A convite do Empoderado o Diego Bassinello, da Câmara Obscura RPG, colaborou na entrevista do Jorge Valpaços, autor de “Arquivos Paranormais”.
Jornal Empoderado – Quem é Jorge Valpaços?
Eu sou filho da dona Ana e do seu Jaime, professor de História na periferia do Rio de Janeiro. Negro, repleto de afetos, dúvidas e curiosidades.
Crio jogos há alguns anos no coletivo Lampião Game Studio e considero o RPG uma das linguagens que mais gosto de utilizar para me expressar.
Jornal Empoderado – Qual a sua história com RPG, como você conheceu?
Quando criança, no aniversário de um amigo da escola. Cheguei lá e joguei AD&D e GURPS no mesmo dia. O que era aquilo? Não sabia. Apenas sentei e joguei.
Pronto: não parei de quieto depois daquele dia, eu achei aquele tipo de jogo incrível e não falava de outro assunto.
Jornal Empoderado – Quais sistemas e temas de RPGs que você mais gosta?
Para temas, gosto de fantasia urbana, terror e investigação. Mas gosto também de jogar com as contradições humanas, com o ruído, com a ruína. Mas por vezes me aproximo um pouco do humor ou mesmo algo mais poético e intimista. Gosto de temas que lidam com a complexidade humana.
Contudo, é muito bom estar aberto a novas experiências e estar aberto a novos temas. Quanto a sistemas depende muito, mas gosto bastante de Este Corpo Mortal, Fragmentos, Ehdrigohr (Fate), GUMSHOE (em algumas aplicações), Era do Caos, Hillfolk (dramasystem), Scroll e TechNoir.
Jornal Empoderado – Quais são os RPGs que você criou? Quais seus temas?
Nossa, essa resposta é muito difícil, pois terei de selecionar aqui. Sarjeta, sereno e solidão é um jogo sobre a sobrevivência de um grupo de pessoas em situação de rua, um jogo bem intenso e duro. Déloyal, escrito com Rafão Araújo, trata de resistência e liberdade de povoa oprimidos.
Pesadelos Terríveis é um RPG visceral de terror psicológico. Asas da Vizinhança é um jogo sobre poesia e lirismo acerca de dramas humanos. SeanchaS é um jogo sobre mito e identidade.
E, por fim, Arquivos Paranormais é um jogo sobre a investigação de fenômenos de outro mundo, como fantasmas, alienígenas e demônios. Estes são os já lançados. Há ainda alguns que estão próximos a sair.
Jornal Empoderado – Como ser professor ajuda ou atrapalha na produção de RPG?
Ajuda bastante, e em diversos pontos. O primeiro se dá na pesquisa para a produção. Um professor está acostumado a uma rotina de planejamentos, leituras e pesquisas para suas aulas.
E isso foi de grande valia para me organizar para produzir. Os conhecimentos pedagógicos são utilizados na escrita (sendo o mais didático possível) e aplicação dos jogos, bem como as metodologias de avaliação e acompanhamento, tão comuns no mundo docente, foram inseridas no meu método de trabalho para criar e para avaliar os testes do jogo.
Jornal Empoderado – Por que escrever Arquivos Paranormais? O que faz dele um RPG diferente dos outros?
Porque há alienígenas entre nós, é claro! Brincadeiras a parte, eu sempre gostei do conceito de detetives sobrenaturais, e gostar de um tema é o primeiro passo que se dá criativamente.
Dificilmente você vai se sentir satisfeito fazendo algo que realmente não gosta. Sempre gostei de romances, quadrinhos e séries com essa pegada, e Arquivos Paranormais é fruto desta relação.
Mas o que faz o AP diferente dos outros? Ele é totalmente focado em investigação, é fácil de aprender, e ele é extremamente fácil de mexer para que você crie suas campanhas aventuras e personagens memoráveis.
Jornal Empoderado – Quais foram as referências que você usou para criar o jogo?
Séries como Arquivo X, Silent Moebius, filmes como Caça-Fantasmas e MiB e quadrinhos do universo Hellblazer e Hellboy são ótimos exemplos de referências usadas. Quanto os jogos, destaco sobretudo The Esoterrorists e Era do Caos. É claro que há outras referências, mas estas são as principais.
Jornal Empoderado – O que um jogador pode esperar de uma aventura de Arquivos Paranormais?
Fenômenos insólitos como fantasmas, espíritos desencarnados, fantasmas, etc. Esses fenômenos vão romper a rotina da sua cidade, do seu país e você, apenas você e um grupo de Investigadores treinados vai lidar com esse Caso, visando solucionar o mistério e fazer com que as coisas voltem ao normal.
Pense em uma narrativa repleta de aventura, possibilidade de reviravoltas e movida a busca de pistas fundamentais para desvelar os mais profundos mistérios de outro mundo.
Se você gosta deste tipo de clima, que pode ser engraçado como em MIB ou conspiratório como em Arquivo X, você vai gostar muito de Arquivos Paranormais.
