo dominação-vitimização.

Até a publicação desta matéria, apenas a pequena ponta do iceberg revela uma realidade sombria e aterrorizante – quem são os responsáveis pela agressão? “Eu”, “Ele” e “Outros”. O “Eu” representa a mulher, muitas vezes vista como culpada pela violência sofrida – “Você estraga tudo”. O “Ele”, o agressor, tende a ver apenas o que lhe convém, sendo incapaz de experimentar culpa. Já os “Outros” são todos aqueles que possam ser culpabilizados pela agressão do “Eu” em relação a “Ela”.

Até mesmo na hora de descontrair, passo o dedo e me deparo com a poesia de Jairo Pereira, “Isso é amor, por acaso?”

Há exatamente uma ano, recebi incontáveis relatos e pedidos de ajuda após a publicação da matéria “O legado ainda queima: Caça às Bruxas“. De lá para cá, seguimos sendo esfaqueadas, queimadas ou asfixiadas – desde cada assovio aparentemente inofensivo ao atravessarmos a rua, até casos extremos de relacionamentos abusivos, marcados por violência sexual e morte. Enquanto isso, oratórias demagogas continuam negando o óbvio e nos culpanilizam.

Ecoa em mim a música “Cangoma Me Chamou“, de Clemetina de Jesus, na voz de Maria Baú. Essa canção desperta narrativas retroativas em meu corpo entorpecido pelos noticiários, teses, livros, congressos, documentários e afins que carregam como pauta a violência contra nós. Ao ter acesso a tais materiais, me tornei um cemitério. A série turca da Netflix, “Cemitério“, aborda o sistema judiciário e o machismo, escancara a retrato da violência contra as mulheres e expõe os desafios aqueles que tentam combatê-la. Para críticos e parte do público, trata-se apenas de uma série policial repleta de tensão, mistério e investigações complexas. Para nós, é a realidade. Uma realidade que se traduz na frase do sociólogo William Bruce Cameron: “Nem tudo que conta pode ser contado, e nem tudo que é contado conta”, frase atribuída a Albert Einstein.

Nem mesmo a condenação é suficiente para apagar todo o percurso transcorrido até finalmente denunciar. Bater na porta de uma delegacia é assumir a dor de sair destroçada, ser violada pela repetição da violência ao denunciar e ver a lógica entre vítima e algoz ser invertida. “Tem certeza? Seu marido vai pra cadeia”. Eis a “violência sem sangue”. A tipificação da agressão como lesão grave e não como tentativa de feminicídio é um reflexo claro: o próprio Estado diz: “Não denuncie”. 

O foco de atenção nesses crimes deve ultrapassar a dicotomia clássica “algoz-vítima” e a “síndrome do abandono”. O uso inadequado de tais termos cria crenças, molda comportamentos e desvirtua. O encadeamento dessas situações desenha o cenário e o esquema de máquina pensante, onde se criam narrativas esgarçadas que legitimam as violências e se tornam a própria violência – o lugar que “eles” dizem que devemos ocupar. 

Tales Furtado Mistura, principal coordenador do grupo Masculinidade, criado em 2006, ano da aprovação da Lei Maria da Penha, tem como objetivo promover encontros para ressocialização de homens acusados de violência doméstica ou de gênero. Segundo ele, “(…) o perfil do agressor é uma amostra do homem brasileiro, é o cara normalzão”. Tales também destaca o seguinte depoimento: “Só é violência quando sai sangue; dizem que a lei avalia o ato, não o contexto”.

De acordo com a promotora Valéria Scarance, do núcleo de gênero do Ministério Público de São Paulo, coordenadora da pesquisa Raio X do Feminicídio em São Paulo, “muita gente acha que o autor da violência doméstica ficou louco, não entende como aquele homem de bem, réu primário, bons antecedentes, educado, trabalhador, pode ser um agressor brutal ou um assassino”.

“Todo espectador é um covarde ou traidor.” Frantz Fanon, em os Condenados da Terra.

NOTA

Não deixe de curtir nossas mídias sociais. Fortaleça a mídia negra e periférica

Esta gostando do conteúdo? Compartilhe!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

» Parceiros

» Posts Recentes

Categorias

Você também pode gostar

Max Mu

‘Me Too’ Mentiu?

Dizem que um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar. Dessa vez, caiu.A bomba já explodida explode novamente, e

Leia Mais »
plugins premium WordPress

Utilizamos seus dados para analisar e personalizar nossos conteúdos e anúncios durante a sua navegação em nossos sites, em serviços de terceiros e parceiros. Ao navegar pelo site, você autoriza o Jornal Empoderado a coletar tais informações e utiliza-las para estas finalidades. Em caso de dúvidas, acesse nossa Política de Privacidade