Jornal Empoderado – Quais as sementes que um investigador pode lidar em Arquivos Paranormais?
Um Investigador, ou seja, um protagonista de jogo, é definido em três camadas em Arquivos Paranormais. Ele é definido pela Agência por suas capacidades, por sua camada Ocupacional.
Mas trabalhar em equipe é sempre algo delicado, então as relações que ele nutre com seus colegas de divisão são igualmente relevantes, daí ele é definido também por sua camada Relacional.
E como todos nós somos complexos, temos nossos dramas e motivações, o Investigador tem também sua camada Pessoal. Essa multidimensionalidade é parte da criação de personagens de jogo.
Somos complexos, não somos definidos apenas por nosso trabalho, por nossa função. As relações que nutrimos e os nossos próprios problemas também nos definem. E isso é um dos pontos altos em Arquivos Paranormais, pois tudo entra em jogo.
Jornal Empoderado – Como você enxerga o mercado de RPG?
Esta é uma pergunta muito difícil, e farei um recorte aqui de nosso país para respondê-la, uma vez que teríamos variáveis diferentes caso analisássemos o mercado de RPG para além do Brasil.
Digo isso pois estamos no meio de uma expansão, porém um cenário complexo economicamente em nosso país. Há um crescimento do mercado para os jogos de mesa e as publicações de diferentes e novas editoras, para além dos autores independentes (fundamentais neste processo) indica isto.
Sinto-me bem feliz por produzir neste momento, com iniciativas interessantes e inspiradoras, criadores de jogos no Brasil com ótimas ideias e grandes possibilidades para que novos jogadores conheçam o RPG em sua diversidade de temas e propostas.
Mas sempre é importante articular a instância presente ao cenário macroeconômico, bem como às condições estruturais que nosso país se encontra.
Jornal Empoderado – O que você acha que já poderia ter sido feito e nunca foi?
Não penso que seja algo inédito, até porque não tenho conhecimento das iniciativas que ocorrem por todo o país e sei que isto ocorre com frequência. Mas a promoção de encontros de jogos em áreas periféricas, espaços públicos como bibliotecas e centros culturais é uma iniciativa que considero bastante importante para que novos jogadores tenham o contato com a linguagem de jogos de mesa.
A formação do público leitor/jogador é fundamental para manter o fôlego de publicações, bem como apresenta o RPG enquanto um inutensílio social, um parangolé lúdico, um fenômeno de narrativa emergente, um processo de trocas de afetos por meio de conversas regradas, algumas definições que se diluem em uma visão unidimensional dos jogos.
Explorar os jogos culturalmente de forma plural é um tipo de ação que aquece meu peito todas as vezes que ocorre, e costumo sempre apoiá-las.
Jornal Empoderado – O que você acha que é feito e que não deveriam ser feito mais?
Apoio a iniciativas que promovem o racismo, lgbtqia+fobia, machismo, promoção de discursos de ódio em geral. Por vezes grupos organizadores se inclinaram a tais condutas e realmente penso que este tipo de postura é inadequada para a promoção de uma sociedade diferente. Mas… o que isso tem a ver com RPG? Há algumas escolas que interpretam os jogos de formas distintas. Eu me associo àqueles que não consideram o jogar algo alheio à experiência social que temos. Desta forma, há trocas ativas entre o mundo e a “realidade em jogo”. Se o jogo é espaço de expressão, é também um espaço de ação no mundo, não está “fora do mundo”. É por isso que considero importante que estas práticas de ódio não devam ser replicadas em quaisquer instâncias em torno da cultura lúdica.
Jornal Empoderado – Quais os seus anseios — aquilo que você mais gostaria de ver se tornando realidade — no RPG?
Para além da promoção de espaços e publicações seguras por toda parte, gostaria de ver mais publicações diversas de autores independentes do Brasil sendo lidos e jogados por todos os cantos. Costumo dizer que minha trajetória não é descolada de todas as autoras e autores que já publicaram por aqui, sou muito grato por poder aprender com tantos autores de dentro de fora do Brasil e sou um grande incentivador dos autores incríveis que temos. Eu realmente gostaria que todos nós, desenvolvedores independentes, pudéssemos não apenas ter visibilidade, mas que nossa atividade conferisse as condições básicas para uma vida digna. Neste sentido, o que mais gostaria de ver é o sorriso de pessoas incríveis (e muitas já passaram e passarão aqui pelo jornal emponderado) se orgulhando por ter na criação de jogos a atividade que os satisfaz, que os sustenta, que os projeta. E eu busco fazer o possível para tentar promover as iniciativas autorais, uma vez que me insiro nesta cenário.
Jornal Empoderado – Como você vê o fenômeno Tormenta 20?
Considero algo muito bacana! Um jogo sólido que há duas décadas se mantém ativo e com uma grande base de jogadores, e que abre portas para a disseminação do RPG para novos públicos. Considero o projeto extremamente positivo para a própria visão que se tem sobre o RPG nacional.
Jornal Empoderado – O que você acha que poderia trazer jogadores novos para o RPG?
Penso em três ações. Primeiramente, deslocar-se para fora dos grupos de RPG, para feiras culturais, para as quebradas e periferias, nas bibliotecas e áreas abertas, nas escolas e centros culturais. A segunda ação lida com os jogos em si, sendo acessíveis e com a linguagem próxima aos corpos e vivências de públicos diversos. O jogo sendo apresentado visando identificação e partilha com os jogadores, e não uma posição superior ao jogador que “não conhece o jogo”. O RPG sendo uma atividade humana, hodierna e comum é algo que cria laços e conexões. A terceira ação é bem pé no chão. Jogos gratuitos ou bem baratos para que as pessoas comecem a jogar. Chegar junto, falar a língua da galera e deixar na mão são 3 pilares que a galera do Lampião persegue, e isso tem dado ótimos frutos.
Jornal Empoderado – Ser negro e autor tem implicações na sua produção?
Sim, sem dúvidas. Déloyal, escrito com Rafão Araújo já lida com isso, o que se torna mais explícito nos cenários de campanha publicados. E é possível observar a presença de questões raciais antes mesmo de Déloyal, em Sarjeta, Sereno e Solidão, um jogo que foi tomado sobre muitas memórias de minha falecida mãe (negra) em situações extremas de invisibilidade social e preconceito. Não é raro que haja “confusões” entre eu e alguém “dos serviços” (!?!?) em eventos, e isso sangra em minha produções e práticas. Em todos os jogos que escrevo há protagonistas negros (por exemplo: Felipe em Lições do Medo, Fê e Nanci em Arquivos Paranormais, Hugo e Fernanda em encantos, etc.), e nas partidas que levo em eventos há sempre personagens negros, asiáticos, indígenas. Vez por outra há estranhamentos, como no recente caso que levei todos os protagonistas em uma mesa e Arquivos Paranormais negros, mas é importante quebrar estereótipos. Fê é uma hacker descolada, com corpo nem um pouco sexualizado e/ou idealizado, Felipe é o melhor aluno de biológicas do colégio. Apresentar uma realidade complexa e que não reitera preconceitos e, transportar uma visão de mundo pelo olhar de quem é negro são práticas que eu persigo.
Jornal Empoderado – Como você vê a representatividade negra no RPG?
Novamente vou me focar no caso nacional, pois o tema é muito mais complexo fora do país. Aqui no Brasil observo a representatividade negra em crescimento, e isso me anima muito. Há autores nacionais que são inspiradores, como Thiago Rosa, Luciano Jorge de Jesus, Rafael Cruz, Eva Andrade, Alan Silva, J.M. Trevisan, Raphael Lima, Franz Andrade e Eliane Betocchi, mas há mais, muito, mas muito mais. Tive o prazer de partilhar uma mesa de debates no último ano com Alan Silva, Rafael Cruz e Luciano Jorge de Jesus e debatemos justamente este ponto. Há uma expansão, um crescimento, mas há agruras e desafios. Comparando com outros momentos temos mais pessoas incríveis produzindo, publicando, criando conteúdo em torno do RPG. Mas este processo não está concluído, é preciso expandir mais esse campo, promover mais inclusão de autores e produtores e conteúdo, dar mais visibilidade e fazer com que suas produções circulem. E é neste sentido que sigo.
Jornal Empoderado – Que dica você dá para que autores negros — e artistas e produtores de conteúdo em geral — façam suas idéias se tornar realidade?
Faça da sua vivência, da sua negritude, da sua ancestralidade, não apenas a sua força para criar, mas o meio pelo qual você se expressa. Retirar você mesmo, o seu sangue, a sua existência do que você cria pode parecer um caminho mais simples, mas a entrega é o que faz com que as ideias afetem a realidade.
Para além, recomendo sempre que se comece com projetos pequenos, ações que você possa sentir que há um progresso, um texto, uma aventura, uma ideia simples. Você precisa ver aquilo progredindo, senão a autossabotagem emerge.
Busque um método que seja satisfatório para seu corpo e para sua mente, já que a exploração é a toada de sempre para nossas vidas. Isso significa que a sua produção pode ser visceral, mas você precisa se cuidar no processo. Por fim, busque redes de apoio. O jogo é uma prática coletiva, social, de partilha.
A produção também. E quando isso começa a ser experimentado é algo muito recompensador.
Jornal Empoderado – Que mensagem você deixa para quem nunca jogou RPG e para quem já joga RPG?
Pra quem nunca jogou? Conheça esse tipo de jogo que é simplesmente incrível! E para quem já joga? Que tal apresentar esse jogo a novos jogadores? Tenho certeza que você conhece algum primo, alguma amiga que possa curtir bastante os RPG. E que tal conhecer autores independentes e fortalecer a produção nacional? Há autores com jogos de toda a sorte que não cessam de produzir.
Nada melhor que experimentar novas abordagens, propostas inovadoras e até mesmo tradicionais, mas com a autoria de pessoas de nosso contexto. Eu tenho certeza que você vai encontrar vários jogos incríveis!
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